A necropolítica nas filas da Caixa e o direito à transferência de renda

É preciso defender a assistência social e aqueles que dela necessitam.

Aneska Souza e Tamires Arantes 15 maio 2020, 14:55

15 de Maio é o Dia do Assistente Social, e talvez a melhor forma de começar a falar sobre este tema é superando o mito de que  Assistência Social é caridade, altruísmo ou filantropia. Ou ainda que os profissionais, as assistentes sociais são senhoras benevolentes que não tinham o que fazer em casa e decidiram ajudar aos pobres. Estas sugestões têm herança no assistencialismo muito comum entre as primeiras damas e suas ações para trabalhar a publicidade do governo, também nas ações de caridade vinculadas a igreja. Contudo, as assistentes sociais são chamadas a intervir porque são altruístas por natureza, ou porque são as mulheres que ainda hoje carregam a função do cuidado, a intervenção na dura realidade brasileira é uma necessidade do estado em instituir políticas sociais para os trabalhadores, afim de garantir meios para a reprodução social necessária ao capitalismo.

Nas últimas semanas pudemos acompanhar as imensas filas tumultuadas nas portas da Caixa Econômica Federal, contrariando as orientações da OMS sobre evitar aglomerações e sair de casa muitos se viram na condição necessária de encarar as filas para receber o auxílio emergencial de 600 reais ou 1200. A distribuição de renda emergências é parte das medidas para combater a pandemia de coronavírus, cujo presidente Jair Bolsonaro, defendeu o valor irrisório de 200 reais. Se já se vive no apertado com 600 quem dirá com 200 para sustentar uma família! Bolsonaro mostra para quem governa e com quais vidas não se importa.

Se submeter ao estresse e humilhação de horas nas filas, incansáveis tentativas de cadastramento pelo aplicativo, a demora no pagamento e demais problemas são uma forma de necropolítica, ou política de morte. São as camadas periféricas, de mulheres e negros a grande parcela da população mais afetada. A exclusão do acesso ao direito começa pela necessidade de se ter smartphones, internet e uma alfabetização mínima para conseguir se cadastrar. Mesmo os que já estão contemplados pelo Cadastro Único, programa federal que  sistematiza as famílias brasileiras que vivem abaixo de três salários mínimos, e por tanto consideradas vulneráveis, encontram dificuldades e um sentimento de que estão recebendo uma “ajuda do governo”. O sentido de ajuda implica submissão, favor como e não de direito. Ser portador de direito, mesmo dentro da nossa democracia que sempre esteve vertiginosa, sempre faltou aos mais paupiéres. Atualmente, segundo o MDS, são 28.484.729 famílias cadastradas no programa, CadÚnico, ou seja, se consideramos que são famílias possuem mais um membro este número duplica ou triplica individualmente e por tanto podemos considerar são muito mais de 28 milhões de brasileiros vivendo em situação de vulnerabilidade social, na beira da miséria ou sob uma nova miséria que disfarçada atras do sistema de crédito cujo acesso lhes permitiram parecer menos pobres comparados aos pobres da etiópia.

Não é novidade que nosso país é um dos mais marcados pelo sua discrepante desigualdade social, esta desigualdade é tema de novela e filmes clássicos como “Central do Brasil”, “Cidade de Deus” entre muitos outros que servem como fotografia das condições da população brasileira. No senso comum, podemos observar tendências de romantização da pobreza, dizer que a beleza do nosso país está na sua “diversidade” e achamos chique pendurar um retrato de crianças famintas na sala de casa e admirar a arte, outra que rotula e criminalizar a população periférica “todo morador de favela é bandido”, e outra que disfarçada de educativa é extremamente moralista “ensinar a pescar e não dar o peixe”. Todas bem base em valores que são os valores de uma classe dominante, que refletem e defendem a desigualdade social como pilares da estrutura da sociedade. Mas não é piedade que lhes falta, ou humildade, valores nobres que foram bagunçados ou perdidos pela modernidade, este é um projeto político, econômico e social da classe dominante representado por Bolsonaro, Dória, Witzel e tantos outros.

