Nos Estados Unidos, que também seja lei

Nos Estados Unidos, que também seja lei

No último domingo, enquanto alguns bilionários atravessavam o tapete vermelho do Museu de Arte Metropolitana de Nova York homenageando a Gilded Age dos Estados Unidos, uma viagem no tempo de fato aconteceu: o aborto começou a descer degraus em direção à clandestinidade, mais uma vez.

Isabelle Ottoni 5 maio 2022, 13:05

O que é necessário para a manutenção de direitos sociais? Uma lei? Muitas leis? Um governo inteiro, talvez. Talvez a maioria no Senado. Talvez a maioria no Senado e na Câmara de Deputados. A Presidência, talvez. E um governo que advogue por pautas sociais. Pessoas nas ruas. Muitas pessoas nas ruas. E talvez pesquisas que digam: sim, a maioria é a favor da manutenção desses direitos. Quando se trata da saúde reprodutiva feminina, temos um sim para cada talvez. E, ainda assim, é chegado o momento de encarar as horas: os Estados Unidos pode por um fim aos abortos legais. 

No último domingo, enquanto alguns bilionários atravessavam o tapete vermelho do Museu de Arte Metropolitana de Nova York homenageando a Gilded Age dos Estados Unidos, uma viagem no tempo de fato aconteceu: o aborto começou a descer degraus em direção à clandestinidade, mais uma vez. Em um vazamento publicado pela revista Politico, juízes da Suprema Corte se preparam para votar, em junho, o fim da permissão ao aborto. 

Como chegamos aqui? Primeiro, Roe x Wade, a decisão sobre abortos legais, é um precedente jurídico, não uma lei. Em 1973 a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu que, quando se tratava do direito à escolhas no campo da vida privada, o aborto era parte disso. Uma escolha pessoal, com implicações pessoais. Por sete votos a dois, estava dado o precedente. Era o “direito ao respeito da vida privada, presente na 14ª Emenda da Constituição”. Outras decisões asseguram a manutenção do direito, como a Planned Parenthood v. Danforth. 

Nos anos 60, para uma mulher ter acesso ao aborto nos Estados Unidos, a gravidez teria que colocar a vida dessa mulher em risco. Ela precisaria, então, testemunhar frente a vários homens responsáveis por decidir se ela poderia ou não ter acesso ao procedimento. Em quase todos os casos mulheres só eram permitidas judicialmente ao aborto seguro se aceitassem também uma operação de esterilização. 

Trump e seus aliados preparam o terreno para o aborto voltar há ser clandestino desde seu primeiro dia como Presidente. Quando ainda era Presidente, todos os três indicados por Trump para a Suprema Corte tinham um objetivo principal: colocar em pauta a validade jurídica de Roe x Wade. Neil M. Gorsuch, Brett M. Kavanaugh e Amy Coney Barrett foram sabatinados em audiências do Senado, onde foram questionados sobre o tema e tergiversaram ao máximo. Para muitos senadores a favor da manutenção do precedente, era preciso acreditar na palavra dos novos juízes: eles disseram que não iriam modificar, então não iriam. A Sen. Susan Collins, do Partido Republicano, a mais votada da história do Maine, e defensora da legalização do aborto, deu seu voto em plenário atestando: eles me prometeram. Na política, promessa não é dívida.

Mesmo com a Roe x Wade, em 2017 só havia uma clínica funcionando em todo o Estado do Missouri. A médica responsável, Colleen McNicholas, era recebida todos os dias no portão da clínca onde trabalhava com manifestações de fanáticos religiosos, supostamente pró-vida, a ameaçando. Por lei, ela precisava fazer uma ultrassonografia nas pacientes e descrever o que via no útero da mulher, “para dar a chance da mãe ver que tinha um bebê e desistir do procedimento”. Agora, a tendência é que essas clínicas nem existam mais. 

O primeiro passo foi eleger o maior número de deputados, senadores, prefeitos e governadores que legislassem principalmente em duas frentes: o funcionamento da eleição norte-americana e a regulamentação do aborto. E o plano tem sido frutífero: Hoje, o Texas é o Estado americano com as leis mais restritivas de acesso ao aborto nos Estados Unidos. A Geórgia e a Flórida seguem pelo mesmo caminho. Hoje, no Texas, não há mais previsão legal de aborto em casos de estupro ou incesto. E o aborto só é permitido até seis semanas de gravidez. De acordo com a revista Scientific American, a maioria das mulheres ainda não terá descoberto que está grávida, enquanto algumas podem ter descoberto há, no máximo, uma semana[1]. A parte mais violenta do projeto Republicano é a regulamentação de um exército vigilante contra mulheres: qualquer cidadão pode denunciar na justiça uma mulher que fez um aborto fora da lei, e também a clínica e o médico que fizeram o procedimento. Até mesmo o motorista do Uber que a levou até a clínica pode ser processado. E ganhar até 10 mil dólares “de reparação”, mesmo que nunca tenham encontrado aquela pessoa na vida. Não é mais o Estado que está atrás dessas mulheres: qualquer residente do Texas se tornou vigilante do corpo das mulheres.

