PLC 26 de BolsoDoria: os negócios acima de tudo, o lucro acima de todos

O PLC 26 de João Doria coloca seu alvo no SUS, na escola pública, nos organismos da assistência social e atira com força seus explosivos. Trata-se de uma medida de desmonte profundo do serviço público e dos direitos da população.

“Enfrenta! Avança! Investe! (…) Doma os índios bravios! Rompe a selva, abre minas, vara rios!” Estes versos apologéticos da devastação, da violência, da perseguição, da subjugação, da riqueza a qualquer custo fazem parte do Hino do Estado de São Paulo – mais uma das tantas odes aos Bandeirantes e aos rastros de sangue e destruição que marcam a história paulista. Mais de 500 anos depois das ações criminosas de Borba Gato, Anhanguera, Raposo Tavares, João Ramalho e tantos outros, os meios de ação daqueles que detêm o poder no estado mudaram (ou nem tanto…), mas o mote da dominação autoritária, da sujeição e do lucro acima da vida se mantém intacto e firme. Desta vez é um outro João que de lá mesmo, do Palácio dos Bandeirantes, dá as ordens para retirar os parcos direitos que o povo trabalhador ainda tem.

Em um momento de aguda crise sanitária, econômica e social, apoiado em centenas de milhares de mortos por COVID-19 e milhões de desempregados no estado, o governador empresário, como um épico “desbravador”, coloca em seu alvo o SUS, a escola pública, os organismos da assistência social e atira com força seus explosivos. A bomba da vez está sintetizada no Projeto de Lei Complementar 26/2021 (PLC 26/2021), mais uma medida de desmonte profundo do serviço público e dos direitos da população.

O projeto é ainda mais perverso do que a reforma administrativa (PEC 32/2020) de seus supostos adversários, Bolsonaro e Paulo Guedes, tendo em vista que Doria já toma a reforma nacional como dada e avança a partir dela, considerando, por exemplo, que o fim da estabilidade do servidor público está próximo e facilita os mecanismos para demissão de funcionários, por meio da imposição de metas, do aumento da vigilância, do controle, dos instrumentos de punição e da desvalorização salarial, profissional e social dos trabalhadores. Diante das câmeras, Doria fala grosso contra Bolsonaro, porém, fechado em seu gabinete com ar condicionado, o governador aplaude o genocida e manda a boiada passar com a mesma truculência de seu aliado de campanha. A estabilidade é fundamental no exercício da função pública porque o servidor precisa ter autonomia em relação ao governo vigente para executar de forma adequada o seu trabalho. O servidor é pedra no sapato de autoridades corruptas. Se ele denunciar ilegalidades, não pode ser demitido. O fim da estabilidade do servidor é a garantia de estabilidade para aqueles que estão no poder e que agem contra o povo.

Com seus princípios de “gestor”, o tucano pretende solapar todo e qualquer vestígio da concepção de serviço público enquanto direito social básico de todos e todas e age para preparar o terreno para a maior privatização das áreas sociais. Segundo o texto enviado à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP), a medida “decorre de estudos”, mas não cita quais são esses estudos, apenas diz que foram feitos justamente pelas Secretarias da Fazenda e do Orçamento. Os argumentos, portanto, são todos econômicos e não dizem respeito às áreas mais impactadas pelo projeto, em especial a educação, a saúde, a assistência social. O propósito é todo utilitarista e mercantil. O PLC 26 foi encaminhado em regime de urgência para os deputados e se apoia em três eixos principais: a bonificação por resultado para todo o funcionalismo público (impulsionando maior aplicação da lógica empresarial), a criação de uma Controladoria geral (mais um órgão de disciplina, controle e punição) e a alteração na lei (1093/2009) que rege o professor temporário, chamado “categoria O” (reforçando a precarização acentuada do trabalho).

