Estado de exceção disfarçado na Catalunha: dupla catarse sobre o regime de 78

Editorial do portal Sin Permiso analisa os últimos acontecimentos na Catalunha e denuncia o aumento da repressão imposta pelo estado espanhol.

Daniel Raventós e Gustavo Buster 29 mar 2018, 20:26

Um estado de exceção mais ou menos disfarçado. Ou “à moda antiga” nas palavras do veterano constitucionalista Javier Perez Royo. “Estamos voltando a uma etapa negra da história da Espanha que pensávamos que havíamos deixado definitivamente pra trás. Através da ativação do artigo 155 CE do Governo de Mariano Rajoy, com a colaboração, explicável ainda que lamentável, do Ciudadanos, e inexplicável do PSOE, enviou à Fiscalía General, e através dela à Audiencia Nacional e ao Tribunal Supremo a perseguição penal do nacionalismo, como se fosse um inimigo ao qual deve aniquilar”.

A sessão de investidura do Parlament de Catalunya de quinta 22 de março e a prisão provisória ordenada pelo juiz Llarena contra o candidato à presidência da Generalitat e outros cinco deputados independentistas no sábado 24 de março, como consequência do auto do Tribunal Superior de 21 do mesmo mês, assim como a reativação das euro-ordens de detenção contra os exilados, que levaram à detenção na Alemanha do President Carles Puigdemont, supuseram uma dupla catarse, que são na realidade as duas faces da mesma moeda. Por um lado, a direção do processo independentista, nas mãos do Junts per Catalunya e ERC, esgotaram sua capacidade de iniciativa. Por outro, sua judicialização repressiva pretende impedir qualquer acumulação de forças soberanistas para uma negociação “bilateral” entre a Generalitat e o governo central. O regime de 78 só se pode manter já na Catalunha mediante a repressão e a intervenção permanente de suas instituições políticas. Um estado de exceção cada vez menos disfarçado.

A prisão provisória para um novo grupo de políticos eleitos catalães ordenada pelo juiz Llarena é um novo significativo na escalada repressiva do regime de 78 contra as liberdades democráticas da Catalunha e, bom seria que alguns tomem nota, do resto do Reino da Espanha. Uma parte importante da cidadania catalã (e não unicamente independentista como se pretende interessadamente desde o bloco constitucionalista) está indignada. E saiu à rua massivamente em muitíssimas cidades e povoados da Catalunha na sexta 23 de março. Alguém deixou muito bem expresso: “Agora a Catalunha é uma manifestação”. E seguirá sendo, sem a menor dúvida. A indignação está mais que justificada: há representantes políticos eleitos, em eleições convocadas pelo governo espanhol, na prisão ou no exílio e enquanto, “pessoas julgadas e condenadas por corrupção, lavagem de dinheiro e outras barbaridades seguem em liberdade – por exemplo Urdangarín – …” segundo palavras da pouca suspeita de ser independentista catalã María José Pintor Sánchez-Ocaña.

Uma nova fase política

Basta comparar o discurso de investidura do candidato Jordi Turull com o auto do Tribunal Supremo para constatar a nova fase política aberta esta semana. O primeiro só é compreensível em sua inanidade autonomista como parte da estratégia de defesa de Turull; enquanto que o segundo estabelece toda uma genealogia da vontade política da direção independentista para justificar a acusação do delito de rebelião, não no (suposto) feito incontestável de seu “alçamento violento”, senão em sua potencial intencionalidade de utilizar o “poderio das massas” para dobrar a autoridade do estado.

Nenhuma destas duas posições políticas sobre o que foi o longo processo soberanista catalão pode dar conta da realidade social e política vivida por milhões de pessoas. A de Turull: porque pretende evadir a natureza profunda da crise do regime de 78, com a ingênua pretensão de uma recuperação das instituições políticas catalãs intervencionadas, ao mesmo tempo em que se mantem o horizonte soberanista gestado desde Bruxelas. A de Llarena: porque é uma teoria conspirativa elitista que pretende converter um movimento pacífico de milhões de pessoas em um golpe de estado de uma minoria agitadora.

Desde o começo do processo – depois da sentença do Tribunal Constitucional em junho de 2010 contra o estatuto de autonomia de 2006, a manifestação de julho “Som una nació, nosaltres decidim”, as eleições autonômicas de novembro de 2010 e o rechaço do “pacto fiscal” aprovado pelo Parlament pelo governo Rajoy em setembro de 2012 – a estratégia de acumulação de forças soberanistas na rua para sua gestão “bilateral” posterior pela Generalitat, fracassou uma e outra vez. Em definitivo, porque a parte essencial não era a mobilização social, senão sua instrumentalização: a negociação entre as elites centrais e autonômicas do regime de 78 da redistribuição fiscal que permitia manter certo nível de consenso popular através do gasto social e de consenso oligárquico mediante o acesso clientelista ao gasto público.

Estes mecanismos de pressão inter-oligárquicos estavam – e estão – inscritos na própria natureza do “estado das autonomias”. O que bloqueou a gestão de seu sistema de financiamento comum foram as políticas de ajuste neoliberais a partir de maio de 2010 com o governo Zapatero, em primeiro lugar, e logo a ofensiva reacionária do PP, um de cujos principais êxitos foi o recurso contra o novo Estatuto de autonomia catalã de 2006. A escalada da mobilização social soberanista articulou um catalanismo popular que, ao situar em primeiro plano o “direito a decidir” – outra forma de dizer o tradicional e democrático direito à autodeterminação –, reafirmava sua soberania e suas aspirações democrático-republicanas frente à gestão institucional soberanista do CiU primeiro e do PDeCAT depois. Uma tensão no campo soberanista que, à medida que se reforçavam organizações como a ANC, Òmnium Cultural e os Municipis per la Independència, se trasladava a um questionamento da hegemonia do CiU-PDeCAT pelo ERC, e o reforço em paralelo, em menor medida, da CUP.

