Os passos da descolonização da Guiana Francesa
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Os passos da descolonização da Guiana Francesa

O país vizinho é palco da última luta de resistência anticolonial na América do Sul

Adrien Guilleau 20 mar 2024, 19:30

Foto: Elizabeth Mahony 

Via Inprecor

Há quase dois anos o partido independentista da Guiana Francesa MDES (Movimento para a Descolonização e a Emancipação Social) elegeu um dos seus fundadores, e ex-secretário geral, Jean-Victor Castor para a Assembleia Legislativa francesa. A seguir, uma avaliação do avanço do processo decolonial na Guiana Francesa. A eleição de um deputado independentista não tem precedente na Guiana, e isso abre novas possibilidades.

Este processo integra dois elementos complementares, a evolução institucional do território guianense e um lado, e o reconhecimento internacional da Guiana como colônia de outro lado. O processo de evolução institucional voltou a ser pautado com os Acordos de Guiana de 2017, e o processo de reintegração da Guiana na lista da ONU dos países a serem descolonizados ganhou uma certa dinâmica nos últimos meses. Como veremos, os militantes da Quarta Internacional, devido ao posicionamento político estratégico deles no nosso vizinho, o Brasil, poderiam ter um papel importante neste processo.

A evolução do estatuto da Guiana

A Guiana vira um departamento francês

Em 1946, ao sair da guerra, o governo francês, integrado por ministros comunistas, transforma as “velhas” colônias da Guiana, Martinica, Guadalupe e Reunião em departamentos franceses. Sob pretexto de um assimilacionismo que deveria conferir um tratamento igual para os franceses da metrópole e os habitantes das colônias, poucas vozes se levantaram para condenar este endurecimento da situação colonial que então impedira estes territórios de se beneficiar da onda de descolonização dos anos 50 e 60.

O surgimento de movimentos autonomistas e de independência

Não demorou 15 anos para que a ilusão de assimilação se dissipasse. Em 1962, quando a França estava perdendo sua principal colônia na Argélia, o deputado autonomista da Guiana, Justin Catayée, pediu um “status especial” para a Guiana Francesa. Por meio de uma frente política e sindical, um movimento popular viu mais de 2.000 pessoas manifestaram pelas ruas de Caiena, um número significativo para uma população de menos de 50.000 habitantes. Após a morte repentina de Catayée na queda do avião que o levava de volta a Caiena, o movimento esmoreceu. No entanto, a demanda por independência e autonomia se enraizaria por muito tempo na vida política e sindical da Guiana Francesa. A CGT (Confederação Geral do Trabalho) se dissolveu e se transformou na UTG (Uniao dos Trabalhadores Guianenses) em 1967, e a palavra de ordem da independência da Guiana foi adotada em seu congresso de 1971. Ao mesmo tempo, surgiram vários grupos políticos pró-independência. Alguns deles queriam recorrer a luta armada, mas sempre tiveram uma importância marginal. Após várias ondas de prisões de ativistas pró-independência, o movimento perdeu força na década de 1980.

A criação do MDES

Em 1991, militantes da UTG decidiram fundar a revista Rot Kozé, em torno do qual o MDES logo seria estruturado. Após movimentos sociais de grande escala em 1992 e 1996, a questão da autonomia da Guiana voltou à tona. A eleição de vários dirigentes do MDES para o Conselho Geral e o Conselho Regional vai dar mais visibilidade à proclamação dessa reivindicação. Deve-se observar de passagem que, estrategicamente, o MDES não estava pedindo a independência imediata da Guiana Francesa, mas uma autonomia maior para que ela pudesse formar uma estrutura estatal embrionária antes de conquistar a independência. Essa posição “estatista”, embora passível de críticas, foi a que pareceu mais realista para os ativistas do MDES, à luz do que aconteceu em outras colônias francesas, como Kanaky [ou Nova Caledónia como o colonizador insiste em chamar este arquipélago do oceano Pacifico] e o vizinho Suriname.