O PLC não prevê mais infraestrutura, mais profissionais concursados, mais verbas. É um projeto que pretende adequar ainda mais o serviço público às amarras da restrição de verbas, da emenda do teto de gastos por 20 anos (EC95), do sucateamento crônico. Não por acaso, a justificativa diz que é preciso ter “qualificação de prioridades compatíveis com os meios financeiros disponíveis”. Ou seja, o cobertor que já é curtíssimo vai diminuir ainda mais e os serviços públicos serão enxugados para se manter com migalhas. Definitivamente, entre Bolsonaro e Doria, o páreo é duro para ver quem precariza mais e faz mais medidas de austeridade. Esse projeto representa mudanças na espinha dorsal do serviço público, já que procura imprimir, do começo ao fim, a lógica empresarial da racionalização e da eficiência econômica acima de qualquer qualidade de atendimento à população. Por isso, apesar do aditamento encaminhado recentemente, que recua em alguns pontos, não bastam emendas, remendos ou alterações pontuais. O PLC 26 é um problema de conjunto e precisa ser combatido como um todo.

A farsa da política de bonificação por resultado

Um dos pontos mais destacados do PLC 26/2021 é a implementação e extensão da política de imposição de metas e bonificação por resultado para todo o funcionalismo público estadual.

Em primeiro lugar, a implantação de instrumentos de gestão empresarial nas áreas sociais, como a bonificação por resultados, é um engodo porque o norte que orienta os serviços públicos não é o do lucro, mas o do atendimento de qualidade à população. A escola, o hospital, o centro de saúde, a creche, o centro de referência de assistência social não são e não devem ser uma empresa. Tomemos como exemplo a proposição de construção de um hospital ou de uma escola nos rincões do estado, em uma região de difícil acesso e pouco adensada. Pela ótica empresarial, esse “empreendimento” não faria sentido, pois vai atender poucas famílias e poucas crianças em termos absolutos, não traria “otimização” ou “racionalização”, não seria “eficiente”, nem lucrativo. Seria um dispêndio grande de “gastos” para pouco “retorno”, diriam os “gestores” de plantão. Essa escola ou esse hospital dificilmente contribuiriam para cumprir metas quantitativas de resultados. Contudo, do ponto de vista do direito social, essa escola e esse hospital são extremamente necessários e fundamentais porque o serviço público precisa chegar para toda a população, sem distinção. O poder público tem a obrigação de garantir acesso de qualidade ao conjunto dos direitos sociais em cada cidade, região, bairro, periferia do estado, independente das possibilidades de “lucro”. Os critérios forjados para as empresas são completamente alheios à lógica do direito social para todas e todos. Esse exemplo também pode ser aplicado às grandes cidades, aos bairros distantes do centro, à zona rural.

Nesse mesmo sentido, qual seria a “meta” que um médico de um serviço público precisaria cumprir para acessar o “bônus por resultado”? Atender inúmeros usuários/pacientes em pouquíssimo tempo, em consultas que duram no máximo 5 minutos e receitam uma lista extensa de medicamentos e exames padronizados? A qualidade do serviço público não é medida com a métrica industrial, financeira ou comercial da “produtividade” ou “eficiência” estritamente marcadas pela quantidade, pela escala, pelo “mais com menos”. Na contramão desses índices, a qualidade do atendimento no SUS se mostra excepcional cotidianamente quando garante tratamento completo e digno para qualquer tipo de comorbidade das mais graves às mais simples. Tratamentos estes muitas vezes recusados pela iniciativa privada. A imposição de metas de quantidades é um atalho do governo para camuflar a falta de profissionais em número adequado: não se faz contratação por concurso público para assegurar o número de funcionários suficientes para atender toda a demanda da população em menos tempo e se joga a “culpa” do não cumprimento das “metas” para aqueles servidores que estão sobrecarregados na ponta do serviço.

