Crônica de uma rebelião popular

Secretário de Relações Internacionais do PSOL relata sua estadia no Equador durante os recentes protestos no país.

Israel Dutra 29 out 2019, 16:43

Minha chegada em Quito se deu no dia seguinte à assinatura do acordo que finalizou a maior jornada de protestos no país em 20 anos. O avião pousou num aeroporto militarizado na manhã de terça-feira (15/10), após 10 dias da paralisação mais extensa da história equatoriana. Cheguei ávido pelo gesto político e social transcendental que acabara de derrubar o pacote do Fundo Monetário Internacional (FMI), trazendo a rebelião popular de volta para o centro dos acontecimentos sul-americanos. O levante popular e a greve geral que ocorreu no Chile comprovou a mudança no pêndulo da luta de classes no continente.

A paralisação nacional, social e popular, protagonizada pela CONAIE (Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador) aconteceu entre os dia 03 e 10 de outubro.  Nas linhas abaixo descrevo um pouco do que pude conferir através de diversas entrevistas, reuniões e encontros ocorridos no balanço imediato da vitória popular. Portanto, trata-se de um relato “à quente” sobre a aguda situação do Equador, seus desdobramentos imediatos e suas consequências para o conjunto da região.

Desde o PSOL, com sua Secretaria de Relações Internacionais a frente das atividades internacionalistas, enviamos uma delegação, aprovamos uma moção contra Lenin no parlamento brasileiro, incluindo uma nota de todo Partido e ações de rua em frente às embaixadas e consulados.  Cercamos de solidariedade a luta equatoriana porque nela se condensam elementos decisivos para o futuro da luta de classes no sul do continente: uma luta de todo povo contra os ditames do Fundo Monetário Internacional e seus agentes políticos locais.

O sentido comum de uma rebelião de maioria social

O governo de Lenin Moreno anunciou o pacote de medidas impopulares (decreto 883) no dia 01/10, onde se destacava a alta dos combustíveis e do transporte público. Durante 40 anos vigorou no Equador – como já explicado em nossos artigos – um subsídio que mantinha os custos dos combustíveis e dos transportes em preços mais acessíveis. Numa economia dolarizada, para termos ideia, o preço da tarifa urbana média em Quito é 25 centavos, o que poderia ser comparado com 1 real em moeda brasileira. O detalhe é que o metrô, prometido há dez anos, teve sua inauguração adiada, novamente, para 2020. Ou seja, o sistema modal depende muito do transporte rodoviário urbano.  Imediatamente, a resposta do sindicato dos taxistas e condutores foi de uma paralisação de 24 horas, muito radicalizada e que levou a pequenos distúrbios. Gerou-se o caos no transporte em todo o território nacional. Enquanto o restante do movimento social observava, a CONAIE reforçou a paralisação já marcada para 03/10 como fruto de seu último congresso. Os transtornos no meio urbano causaram insatisfação também em outras cidades e as bases começam a se mover.

O governo contra-atacou em duas frentes: prendeu os líderes do sindicato dos taxistas e fez um acordo com a burocracia de rodoviários, interrompendo a paralisação na noite de 02/10. Contudo, o movimento estudantil das principais cidades, com centro nas universidades de Quito, convocou uma marcha muito forte para o dia 03/10, levando aos setores mais dinâmicos e combativos dos indígenas a aprovarem caravanas para a capital e a tomada dos maiores campos de petróleo no interior. A paralisação foi antecipada e começaram os bloqueios de estrada. A ofensiva da repressão ampliou a luta popular.

A CONAIE acampou no centro urbano de Quito e organizou bloqueios nas principais rotas, interrompendo a produção dos maiores campos de petróleo. Estudantes da maiores universidades conformaram brigadas de solidariedade. Com a morte do líder indígena, Inocencio Tucumbi, a radicalização ganhou contornos decisivos: nos dias 11 e 12 de outubro, uma verdadeira batalha campal se deu no centro de Quito. A capacidade de resistência foi impressionante. A batalha das ruas foi para a mesa de mediação, convocada pela ONU e pela Conferência Episcopal, onde indígenas confrontaram o governo em rede nacional de televisão, no domingo, 13 de outubro.

O conflito teve sua massividade alicerçada numa luta de maioria social. O governo Moreno, após ter sido apresentado como sucessor de Rafael Correa, se converteu numa agente direto do FMI. O fim do subsidio estatal aos combustíveis foi parte da carta de intenções do FMI para desembolsar seu “apoio” ao governo de Moreno. O anexo 3 da carta de intenções alertava para o risco de “desatar” protestos sociais. O levante indígena e popular teve como conteúdo principal a oposição entre os interesses da maioria e os ditames do FMI.