É esse cenário de Orwell encontra Huxley que a Suprema Corte pretende criar não só nos Estados Republicanos, mas em todo os Estados Unidos. No domingo, a revista Politico publicou o rascunho de um documento, vazado da Suprema Corte, que indica que os juízes votariam pelo fim da manutenção do precedente que permite o aborto. Na terça-feira (03/05), a Suprema Corte foi obrigada a admitir que o documento é autêntico. Redigido pelo juiz Samuel Alito, a peça é fundamentada em mentiras, desinformação e alguns absurdos dignos da República de Gilead.

Quando Alito diz que “A Constituição não faz nenhuma referência ao aborto, e por isso não deveria estar protegido por ela”, ele ignora que, quando a Constituição foi escrita, o aborto era legal. Alito também afirma que, dado que a maioria dos abortos é feito por mulheres negras, isso estaria promovendo uma eugenização dos Estados Unidos. Alito, que tem um currículo educacional excelente, não é ignorante. Ele só escolhe ignorar fatores que tornam essa estatística verdadeira: racismo sistêmico, salário proporcional da população negra e desemprego. A mortalidade gestacional de mulheres negras ser três vezes maior do que a de mulheres brancas também não é um problema que preocupa Alito. 

Mas, se os Republicanos estão se movimentando desde 2017, se a regulamentação em torno do aborto vem se tornando cada vez mais restritiva, se a opinião pública é a favor de uma lei definitiva, se há protestos enormes em todo o território exigindo isso… O que aconteceu? Por que o Partido Democrata, favorável ao direito de escolha da mulher, cruza os braços? 

Deputados e senadores Democratas enchem as redes sociais com a hashtag #VoteBlueIn2022. Com as eleições de meio de mandato acontecendo, a impressão que temos é que se precisa conquistar a maioria nas Casas Legislativas. Mas essa maioria já existe. O Partido Democrata controla a Casa Branca, o Senado e a Câmara. E, há anos, usa a legalização do aborto como pauta para conquistar votos. Em 2008, Obama disse durante toda sua campanha presidencial que, se eleito, tornar Roe x Wade uma lei seria sua “ação do Dia 1 de mandato”. São mais de 10 anos dessa promessa. Ele também tinha controle do Congresso, Senado e Casa Branca. Em 2012, disse a mesma coisa. “Freedom of Choice Act”, ele nomeou a futura lei. E milhões de homens e mulheres acreditaram e votaram nele. Mas, quando eleito, afirmou: “Não é a prioridade da minha legislatura”.

O Partido Democrata diz que precisa respeitar a diversidade de opiniões dentro do partido, e por isso não tem votos para aprovar nada. Mas isso não é um acaso, é uma escolha premeditada. Quando o Partido Democrata boicota candidaturas favoráveis ao aborto em favor de candidatos contra, esse é o resultado. Os limites da democracia burguesa não são novos. Em 2016, integrantes do Partido Democrata culparam a esquerda pela vitória de Trump. Enquanto isso, o vice de Hillary Clinton era um militante contra o direito ao aborto. E sim, são muitos os problemas que dificultam as votações no Senado e na Câmara. Mas, desde 1988, o Partido Republicano venceu apenas uma eleição no voto popular. E, ainda assim, controla oito, das nove cadeiras da Suprema Corte. Não é azar, acaso ou má sorte. 

Culpar os eleitores é uma estratégia simplista. Foram eles que fizeram Hillary ganhar no voto popular em 2016. Se o sistema é ruim, é preciso mudar o sistema. Mas, sempre que tem a chance, o Partido Democrata opta pela manutenção do poder e deixa o vespeiro para depois. Em 2020, a população ocupou as ruas, bateu de porta em porta, enfrentou o risco da pandemia e deu à Presidência a Biden. E agora? 

O Partido Democrata precisa agir. Se a legislação não ajuda, que comecem se movimentando para modificar a legislação. Promover hashtags eleitorais no Twitter enquanto mulheres temem que podem ser presas ao fazer um aborto ilegal não pode ser a única ação. O tempo é agora. O aborto precisa ser lei. E o Partido Democrata pode fazer isso agora ou cruzar os braços enquanto mulheres voltam 50 anos no passado. Que Sea Ley!


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