O referendo de 2010

O governo francês então apresentou algumas contramedidas, primeiro forçando o surgimento de um consenso entre os representantes eleitos da Guiana pedindo uma mudança de status, o que foi bloqueado pela direita de Chirac, cujo intermediário era o prefeito de Saint-Laurent-du-Maroni, Léon Bertrand; depois, forçando a organização de um referendo, que foi realizado quase 10 anos depois! Em 2010, após uma campanha baseada em manipulações[1] pelo novo presidente regional Rodolphe Alexandre, que havia prometido lealdade a Sarkozy, o status de autonomia da Guiana Francesa foi rejeitado em um referendo no qual apenas 48% dos eleitores compareceram.

Os acordos da Guiana

Após esse referendo, a questão da mudança do status da Guiana Francesa parecia estar enterrada por um longo tempo. No entanto, a agitação generalizada de 2017 colocou esse processo decolonial de volta na agenda. Ao publicar os acordos da Guiana Francesa no Journal Officiel, que estipulam explicitamente que qualquer mudança no status da Guiana Francesa estará sujeita a um referendo, o movimento social reabriu a questão da mudança institucional. A partir de então, o Estado e seus representantes políticos locais se mobilizaram para impedir que o acordo fosse respeitado. Rodolphe Alexandre, que havia sido derrotado no referendo de 2010 e foi renomeado para chefiar a nova autoridade local única, usou todo o seu poder para desacelerar o processo. Entretanto, a pressão popular continua forte. A convocação de uma greve geral para o congresso de representantes eleitos em janeiro de 2021 forçará a classe política a chegar a um consenso sobre uma solicitação ao governo francês para uma mudança de status

Um ressurgimento político decolonial

Alguns meses depois, uma coalizão de esquerda expulsou Rodolphe Alexandre, o principal representante do poder colonial. O novo presidente do CTG [Conselho Territorial da Guiana], Gabriel Serville, embora moderado, assumiu a questão da mudança do estatuto A eleição de dois novos deputados guianenses[2] acelerou o processo, e um acordo sobre o método foi alcançado com o Ministro da França Ultramarina em setembro de 2022, prevendo um referendo e a consagração do novo status da Guiana na Constituição até 2024. No entanto, alguns meses depois, o governo deu uma reviravolta, recusando-se a assinar o acordo metodológico e anunciando que a revisão constitucional de 2024 diria respeito apenas a Kanaky. Ao mesmo tempo, os presidentes das várias “regiões ultramarinas” redigiram o “Apelo de Fort-de-France”, pedindo mudanças institucionais em todos os territórios envolvidos. O Estado então criou uma nova instância chamada CIOM (Comité interministériel des Outre-mer – Comitê Interministerial do Ultramar), que propôs um catálogo de medidas destinadas a combater os males dos territórios ultramarinos, todas compatíveis com o status colonial dos departamentos. A ultima reunião do CIOM, realizada em novembro, foi a ocasião para um discurso duro do deputado Castor, que lembrou ao governo francês que a Guiana Francesa não precisava de pequenas medidas, mas de autonomia ampla e total para lidar com os problemas que o Estado não queria administrar [3]. Ao mesmo tempo, os deputados guianenses estão mantendo a pressão, organizando o apoio popular e preparando novas ofensivas sociais. O ultimo comício em conjunto dos dois deputados atraiu mais de 1.000 pessoas. Jean-Victor Castor defendeu a necessidade de criar uma relação de forças diante do Estado e de suas instituições fracassadas para possibilitar o desenvolvimento econômico, enquanto Davy Rimane deu mais ênfase à importância da “comunidade de destino”[4] e às batalhas a serem travadas para o desenvolvimento de infraestruturas de saúde e educação.

