Março Feminista: A luta das mulheres pelo direito à água

Embora o direito à água esteja contemplado na constituição brasileira, a realidade da maioria das famílias brasileiras mostra que a segurança hídrica ainda é um horizonte distante.

As mulheres negras e periféricas são as que mais sofrem com a falta de saneamento ambiental e acesso à água no Brasil. Diante da pandemia, o debate acerca das desigualdades sanitárias brasileiras vem tomando cada vez mais centralidade nos cenários nacional e internacional. O  saneamento básico enquanto direito fundamental em plena pandemia se mostrou secundarizado pelos governos, escanteado e entregue à iniciativa privada, mesmo diante da urgência e necessidade em pautá-lo enquanto um serviço essencial para superar esta e novas possíveis pandemias.

O Censo do IBGE de 2010 apontou que o saneamento básico é considerado inadequado em pelo menos 28,3% dos domicílios urbanos brasileiros sob responsabilidade de mulheres. A falta de saneamento básico é uma das principais causas de incidência de doenças por veiculação hídrica nas mulheres. Dentre essas doenças, a diarreia foi a que mais levou as mulheres a se afastarem do trabalho, cerca de 3,5 dias por ano, em média. Meninas de até 14 anos são as maiores vítimas quando falamos em afastamento escolar, com índice de afastamento por diarreia 76% maior que a média em outras idades. Com a pandemia e a crise social, ambiental, econômica e política que vivemos, esses dados para 2020 e 2021 certamente serão ainda piores.

As diferenças abissais no acesso à água por parte da população devem ser consideradas como casos de racismo ambiental. Isso significa que são sistematicamente os grupos de mais baixa renda ou em situação de extrema pobreza aqueles que mais sofrem as consequências dos problemas ambientais decorrentes da falta de acesso à água, tanto em qualidade quanto em quantidade. A soma da emergência climática à privatização da água com o Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico aponta uma combinação que nos leva invariavelmente a um cenário dramático. Sem água, não há vida possível. É urgente repensarmos o modelo de gestão desse bem comum que deveria ser gerido com o objetivo de servir a sociedade de maneira democrática, transparente e participativa. Devido ao aumento de tensões e disputas envolvendo o acesso aos chamados recursos naturais, cientistas e lideranças em muitos países indicam que conflitos socioambientais serão cada vez mais frequentes no mundo pós-pandemia. Principalmente aqueles relacionados à água.

A relação dos conflitos pela água e a luta das mulheres não é algo recente na história. Muitas mulheres, em sua maioria negras e/ou em situação de extrema pobreza nas mais diversas regiões do mundo, precisam percorrer longas distâncias para encontrar fontes de água potável para a sua sobrevivência e a de sua família. Isso porque no contexto da divisão sexual do trabalho, são as mulheres as responsáveis pelos cuidados domésticos e consequentemente acabam assumindo a responsabilidade pela água nos seus lares. São elas que acabam assumindo a tarefa de acordar mais cedo para cumprir os afazeres da casa, preparar as refeições e garantir a água para a higiene da família.

No Maranhão, metade dos quilombos não possui acesso à água potável, forçando a comunidade a consumir água salobra, coletar água da chuva para beber ou deixando muitas mulheres responsáveis por carregar dezenas de litros de água em suas cabeças. Sem contar as grandes obras que atravessam terras quilombolas e indígenas, prejudicando o curso natural dos rios e corpos d’água que atravessam seus territórios. Isso nos mostra que o saneamento básico acaba sendo uma política pública praticamente ausente – quando não é nociva – da realidade da maioria das comunidades quilombolas e indígenas, deixando a saúde coletiva  dos povos tradicionais à sua própria sorte.

Já a população em situação de rua vive uma realidade ainda mais dramática, podendo ficar dias em desidratação profunda por não ter acesso ao mínimo de água para beber. Enquanto isso, dados da FAO apontam que cerca de 75% de todo o montante de água consumida no planeta vai para o agronegócio, um dos maiores responsáveis pela poluição de rios e nascentes no Brasil também. Quando o lucro de poucos fica acima da dignidade de muitas, mais uma vez temos na linha de frente lideranças de mulheres camponesas que lutam contra a exploração da terra e dos trabalhadores.

Embora o direito à água esteja contemplado na constituição brasileira e já tenha sido reconhecido por muitos documentos internacionais, a realidade da maioria das famílias brasileiras mostra que a segurança hídrica ainda é um horizonte distante. A chegada da covid-19 escancara a política assassina e racista por trás da mercantilização da água. Vale lembrar que antes de março de 2020 a situação  já era inaceitável, principalmente nas periferias. Contudo,  em um sistema que só aumenta o lucro de bilionários enquanto enterramos tantos entes queridos, o cenário se agrava e torna-se literalmente insustentável. A manutenção da lógica do sistema capitalista de exploração do planeta  e da vida a qualquer custo precisa ser impedida.

Nós mulheres seremos a linha de frente também para brecar esse avanço dessa catástrofe iminente, contra as condições de vida precárias dessas que hoje estão vivendo às margens, que estão vivendo no limite. Estaremos na defesa do saneamento máximo para todas, todos e todes! O presente precisa de uma alternativa que subverta a lógica do lucro acima da vida às custas da exploração da natureza. O futuro pede urgência no agora em defesa da vida. Esse futuro será ecossocialista e feminista ou não será.


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Pedro Micussi