As questões de economia internacional condicionaram esse cenário. Temas como a guerra comercial entre China e Estados Unidos e as incertezas de um cenário mundial que aponta para desaceleração econômica atuam para pressionar os governos a ceder às “reformas” exigidas pelo Fundo.  A crise internacional do petróleo e a alta do dólar também atuam nessa esfera.  Vale recordar que o Equador é o único país da América do Sul que tem o dólar como sua moeda oficial.

A CONAIE serviu como o instrumento que todo povo referenciou para dar basta a condição de submissão ao FMI, retratado no aumento abusivo do transporte. Lenin Moreno teve sua popularidade derrubada. O movimento indígena teve sabedoria para galvanizar a luta popular, com suas colocações sendo transmitidas ao vivo na mesa de negociação.  O apoio aos protestos foi massivo, combinando a solidariedade ativa e um amplo apoio difuso- em que pese a campanha midiática que foi feita para tratar como “vândalos”.

A questão indígena

O levante equatoriano teve sua vanguarda na CONAIE. Um rico processo organizativo que se desenvolve há anos, muito reprimido pelo governo de Correa. O levante foi um novo salto de qualidade para colocar os povos originários no centro da discussão política.

As medidas do governo são contrapostas ao que eles chamaram de “estado de emergência nas comunidades indígenas”, traçando uma luta de poderes territoriais paralelos. A prefeita de Guayaquill bloqueia o principal acesso à cidade, a ponte de unidade nacional; as emissoras opositoras, como a TELESUR e outros meios de rádio, tiveram seu sinal tirado para fora do ar; uma guerra midiática se inicia para tratar como vândalos os manifestantes. Esta manipulação apresenta vários contornos racistas, como por exemplo o líder do tradicional partido burguês, PSC (Social Cristão), Nebot, afirmando que os indígenas deveriam seguir no “Páramo”.  Um líder indígena, Inonencio Tucumbi, é morto na Zona Zero, tragédia que acirra ainda mais o conflito.

A vitória popular reafirmou a tradição e a força da CONAIE e seu braço político, o Partido Pachacutik. A luta por um estado plurinacional, de fato e de direito, segue com mais força ainda. 

Um histórico de lutas e mobilizações

O Equador foi vanguarda no ciclo de lutas contra o neoliberalismo. A irrupção de 2000, quando a CONAIE protagonizou a derrubada do governo, chegando a instaurar uma junta provisória. Naquele momento, houve a convergência social da CONAIE com a CMS (Coordenação dos Movimentos Sociais) que congregava o sindicalismo urbano, com os petroleiros à cabeça.  Tal aliança foi capaz de incidir sobre setor militar que se dividiu, com a baixa oficialidade sendo representada por Lucio Gutierrez. Foi um grande levante que abriu uma nova situação política no continente.

Pensando na história recente do Equador, podemos falar em ciclos de levantes: o primeiro em 1990 quando a CONAIE se constitui como sujeito; o segundo em 1997 quando se derruba Abdalá Bucaram; o terceiro é referido acima, em 23 de janeiro de 2000; e em 2005 quando um levante com base na classe média derruba Lucio Gutierrez, após sua traição ao programa com que foi eleito. O período de Rafael Correa (2007-2017) sintoniza o país com os chamados (apesar de muito diferentes entre si) governos “progressistas” ou “pós-neoliberais”. Polêmico e peça chave para entender os atuais choques – a repressão é muito forte sobre o correismo – Correa é o principal dirigente político que o país teve nas últimas décadas.

Podemos dividir o período Correa em duas fases, com suas respectivas contradições. A primeira fase é que sintoniza o governo com a onda bolivariana e com as demandas populares incompletas das rebeliões anteriores.  Essa fase é caracterizada pela nova constituição de Montecristi, aprovada nessa cidade em 2008, com um parlamento presidido por Alberto Acosta. No âmbito internacional, se destacam medidas ainda mais progressivas: a auditoria da dívida equatoriana; a exclusão da base norte-americana na cidade de Manta e o asilo concedido para Julian Assange, em agosto de 2012.

A segunda etapa do governo combina um tripé: medidas macroeconômicas mais orientadas ao mercado, de corte social-liberal; repressão ao movimento social em geral, em especial a CONAIE; e o envolvimento em escândalos de corrupção relacionados com a Odebrecht e empresas que prestaram serviços ao Estado equatoriano.  Dessa etapa nasce a parceria para priorizar seu anterior vice- presidente, Lenin Moreno, como sucessor natural do correismo. Lenin se elege com discurso de volta aos melhores momentos do período “Montecristi”, mas dá um giro rápido à direita, se separando de Rafael Correa, entregando Assange e retomando acordos com os Estados Unidos e o FMI.