Perspectivas

No momento, é difícil saber como a situação se desenvolverá. Todos os indicadores sociais e econômicos estão no vermelho. A insegurança, tendo como pano de fundo o tráfico generalizado de cocaína, está em um nível altíssimo. A pobreza afeta mais da metade da população oficialmente registrada. Milhares de migrantes, alguns dos quais estão na área há muitos anos, encontram-se em situações econômicas insustentáveis devido a falhas por parte da prefeitura em relação à renovação e à alocação de permissões de residência. O isolamento de 30.000 a 50.000 pessoas no interior da Guiana Francesa tornou-se insuportável desde a falência da Air Guyane. O saque de recursos pesqueiros e de mineração está em seu auge. O envenenamento por metais pesados é generalizado entre as populações expostas ao garimpo ilegal de ouro. Essa situação explosiva deixa antecipar uma próxima explosão social, como a de 2017.

Ainda é difícil dizer o que a cristalizará e quando ela ocorrerá, mas a situação se deteriorou demais para permanecer estável. Ao mesmo tempo, todos os representantes eleitos da Guiana estão unidos, por enquanto, na questão das mudanças no status da ilha, deixando ao Estado pouca margem de manobra no caso de outra explosão social. Portanto, o momento é propício para uma demonstração de força com o governo sobre a questão decolonial.

A reintegração da Guiana Francesa à lista da ONU de países a serem descolonizados

O estatuto colonial dos “departamentos ultra-marinos”

Com a publicação, em 1946, do decreto que transformou as “antigas colônias” em departamentos franceses, a França obteve a remoção desses quatro territórios da lista da ONU de países a serem descolonizados. Desde então, nenhuma dessas colônias conseguiu reverter a tendência e integrar novamente esta lista. Martinica, Guadalupe, Reunião e Guiana Francesa permaneceram atreladas ao Artigo 73 da Constituição Francesa, que é o artigo que dá menos autonomia aos territórios “ultramarinos”. A diferença entre o período colonial e o status “departamento” é tão tenue que, até 1969, o prefeito da Guiana Francesa era também o que o governador do Inini, uma subdivisão que cobria 80% do território na época, com exceção da faixa litorânea. Todas as leis e regulamentos franceses se aplicam a esses quatro territórios, cujas realidades são muito diferentes das da França.

Kanaky e Polinésia na lista de territórios a serem descolonizados

Para alcançar a independência, é necessário realizar um trabalho diplomático real. Essa diplomacia deve primeiro levar ao reconhecimento oficial como um território a ser descolonizado, permitindo que a ONU supervisione o processo de descolonização. Esse é o caminho seguido por Kanaky desde 1988 e pela Polinésia desde 2013. Entretanto, como vimos com Kanaky, o processo de descolonização pode não ser bem-sucedido após os referendos sobre autodeterminação. A Polinésia conseguiu a façanha de ser reintegrada à lista de territórios a serem descolonizados por meio de intensa diplomacia com seus vizinhos próximos, que então defenderam sua causa na ONU. Agora, um processo de descolonização deve ser realizado com o Estado francês, que até pouco tempo atrás se recusava a reconhecer essa reintegração.

O Grupo da Iniciativa de Baku

Em julho de 2023, o Azerbaijão decidiu reunir países não alinhados no “Grupo da Iniciativa de Baku”. Esse grupo convidou representantes de todos os territórios sob o domínio colonial francês para dar a eles uma plataforma e apoio na ONU. Essa abordagem atípica estava ligada ao conflito entre o Azerbaijão e Nagorno-Karabakh e a vizinha Armênia, que era apoiada pela diplomacia francesa. Para relembrar, Nagorno-Karabakh, que tem maioria armênia, conquistou a independência quando a URSS entrou em colapso, com o apoio da Armênia, criando uma humilhação nacional para o Azerbaijão. Seguindo uma lógica nacionalista autoritária, a república dinástica do Azerbaijão anexou Nagorno-Karabakh em setembro passado. Ao oferecer essa plataforma para as colônias francesas, o Azerbaijão está tentando forçar diplomaticamente a França a aceitar a anexação. Essa ação, embora não seja muito gloriosa, abriu uma janela de oportunidade diplomática para as colônias francesas. Na última Assembleia Geral da ONU, pela primeira vez, o representante francês permaneceu na sala durante o discurso do representante polinésio, um sinal do início do reconhecimento da Polinésia como um território a ser descolonizado. Ao mesmo tempo, uma delegação guianense pôde dialogar com representantes da ONU e alguns países não alinhados. Finalmente, em 14 de dezembro, o Grupo de Baku permitiu a realização de uma conferência reunindo os representantes independêntistas[5] das últimas colônias francesas em Genebra, que terminou com uma resolução final na qual eles pediram à ONU o fim ao seu estatuto colonial.

