AmarElo: Através do prisma e entre os elos de Emicida

Álbum condensa diversas influências e evidencia a maturidade artística do rapper.

Iolanda Silva Barbosa 23 out 2020, 12:25

O Rap e seus expoentes brasileiros vivem um grande momento, tanto em produção quanto em reconhecimento nacional e internacional. Há poucas semanas, o rapper Emicida foi indicado ao MTV EMA ao lado de Djonga, que também é o primeiro brasileiro indicado ao BET Hip Hop Awards. Em 2018, ambos, junto a Mano Brown, Rincon Sapiência, Rael e BK, já celebravam, em “O céu é o limite”, o triunfo do gênero, afinal, “triunfo, se não for coletivo, é do sistema”.

Formado nas batalhas de improvisação da periferia de São Paulo, Emicida se consolida como um dos grandes nomes da nova geração do Rap brasileiro e, sem dúvidas, um dos maiores e mais diversificados aristas brasileiros da atualidade. Em sua participação no programa Roda Viva em Julho, na qual fez também importantes apontamentos sobre democracia real e outros temas fundamentais, Emicida ressaltou a importância do gênero Rap, especialmente enquanto “primeiro interlocutor entre a intelectualidade produzida pelo movimento negro e a classe trabalhadora”.

AmarElo, seu mais recente álbum e que neste mês completa um ano de lançamento, condensa diversas influências e evidencia a maturidade artística do rapper, num incurso pelo que ele denomina “neosamba”. Em onze faixas, o disco já se anunciava como obra de grande qualidade com os singles “Eminência Parda” e “AmarElo”, que resgatou, junto às vozes de Pablo Vittar e Majur, Belchior e seu “Sujeito de Sorte” para falar, entre outras coisas, sobre saúde mental.

Desde o princípio, Emicida deixou claro, através, por exemplo, do videoclipe “imPossível”, em que anunciou seu retorno aos estúdios, que o disco era fruto de “anos de imersão” e que buscava condensar experiências como a que ele viveu em suas viagens ao continente africano (em especial a Cabo Verve e Angola) e ao Japão, refletindo também sobre toda a sua trajetória artística até então. Depois de quatro anos do lançamento do aclamado Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa, Emicida retorna em AmarElo com a riqueza e força acachapantes de suas letras.

Em documentário com estreia prevista para Dezembro, AmarElo- é tudo para ontem, será possível compreender melhor a magnitude do projeto do disco, sobretudo em sua proposta política, ao recuperar, por exemplo, a trajetória da cultura negra no Brasil e episódios como a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978 e a própria Semana de Arte Moderna de 1922, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, mesmo palco da estreia do disco de Emicida em 2019.

“AmarElo”, muito mais do que alusão ao conhecido poema de Paulo Leminski, aponta para outras mil referências. Emicida reflete, por exemplo, que amarelo é “a cor mais contraditória e humana” e busca libertá-la do “estigma da fraqueza”. O repertório literário e imagético de que o disco lança mão contribuí para que ele seja, como definiu o próprio Emicida, “um micromultiverso”, a começar pela capa, uma fotografia de crianças Yanomami feita por Claudia Andujar.

Como dito, o disco se desdobra em um projeto muito maior: é um “experimento social” que, em totalidade, busca reunir respostas para vários dilemas de uma atualidade marcada por experiências intensas, como a pandemia e o isolamento social. O podcast Amarelo Prisma, por exemplo, reúne quatro episódios (tal como uma sinfonia, quatro “movimentos”): “Paz/corpo”, “Clareza/Mente”, “Compaixão/Alma” e “Coragem/Coração”, nos quais Emicida, com a colaboração de vários especialistas e ativistas, reúne informações que procuram orientar para uma vida mais saudável, na totalidade do complexo humano.

Segundo Emicida, essa plataforma objetiva, tal como sugestiona seu nome, “se projetar no mundo como um raio de luz”. As referências à Física, no entanto, não se limitam à imagem do prisma: compõem parte fundamental do disco, que é introduzido, por exemplo, por “Principia”, uma clara referência à célebre Philosophiae naturalis principia mathematica de Isaac Newton, datada do final do século XVII e uma das obras fundamentais das Ciências naturais, responsável por uma nova compreensão da relação entre os corpos e o universo. Além disso, a canção conta com a potente reunião das vozes das Pastoras do Rosário, Fabiana Cozza e Pastor Henrique Vieira, já anunciando o forte traço poético de AmarElo.

A poesia ganha ainda mais presença na declamação de “Ismália” por Fernanda Montenegro na faixa homônima, que marca, segundo Emicida, “a presença da morte”. Segundo o rapper, que nessa música também faz referência ao mito de Ícaro, a canção busca retratar o entrelugar racial, afinal, “ter pele escura é ser Ismália” e o “abismo entre si e a humanidade plena” parece ser o mesmo abismo sobre o qual sobrevoa Ícaro com suas frágeis asas.

Já “Eminência parda”, segundo Emicida, é “uma ressurreição”, além de uma reconexão com a ancestralidade. Primeiro single do álbum, é introduzida pelo “Canto II” de O canto dos escravos (1982), forte influência no disco e que sintetiza uma das propostas do álbum: um “salto na escuridão atrás da luz”.

O disco é também uma celebração da amizade- o que se demonstra principalmente na faixa “Quem tem um amigo (tem tudo)” com Zeca Pagodinho- e da parceria e colaboração artística de Emicida com diversos outros nomes, como Drika Barbosa, Larissa Luz e Mc Tha, evidenciando também a forte presença feminina no álbum.

 Emicida também ressalta em AmarElo a importância do silêncio, exaltado em potente videoclipe lançado simultaneamente ao álbum e que venceu o prêmio Ciclope Latino deste ano. A atenção às coisas singelas e detalhes da vida cotidiana, por sua vez, que tem crescente destaque na discografia do rapper, principalmente em Sobre crianças…, retorna com toda força em canções como “A ordem natural das coisas” e “Pequenas alegrias da vida adulta”, mas sobretudo em “Cananéia, Iguapé e Ilha Comprida”, que conta com a participação da filha mais nova do cantor.

A experiência da paternidade foi responsável também pela produção da canção “Amoras”, do disco de 2015, que acabou por se tornar um livro de literatura infantil que busca evidenciar e promover a potência, a beleza e autoestima da negritude, especialmente na infância. Recentemente, o rapper lançou ainda o E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas, em que busca falar às crianças sobre medo e coragem, luz e sombra.

 AmarElo- O filme invisível, outra faceta do projeto em torno do disco, conta um pouco dos bastidores de criação do álbum, suas influências e o processo criativo que lhe deram origem. Nele, Emicida conta que “AmarElo sempre foi pensado como um filme”, como um disco em que “tudo tivesse vida, onde tudo se mexesse”. Isso fica evidente pela própria trajetória pela qual o disco nos conduz, que parece, tal como descreve o rapper, caminhar junto com o sol ao longo de um dia.

 AmarElo realmente é, como define o próprio Emicida, “um disco sobre o futuro, sobre todos os futuros possíveis”. Ao dar forma, voz e movimento a sentimentos como paz, clareza, compaixão e coragem, e ao condensar diversas influências, sobretudo da cultura negra, o disco defende a fé “como motor da existência humana” e o potencial que reúne um prisma, em sua capacidade de (de) compor a luz que o atravessa.

Assim como o poema “Pensão familiar”, de Manuel Bandeira, outro diálogo proposto pelo disco, é necessário lembrar que “Os girassóis/amarelo!/resistem”, e AmarElo nos convoca a também resistir.


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