Apesar dos vai e vens políticos do processo, da tenacidade da mobilização popular para conseguir o referendo de 1º de outubro e da greve cívica de 3 de outubro, da resposta eleitoral de 21 de dezembro à intervenção da Generalitat, a estratégia de negociação “bilateral” da direção independentista do processo se manteve frente a alternativa de uma estratégia unilateral de desenvolvimento de um processo constituinte republicano. Como explicaram os dirigentes do processo, a República catalã foi “proclamada sem efeitos jurídicos”. E em vez de uma defesa política coletiva frente a repressão judicial, se respondeu com uma multiplicidade de defesas baseadas na minimização das responsabilidades individuais.

O mérito da CUP, ante o esgotamento evidente desta estratégia, que a direção do processo conduziu a um beco sem saída, foi explicá-lo com todas suas consequências: nem haverá recuperação das instituições autonômicas, nem o estado espanhol permitirá uma nova acumulação de forças entorno delas, nem pode haver uma negociação “bilateral” sobre o alcance da soberania catalã. A República catalã, o processo constituinte popular para sua construção, é incompatível com o regime de 78.

A narrativa do auto do Juiz Llarena atribui à direção do processo, acusada de rebelião, uma lógica causal conspirativa que implicaria seu próprio transbordamento por uma mobilização popular capaz de limitar a capacidade de ação política e repressiva do estado espanhol, criando espaços para o próprio exercício de sua soberania. Trata-se de uma leitura liberal-conservadora das consequências potenciais da “rebelião das massas”, além de sua manipulação em um conflito inter-oligárquico, que responde a uma visão explicativa – e justificada – da repressão dos movimentos populares sob a I Restauração e os primeiros anos da II República, especialmente em outubro de 1934, e o posterior golpe de estado militar de 18 de julho de 1936.

Neste sentido, a “normalização” não é senão uma “superação da fratura” que passa pela repressão seletiva da direção independentista e uma repressão generalizada do movimento soberanista popular. Ou seja, contra grande parte da população catalã. Inclusive em sua fórmula melhor intencionada, vamos supor assim, a de Miquel Iceta e o PSC, para limitar esta repressão a um “mal menor” que permita uma utópica volta à alternância na Generalitat entre um tripartido transversal das esquerdas catalãs e uma direita catalanista reconstituída, frente ao perigo que significa o novo lerrouxismo do Ciudadanos. Trata-se de uma miragem mais ou menos auto-imposta.

A resistência ao regime de 78 com prioridade

A repressão e a intervenção das instituições catalãs são aspectos mórbidos da crise estrutural múltipla do regime de 78. Uma crise que se segue acentuando em termos de corrupção, incapacidade de gestão fiscal e orçamentária, aumento das tensões territoriais nacionais e crescimento da desigualdade. Não existem alternâncias políticas factíveis a nível autonômico, da mesma maneira que não é crível uma coalizão Ciudadanos-PP, como sugerem as pesquisas de opinião atuais, para canalizar e “regenerar” o regime de 78. Este regime não se pode regenerar, ainda menos pela direita que o parasita.

As coisas só podem piorar enquanto a mobilização das resistências populares – como as mulheres no 8 de março, os pensionistas, as mareas sanitarias – não construam uma nova correlação de forças e as bases de uma alternativa de esquerdas ao regime de 78. Uma alternativa que sem o reconhecimento claro, explícito e constante do direito de autodeterminação das nações históricas Catalunha, País Basco e Galícia, e da própria Espanha (se pôde expressar e autodeterminar alguma vez sua cidadania sobre esta monarquia imposta pela ditadura franquista ou a República?) está condenada ao mais espetacular dos fracassos.

Um componente essencial dessas mobilizações será a defesa das liberdades democráticas, que hoje estão suprimidas na Catalunha pela repressão judicial e a intervenção de suas instituições políticas. A resposta em positivo ao esgotamento da estratégia procesista começa pela defesa unitária do espaço democrático da mobilização popular, contra a judicialização e a repressão das liberdades de associação e manifestação. Não é possível uma “recuperação das instituições” com políticos encarcerados por rebelião ou perseguidos no exílio por tentar exercer o mandato democrático de seus eleitores. De nada servirá neste sentido um Govern eleito antes do próximo 22 de maio se se submeta às condições dos gestores do art.155, seja o governo Rajoy, seus fiscais ou o Tribunal Constitucional. Como tampouco a convocatória estatal de novas eleições autonômicas para tentar forçar a vontade do eleitorado até que o bloqueio do art.155 tenha uma maioria parlamentar.

A nova fase aberta na política catalã, concretada na declaração institucional do President del Parlament Torrent depois de suspender a segunda sessão de investidura, tem como prioridade a recuperação das liberdades políticas intervencionadas mediante a mobilização social de uma frente anti-repressiva. O fato que Catalunya en Comú se tenha somado e que participe as organizações sociais e sindicais não independentistas, em uma maioria democrática soberanista, pode ser decisivo na hora de estruturar a resistência contra o regime de 78. No momento, grande parte da população da Catalunha está na rua pela defesa da liberdade e da democracia.

Tradução de Marcelo Marino de artigo publicado no portal SinPermiso


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