No entanto, embora o Grupo de Baku ofereça um fórum para os representantes da Guiana, não podemos nos contentar com essa situação, que é temporária e uma fonte de compromisso campista. A normalização das relações entre a Armênia e o Azerbaijão, que já começou, pode levar ao desaparecimento do Grupo de Baku. Isso é ainda mais provável porque a república de Nagorno-Karabakh nunca foi reconhecida por nenhum país. Por outro lado, existem vídeos de ativistas nacionalistas da Martinica e de Guadalupe glorificando o exército e o presidente herdeiro azerbaijano [em 2003, doente, o então presidente Heydar Aliyev nomeou o próprio filho primeiro-ministro e impulsionou sua candidatura a Presidência] pela anexação de Nagorno-Karabakh. Como se houvesse algo de glorioso na anexação de uma república de 150.000 habitantes, que conquistou sua independência em uma luta pela autodeterminação, por um país de 10 milhões de habitantes!

Por fim, a resolução final em Genebra termina com um tributo “aos povos de Mali, Burkina Faso e Níger para que se livrem da pilhagem de seus recursos e da dominação francesa e imperialista” e um tributo à conquista do Azerbaijão na obtenção da COP29, ignorando, por um lado, as juntas militares autoritárias que realizaram golpes de estado antidemocráticos e o imperialismo russo que está tomando o lugar do imperialismo francês e, por outro lado, evacuando todas as críticas a Baku, o principal exportador de gás na Europa, cujo impacto previsível na próxima COP provavelmente será catastrófico. Essa posição campista provavelmente enfraquecerá o campo pró-independência. Recentemente, o jornal Marianne publicou uma manchete intitulada “Viagens com todas as despesas pagas por dois deputados dos territórios ultramarinos franceses ao Azerbaijão para denunciar o colonialismo francês”, em que Jean-Victor Castor foi o principal alvo por sua participação no Grupo de Baku em julho passado. Podemos esperar ataques muito mais ainda virulentas nos próximos meses por parte da mídia apoiadora do poder colonial, e isso será facilitado devido à extensão dos compromissos campistas.

Mobilizando as redes da Quarta Internacional?

No caso da Guiana Francesa, um território continental da América do Sul, a questão dos vínculos diplomáticos com seus vizinhos é crucial. Temos companheiros em um número significativo de países sul-americanos e é preciso estabelecer vínculos. Em primeiro lugar, os companheiros do MES e do Semente que atuam no PSOL brasileiro têm uma posição estratégica importante. De fato, o PSOL administra várias cidades de porte, como Belém, cujo estado faz fronteira com a Guiana. Uma ministra do governo Lula é filiada ao PSOL. Portanto, temos um ponto de entrada que pode nos permitir sensibilizar o governo brasileiro a apoiar a reintegração da Guiana Francesa na lista da ONU de territórios a serem descolonizados. Os contatos iniciais já foram feitos, os companheiros do MES entrevistaram o secretário-geral do MDES no último Fórum Social Pan-Amazônico em Belém. Cabe a nós trabalharmos juntos para garantir que esse projeto seja bem-sucedido e que a última colônia continental das Américas recupere sua liberdade!


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