Como parte da perseguição ao correismo, e sabendo do prestígio da CONAIE, Lenin Moreno descarrega sobre o correismo a mão pesada da repressão, fazendo do partido de Correa (Revolução Cidadã, sigla comum com seu nome) o bode expiatório uma vez que não há relação de forças para atacar os indígenas. Foram presos dois deputados e a governadora do estado mais populoso do país, Pichincha, onde fica a capital Quito. Além disso, três lideranças, entre elas a líder parlamentar de RC, Gabriela Rivadeneira, estão exilados na Embaixada do México.

 A batalha de Quito

A “batalha de Quito” foi uma luta que envolveu a entrada em cena de diferentes atores: uma marcha feminista de 5 mil mulheres marcou um feito histórico na manhã do dia 12; os panelaços se multiplicaram pela madrugada em repúdio ao governo; verdadeiras ‘puebladas’ na forma de barricadas e ações de bloqueios de todas as vias; e uma batalha duríssima, de cerca de 6 horas na Zona Zero, onde as universidades serviram de trincheiras para o atendimento de feridos e alimentação. Isso foi impressionante. O Parque Arbolito e a Casa da Cultura, o QG da CONAIE, eram o centro da Zona Zero, junto com os edifícios estatais; mais à frente fica a Assembleia Nacional, em todo cinturão de universidades – Central, Andina e Católica- num raio de 2 a 3 quilômetros. 

Foi uma verdadeira explosão de apoio popular: superaram-se em muito as doações de alimentos e roupas, centenas de estudantes de medicina e da área da saúde formaram numa brigada de solidariedade que garantiu uma defesa apropriada em tempo real, de bombas e lesões. Em desafio ao toque de recolher, milhares desceram das regiões mais pobres da cidade, numa mescla que assustou alguns setores, dando vazão para ações descontroladas como saques e invasão de prédios públicos (existe a hipótese de que o prédio da Controladoria, tenha sido conscientemente queimado e destruído por correistas, com o objetivo de destruir as provas dos casos de suborno da Odebrecht). O fato é que o governo aceitou uma mesa de negociação que tivesse a condição-chave para a CONAIE: fosse transparente e televisionada ao vivo, já sem o toque de recolher.  Foi um grande triunfo da “batalha de Quito”.

O desfecho no dia seguinte foi uma negociação complicada, com as duas partes presentes: lideranças indígenas de todos setores, federações, grupos como os indígenas evangélicos e a federação afro-indígena, além do governo, representado pela figura de Lenin Moreno e de seus principais ministros. Como mediadores estiveram a ONU e a Conferência Episcopal. Ficou acertada a revogação do decreto, que fez explodir em festa as ruas de todo país. Quanto ao segundo ponto, a renúncia dos ministros do Interior e da Justiça e a reparação das vítimas da repressão, foi criada uma comissão para dar prosseguimento às discussões. Delineou-se uma vitória parcial, mas que colocou a luta contra o ajuste num outro patamar.

A confiança do movimento social em geral e do movimento indígena se reforçou enormemente. Para se ter ideia, comenta-se que a maior audiência da história da TV equatoriana foi a transmissão ao vivo do diálogo. No dia seguinte, ainda com muito apoio popular, os indígenas e movimentos sociais urbanos organizaram uma “Minga” (Mutirão) de limpeza, que teve uma repercussão muito positiva entre as camadas médias, congregando também a vanguarda juvenil.

O Equador colocou a América do Sul na rota das novas rebeliões populares. Pelo mundo se espalham as imagens de ações massivas e radicalizadas, aguentando e segurando contra a repressão. 

 Ventos do povo

Aprendi muito nos dias que estive no Equador. Estive com dezenas de ativistas, líderes indígenas, intelectuais, dirigentes feministas, parlamentares, operários, estudantes, ambientalistas. A lição de um povo combativo, que não está disposto a dar passos atrás, depois do enorme gesto histórico das jornadas de outubro, é de que a luta vale a pena.

Isso serve tanto para quem acompanha no detalhe o valor da ação independente quanto para os milhões que seguiram pelos noticiários e pelas redes sociais o desfecho da luta contra o decreto 883, a repressão e o FMI. Os ventos do povo sopram fortes nos países andinos. Nem tinha se completado uma semana do levante indígena e popular equatoriano, o povo chileno irrompeu com a maior onda de manifestações desde a queda da ditadura Pinochet.  Os tempos se aceleram.

Os combates, cada vez mais duros e polarizados, apenas começam. São milhões que “votam com os pés”, como diria Lenin, o revolucionário; O papel dos internacionalistas é cercar de solidariedade, intercambiar experiências e mais do que nunca beber da fonte da cultura das lutas populares.

Se fora da luta pelo poder tudo é ilusão, fora da luta do povo, tudo é impotência.


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