Em segundo lugar, para as professoras e professores da rede estadual de ensino de São Paulo, a política do bônus não é nenhuma novidade. Há mais de uma década, a escola pública estadual convive com a lógica do bônus atrelado ao Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (IDESP), composto em grande medida, pelas notas tiradas por uma amostra de estudantes na prova do Sistema de Avaliação e Rendimento do Estado de São Paulo (SARESP). Em 2010, quando do início da implementação do bônus na rede estadual de ensino, o então governador José Serra disse:

“Estou convencido de que estamos fazendo uma revolução silenciosa, mas eficaz no sistema de ensino estadual. É daquelas mudanças das quais nós vamos nos orgulhar no futuro, que vai marcar época”¹

Hoje, mais de 10 anos depois, quais os efeitos dessa “revolução silenciosa” na escola pública? Quais as evidências de que o bônus melhorou a qualidade da educação oferecida pelo Estado? O que é evidente é o avanço da precariedade, expresso na falta de verbas públicas, nas salas de aula superlotadas, na falta de profissionais em número adequado, na fragmentação entre os professores, nas relações de trabalho corroídas, na absurda quantidade de contratos temporários e nos salários defasados. Desde 2013, não há concurso para professoras e professores da rede. Novamente, o governo não contrata mais profissionais e procura se eximir da responsabilidade, jogando o problema para aqueles que estão na linha de frente sem condições dignas de trabalho. A meritocracia fracassou de maneira retumbante, como diria o professor Luiz Carlos de Freitas (Unicamp). Além de estimular a competição entre os servidores, o bônus atua de modo a escamotear os verdadeiros problemas estruturais que assolam os serviços públicos e empurra para as costas dos indivíduos a culpabilização pelos limites impostos pelo próprio Estado à qualidade dos serviços. Uma suposta “premiação” que na realidade se mostra como uma punição e um estigma para as escolas que mais precisariam de atenção, política focada e investimento.

Arrocho salarial profundo

O novo pacote de maldades de Doria tem embutidas formas explícitas e implícitas de reduzir salários. A forma explícita, que estava contida no projeto original enviado à ALESP, era a redução direta do salário do professor temporário categoria “O”. Segundo a primeira versão do PLC 26/2021, este segmento de professores, que representa em média de 30 a 40% do total de cerca de 150 mil docentes da rede estadual de ensino, receberia apenas 90% do valor do salário base dos professores efetivos concursados. Cabe lembrar que o próprio salário base, antes mesmo de qualquer proposta de redução, já está extremamente defasado e, inclusive, ilegal, abaixo do valor estabelecido pela lei nacional do piso salarial dos professores (Lei 11.738/2008). Esta lei prevê reajuste anual de acordo com a inflação e, desde 2020, o governo Doria não aplicou esse reajuste e mascarou sua ilegalidade concedendo uma gratificação (que não é incorporada ao salário) para os professores que recebem abaixo do piso. Não por acaso, em São Paulo, estado mais rico do país, o salário dos professores é menor do que em 15 estados brasileiros. Essa é a forma como os educadores são tratados no Tucanistão: com desrespeito, desvalorização, precarização. Por conta da pressão, resistência e luta em defesa da educação pública, Doria voltou atrás nessa medida e encaminhou um aditamento à Assembleia Legislativa em que retira esse trecho da redução de salário dos categoria “O”. É aviltante e absurdo que o governador empresário tenha sequer cogitado reduzir salário de professores, em especial em um momento de profunda crise da educação agravada pela pandemia, com aumento dos índices de analfabetismo, defasagens no aprendizado e evasão escolar.

No entanto, as formas implícitas de redução salarial para todo o funcionalismo público, para além da área da educação, continuam recheadas no projeto de lei. A redução salarial é um eixo para todos os servidores, mesmo os efetivos. O sentido da política de Doria é estender as precariedades já existentes para os contratos temporários também para os concursados. Entre essas formas camufladas de não pagar salário podemos citar a instalação do banco de horas, que procura driblar o pagamento de horas-extra, o fim da correção anual do adicional de insalubridade, as maiores restrições para pagamento do abono de permanência aos aposentados que continuam na ativa, as alterações para dificultar o acesso à licença-prêmio, o fim dos abonos. Em relação a estes últimos, que têm sido motivo de propaganda para o governo difamar os servidores públicos, é importante ressaltar seu histórico: há décadas, o Estado reconheceu que pagava salário pelo equivalente a 30 dias de trabalho nos meses em que havia 31 dias; assim, os 6 abonos anuais se referem aos 6 dias do ano em que os profissionais trabalham sem receber. A retirada dessa conquista, portanto, é mais um modo de espoliar aquelas e aqueles que dedicam sua vida a garantir o funcionamento dos serviços públicos para a população.