A pobreza não é normal e nem natural, ela é parte estruturante de um sistema perverso que necessita da pobreza para concentrar riqueza. É com ele que devemos acabar.

Assistente social e Assistência Social, qual a diferença?

A assistente social é a profissional graduado em Serviço Social, sua área de atuação são nas políticas públicas de saúde, habitação, previdência social, assistência social sejam elas estatais, controladas pelo estado, ou pelas entidades sociais como ongs, associações e até mesmo no setor privado.

É muito comum relacionar o trabalho do assistente social com caridade, filantropia ou até mesmo altruísmo. As estigmas do assistencialismo ainda são um desafio a serem superados pelo senso comum que confunde o trabalho do serviço social como caridade e o direito como ajuda.  Está lógica é resquício de um pensamento elitista de que aos pobres vale uma esmola ou a punição, além de seu caráter moral ela deseduca  a respeito de quem são os sujeitos de direito na sociedade capitalista.

A profissão é diferente da política de Assistência Social, no Brasil, esta política é prevista na Constituição de 1988 como sustentação do chamado tripé da Seguridade Social, as outras duas políticas que compõe este tripé são Previdência Social e a Saúde. Enquanto política foi regulamentada em 2004 a partir do PNAS (Política Nacional de Assistência Social) materializada e organizada pelo SUAS (Sistema Único de Assistência Social), que separa os serviços de assistência em proteção básica (CRAS), proteção de média complexidade (CREAS) e alta complexidade (instituições de longa permanência, vulgarmente chamado de abrigos, asilos).

Esta política é responsável também por regulamentar benefícios de transferência de renda como Bolsa Família e BPC (Benefício de Prestação Continuada), e assim como a Previdência e a Saúde é alvo do desmonte estratégico da ofensiva neoliberal. Regulamentada no auge no governo Lula, a assistência social fundamental para responder de forma imediata a situação da miséria social  se tornou o grande carro chefe dos anos dourados do petismo. O problema de Lula e dos governos do PT foi acreditar que era possível governar para todos, enquanto oferecia uma pequena quantia para o povo entregava milhões aos bancos.

Nojo aos pobres e a pobreza enquanto marketing eleitoral

É muito comum usar as pobreza ou lembrá-la quando é ano eleitoral. A caricata figura do candidato que aos mesmo tempo que posa ao lado dos pobres lava as mãos é renovada em versões de ridicularização como quando Dória faz cosplay de gari, ou Aécio Neves que em 2014 assume em alto e bom tom “Eu nunca fiz minha própria cama” marcando sua condição de playboy, até ao mais escancarado e misógino e genocida como a posição de Bolsonaro com o seu “E dai?” como resposta quando o Brasil superou a China em número de mortes diários. O nojo é recíproco, nós somos gente e gente faz história.

A crise sanitária que se aprofunda e junto com ela a crise internacional do capitalismo nos trás a tarefa de refletir os desafios da esquerda diante da extrema-direita e da direita tradicional que perto de Bolsonaro parecem cordeiros, mas que sabemos que são os abutres do capital financeiro. A esquerda que parece apática revela seu mais sério sintoma: a busca por uma saída por dentro de um sistema podre agenciado por uma elite racista, LGBT´fobica e machista.

A pobreza tão pouco deve servir como estratégia de marketing eleitoral como deve ser encarada como um problema social cuja a necessidade é reerguer os lucros para fazer novas concessões, primeiro a economia e depois os direitos sociais. Tão pouco deve ser tratada como moeda de troca por cargos e estruturação de direções de populares e chamar isso de trabalho de base, abandonando a disputa de uma consciência de classe daqueles e daquelas que são os mais atingidos pela necropolitica.

No dia do Assistente Social, queremos não só defender esta categoria que enfrenta a pandemia de Covid-19 nos serviços de assistência social, nos serviços de saúde e nas penitenciárias, queremos também, como parte do nosso projeto ético-político da profissão, defender aqueles que passam horas nas filas da Caixa, aquelas que são vítimas de violência doméstica, os que trabalham na saúde, nos mercados , nos serviços de limpeza, os que moram nas ruas, nossa defesa é também um projeto de defesa de classe, a nossa classe das trabalhadoras e trabalhadores. 


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