Como me tornei um socialista

Em celebração ao aniversário de nascimento de um dos mais célebres escritores estadunidenses, traduzimos escrito sobre as razões de seus ideários socialistas.

Jack London 12 jan 2018, 18:51

Pode-se dizer que me tornei um socialista de maneira similar à conversão dos pagãos teutônicos ao cristianismo: a marteladas. Na época da minha conversão, eu não apenas não procurava o socialismo, mas lutava contra ele. Eu era demasiado jovem e inexperiente, não sabia muito das coisas e, apesar de nunca ter ouvido falar de uma escola de pensamento chamada “individualismo”, cantava o hino dos fortes com todo o meu coração.

Isso porque eu próprio era forte. Por forte quero dizer que tinha boa saúde e músculos rijos, características que podem ser facilmente explicadas. Vivi minha infância nos ranchos da Califórnia, vendendo jornais nas ruas de uma próspera cidade do Oeste e passei minha juventude nas águas saturadas de ozônio da Baía de San Francisco e do Oceano Pacífico. Amava a vida a céu aberto, desempenhando as tarefas mais difíceis. Sem aprender nenhum ofício, mas pulando de emprego em emprego, observava o mundo e gostava dele em todos os seus aspectos. Deixe-me repetir: havia esse otimismo porque eu era saudável e forte, jamais experimentando dores ou fraquezas, nunca sendo recusado por um patrão por não aparentar estar em boas condições físicas, sempre capaz de obter trabalho nas minas de carvão, como marinheiro ou como trabalhador braçal de qualquer espécie.

E por tudo isso, exultante em minha juventude, capaz de me defender bem, tanto no trabalho como nas brigas, eu era um individualista convicto. E isso era muito natural. Eu era um vencedor. Por conseguinte, considerava o jogo, da forma como era jogado, muito apropriado para HOMENS. Ser HOMEM significava escrever “homem” em letras maiúsculas no meu coração. Aventurar-me como homem, lutar como homem, fazer o trabalho de homem (mesmo que com o salário de menino) – essas eram coisas que me tocavam profundamente e ficavam gravadas em mim como nenhuma outra. E eu olhava adiante as amplas paisagens de um futuro nebuloso e interminável, em direção ao qual – jogando o que eu considerava um jogo de homens –, continuaria a viajar com uma saúde inquebrantável, sem acidentes, e com os músculos sempre vigorosos. Como digo, esse futuro era interminável. Podia me ver apenas avançando pela vida sem fim, como uma das feras louras de Nietszche, perambulando lascivamente e triunfando pela simples superioridade e força.

Quanto aos desafortunados, aos doentes, aos que sofrem, aos velhos e aos aleijados, devo confessar que raramente pensava neles, a não ser quando vagamente achasse que estes, salvo acidentes, poderiam ser tão bons quanto eu e trabalhar igualmente tão bem, se realmente o desejassem. Acidentes? Bem, eles representavam o DESTINO, também soletrado com letras maiúsculas, e não havia modo de se esquivar do DESTINO. Napoleão sofreu um acidente em Waterloo, mas isso não tirou meu desejo de ser outro Napoleão. Além disso, o otimismo, vindo de um estômago que podia digerir pedaços de ferro moído e de um corpo que floresceu de uma vida dura, não me permitia considerar que acidentes tivessem qualquer relação, mesmo que remota, com minha personalidade gloriosa.

Espero ter deixado claro que eu tinha orgulho de ser um daqueles seres eleitos da Natureza. A dignidade do trabalho era para mim a coisa mais impressionante do mundo. Sem ter lido Carlyle ou Kipling, formulei um evangelho do trabalho que colocava os deles “no chinelo”. O trabalho era tudo. Era a santificação e salvação. O orgulho que sentia depois de um dia de trabalho árduo e bem feito seria algo incompreensível para os demais. Ë quase inconcebível para mim, quando penso nisso agora. Nunca um capitalista explorou um escravo do salário tão fiel quanto eu. Embromar ou ludibriar o homem que me pagava o salário era um pecado, primeiro contra mim mesmo, e depois contra ele. Para mim era um crime que vinha logo atrás da traição, mas que era tão ruim quanto.

Resumindo, meu individualismo entusiasta era dominado pela ética ortodoxa burguesa. Eu lia os jornais burgueses, ouvia os pregadores burgueses e repetia platitudes sonoras dos políticos burgueses. E não duvido que – se outros eventos não tivessem mudado minha trajetória – viesse a me transformar num fura-greves profissional (um dos heróis americanos do presidente Eliot), e tivesse minha cabeça e minha capacidade de trabalho irremediavelmente esmagadas por um porrete nas mãos de algum sindicalista militante.

