Londres e Paris no tormento europeu
Theresa May e Emmanuel Macron enfrentam árduas crises em seus mandatos.
2018 tem sido um annus horribilis para a União Europeia. A formação do Governo italiano de Salvini, a impunidade de Orbán, o anúncio do afastamento de Merkel, a escolha de Weber para candidato à Comissão Europeia, a pressão de Trump e, sobretudo, o ‘Brexit’, tudo vai no sentido de um irresolúvel impasse institucional. Esta semana, as atribulações de May, o mea culpa de Macron e o conselho de ontem demonstram que ainda pode vir pior.
Cantar mais alto
Há dias, um curioso apelo de liberais, conservadores e sociais-democratas, de Alain Juppé a Felipe González, clama por “retomar urgentemente a nossa autoconfiança, dar à União um coração e uma alma”, ou seja, mais litania autossatisfatória castigando Schiller e Beethoven com a repetição ad nauseum do ‘Hino à Alegria’. Entretanto, Piketty propôs quadruplicar o orçamento europeu para uma política generosa, parece que sem notar que os governos só querem entender-se para cortar o orçamento.
O problema é que não basta cantar mais alto, como se verifica na dificuldade de resposta às revoltas populares. O facto é que toda a década perdida desde a crise de 2008 está a cobrar o seu preço: trabalhadores pobres irritados com a globalização, migrantes fugindo da miséria, jovens cansados da precariedade, os expulsos da cidade colonizada pela especulação, são multidões arrastadas pela política abissal e que protestam. Perante este clamor, a crise cresce com a incapacidade institucional de responder ao mal-estar social. Uma expressão desta arrogância é a forma como os poderes europeus responderam ao referendo do ‘Brexit’, que aliás autorizaram e até estimularam, para depois, perante o resultado expectável, mostrarem como é punido qualquer Estado que decida a saída. E vemos Theresa May, afinal uma das apoiantes de sempre da ortodoxia da direita europeia, ser sacrificada no altar de Bruxelas, correndo de um lado para o outro à procura de coisa nenhuma numa misteriosa fronteira entre as duas Irlandas. Paris e Berlim acharam, no vendaval do ‘Brexit’, a oportunidade de fragilizar uma grande economia concorrente e de atingir o poder político e militar que historicamente equilibrava as disputas continentais, e querem levar o ajuste de contas até ao limite.
Tiros no pé
O problema deste plano é que ele atinge os seus autores. Assim, enquanto na Alemanha se vai anunciando uma inclinação para a direita menos europeia, é em França que está o mais grave perigo. Era onde morava a solução, se quem lê estas linhas se lembra do entusiasmo com o jovem telegénico que tomou conta do Eliseu com uma maioria parlamentar arrasadora. Ele era o sonho chegado de novo ao poder, era o líder que ia reerguer a Europa, era a nova política para lá das velhas divisões, era a estrela que nos ia guiar. As elites lusitanas deslumbraram-se com as suas promessas (mutualização da dívida, lembra-se?), com o seu arrojo (convenções europeias em cada país até fim de dezembro de 2018, lembra-se?), com a sua pose. Esperavam um salvador, um Napoleão benévolo a desembarcar em noite de bruma.
Um ano e meio depois, o ras-le-bol francês é avassalador. Quatro semanas de protesto confuso, milhares de detidos, centenas de milhares de manifestantes, uma barreira entre o povo e o Governo, um Presidente aflito, temos a França a lembrar-se de como sempre tem sido o país das revoltas e das revoluções europeias. E descobre-se como Macron falhou em todos os planos.
Falhou na vida social. Os jornais assinalam hoje como o Presidente evocou a sua carreira de banqueiro de investimento ao abolir o imposto sobre as fortunas — a única medida que se recusa a corrigir, mesmo quando aparece na televisão de baraço ao pescoço — e mostrou a sua enfatuação ao dar reprimendas a um jovem e a um desempregado que o interpelaram na rua, ao lançar que nas estações de caminho de ferro se encontra “gente que não é ninguém”, ao mesmo tempo que se rodeava no fausto de Versalhes para falar aos deputados aprumados. Macron afirma que faltou um rei aos franceses, logo no país mais republicano da Europa, e era evidente que um dia a contradição cobraria a sua fatura. Foi agora, com o povo na rua.
Falhou ainda no plano político. A maioria parlamentar de que dispõe é demasiada, crispa-se em divisões, hesita perante as pressões, adivinha deserções. Com tudo isto, arrisca-se a perder as eleições europeias para Le Pen (que é a aposta de Trump), enquanto tenta compor uma aliança internacional de desesperados: prometeu listas conexas com os liberais, tenta seduzir o Partido Democrático de Renzi, a Nova Democracia na Grécia e até os Verdes alemães para o seu novo partido europeu, mas já não é seguro que seja levado a sério.
Levado aos ombros pela ilusão europeia, Macron tornou-se o elo mais fraco. A consequência é tratar o ‘Brexit’ com os pés e reduzir a União a este projeto falhado de frases tão grandiloquentes como inconsequentes. Em Paris está a exibir-se a morte da promessa da globalização feliz, perante um povo que descobriu que só lhe sobra a vida triste.
Artigo originalmente publicado no jornal “Expresso” em 15 de dezembro de 2018.Reprodução da versão publicada pelo Esquerda.net.