Essa covardia de achatar salários dos profissionais que mantêm o dia a dia das instituições estatais se apoia em um único pressuposto: o de que os servidores públicos são “vagabundos”, “que não trabalham”, “que só ficam tomando suco de laranja em casa”. Ora, ora, os servidores públicos são aqueles que estiveram e estão na linha de frente do combate à pandemia, que fazem das tripas coração para garantir atendimento à população com pouquíssimo recursos e condições adequadas, que garantiram que a vacinação contra a COVID-19 de fato avançasse diante de tantos obstáculos, que usam de equipamentos pessoais para assegurar a educação, a saúde, o cuidado de nossas crianças, doentes, idosos, população mais vulnerável em cada canto desse estado, do Pontal do Paranapanema ao Vale do Ribeira.

Política do “perde-perde”

Quando um trabalhador ganha pouco, trabalha muito, em salas de aula ou hospitais superlotados, com condições precárias, em ambiente insalubre e ainda ouvindo humilhações cotidianas, certamente a qualidade do serviço diminuirá e haverá mais adoecimento desse profissional. Na justificativa do projeto de lei, João Doria argumenta que essas medidas são um “ganha-ganha” tanto para os servidores, quanto para a população. Com tamanhos ataques aos direitos sociais, essa política é mais um “perde-perde”. Afinal de contas, quem ganha com a redução de salário e de direitos de professores, de enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais? Os estudantes? As famílias? Os usuários do SUS? Aqueles que são atendidos pelos serviços da assistência social? Os aposentados? De maneira nenhuma. Todas e todos perdem. Perdem os alunos, perdem os professores, perdem os usuários do sistema público, perdem os profissionais, perdem as famílias. Quem ganha são apenas aqueles que ganham dinheiro vendendo educação, vendendo saúde, vendendo previdência, que ganham dinheiro às custas do sofrimento do povo, que pretendem privatizar todo o serviço público, que transformam nossos direitos em mercadorias, em ações na bolsa de valores, em grandes negócios lucrativos.

Se o empresário João Doria, dono de um patrimônio de quase R$ 200 milhões², gosta de metas, poderia iniciar por cumprir aquelas já estabelecidas e postergadas há 30 anos. Por exemplo, pelo fim do analfabetismo, pela universalização do ensino médio e da educação infantil, pelo fim do desemprego, pelo fim da fome, pela garantia do direito básico à moradia – mazelas sociais que só crescem a olhos vistos, intensificadas pela crise sanitária. Estas seriam as metas adequadas ao serviço público e às autoridades do Estado. Mas BolsoDoria já mostrou seu “apreço” pelos trabalhadores quando aprovou uma reforma da previdência ainda mais dura que a federal, com a truculência de bala de borracha e gás lacrimogênio sobre os servidores que protestavam. Enquanto Bolsonaro passa a boiada montado a cavalo ou em uma moto, Doria passa a boiada acenando no jatinho ou no iate.

É preciso, imperioso e urgente defender o serviço público diante da sanha privatista dos urubus que veem cifras onde há vidas lutando por dignidade.

¹ PSDB. SP paga R$ 655 milhões em bônus por resultado. Site oficial. São Paulo: 22 de março de 2010. Disponível em: https://www.psdb.org.br/acompanhe/noticias/sp-paga-r-655-milhoes-em-bonus-por-resultado. Acesso em: 24 de setembro de 2021.

²DEARO, Guilherme. Confira o patrimônio declarado pelos 12 candidatos ao governo de São Paulo. Exame, 07 de setembro de 2018. Disponível em: https://exame.com/brasil/confira-o-patrimonio-declarado-pelos-12-candidatos-ao-governo-de-sao-paulo/. Acesso em: 25 de setembro de 2021.


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Pedro Micussi