Por essa época, voltando de uma viagem que durara sete meses, e logo após ter completado dezoito anos de idade, pus na cabeça a ideia de que iria vagabundear. Em vagões de passageiros ou compartimentos de carga, cavei meu caminho pela vasta região Oeste, onde os homens trabalhavam duro e os empregos procuravam as pessoas, até os congestionados centros operários da região Leste, onde os homens tinham pouco valor e davam tudo que tinham para conseguir trabalho. E nesta nova aventura de fera loura, comecei a ver a vida de um ângulo novo e totalmente diferente. Eu havia descido da condição de proletário para o que os sociólogos chamam de “porção submersa”, e comecei a descobrir a maneira como aquela porção submersa era recrutada.

Lá encontrei todo tipo de homem, muitos dos quais haviam sido algum dia tão bons e tão feras louras quanto eu: marinheiros, soldados, operários, todos estropiados, comidos e desfigurados pelo trabalho, pelas agruras e pelos acidentes e dispensados por seus patrões como cavalos velhos. Com eles mendiguei nas ruas, pedi comida nas portas dos fundos das casas e senti frio em vagões de trens e parques da cidade, ouvindo as histórias de vidas, que começavam sob auspícios tão favoráveis como os meus, com estômagos e corpos iguais ou melhores do que os meus, e que terminavam ali, diante de meus olhos, arruinados, no fundo do Poço Social.

E enquanto eu ouvia, meu cérebro começava a funcionar. A mulher das ruas e o homem da sarjeta se tornaram muito próximos de mim. Vi a imagem do Poço Social vividamente, como se fosse algo concreto. Eu os observava lá no fundo do Poço, um pouco acima deles, agarrando-me às paredes escorregadias com todo o suor e a força de minhas unhas. E confesso que um medo terrível se apoderou de mim. E se acabasse minha força? E quando me tornasse incapaz de trabalhar lado a lado com os homens fortes que ainda estavam por nascer? Aí, então, fiz um juramento. Era algo mais ou menos assim: Todos os dias tenho trabalhado até a exaustão com meu corpo e apesar do número de dias que trabalhei, cheguei bem próximo do fundo do Poço. Deverei sair dele, mas não com os músculos do meu corpo. Não vou nunca mais trabalhar como trabalhei e que Deus me fulmine se um dia eu der de mim mais do que o meu corpo pode dar. E desde então tenho me dedicado a fugir do trabalho duro.

A propósito, enquanto vagabundeava por umas 10.000 milhas pelos Estados Unidos e Canadá, entrei na cidade de Niagara Falls, fui pego por um policial à caça de multas, tive o direito de me declarar culpado ou inocente negado, fui imediatamente sentenciado a trinta dias de prisão por não ter residência fixa ou meio aparente de subsistência, algemado e acorrentado a um grupo em situação similar, despachado para Buffalo e registrado na penitenciária do condado de Erie; meu cabelo e meu bigodinho incipiente foram raspados, fui vestido com o uniforme de prisioneiro, vacinado compulsoriamente por um estudante de medicina que praticava em pessoas como nós, obrigado a marchar em fila e a trabalhar sob a vigilância de guardas armados com rifles Winchester – tudo isso por ter me lançado em aventuras ao estilo das feras louras. Para mais detalhes, esta testemunha declara-se muda, embora se possa desconfiar que seu exultante patriotismo tenha se evaporado um pouco e vazado por alguma fresta no fundo de sua alma – pelo menos, desde que passou por essa experiência, já se deu conta de que se interessa muito mais por homens, mulheres e criancinhas do que por linhas geográficas imaginárias.

Voltando a minha conversão. Acho que aparentemente meu individualismo feroz foi efetivamente extraído de mim e foi-me inculcada outra coisa, de forma igualmente eficaz. Mas, assim como eu havia sido um individualista sem saber, era agora um socialista sem saber, ou seja, um socialista não científico. Eu havia renascido, mas não havia sido rebatizado, e andava à toa por aí, tentando descobrir o que de fato era. Voltei para a Califórnia e abri os livros. Não me recordo quais abri primeiro. Este é um detalhe sem importância, de qualquer forma. Eu já era isso, seja lá o que isso fosse, e com a ajuda dos livros descobri que isso era ser socialista. Desde aquele dia abri muitos livros, mas nenhum argumento econômico, nenhuma demonstração lúcida da lógica e da inevitabilidade do socialismo me afeta tão profundamente e tão convincentemente como o dia em que vi pela primeira vez as paredes do Poço Social se erguerem à minha volta e me senti escorregando, escorregando, para as ruínas lá no fundo.

FIM.

Tradução de Flavia Brancalion.


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