A complicada entrada de Gabriel Boric na segunda metade de seu governo
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A complicada entrada de Gabriel Boric na segunda metade de seu governo

O governo chileno enfrenta impasses cinco anos depois da explosão social que parou o país em 2019

Consuelo Ferrer 22 maio 2024, 08:00

Via Sin Permiso

A crise de segurança que aterroriza o público teve um impacto na modificação da agenda que havia sido prometida na campanha.

No Chile, há algum tempo, todos os cães pretos são, até certo ponto, o mesmo cão: vira latas – um cão de rua, sem raça – imprudente e com um lenço vermelho amarrado no pescoço. É uma imagem icônica que transcendeu para murais, pôsteres, cartazes de protesto e até se tornou uma estátua de homenagem de três metros.

O cão “matapacos” ficou conhecido por latir para a polícia – daí seu nome, já que os Carabineros são popularmente chamados de “pacos” – nos protestos estudantis de 2011 nas ruas de Santiago, mas morreu antes que sua figura fosse adotada pelo movimento social que liderou a explosão de 2019.

Os noticiários não se atreviam a dizer seu nome, mas nas passeatas o reivindicavam como um herói popular que encarnava o espírito do movimento. Seu rosto, com a língua de fora e os olhos sorridentes, é um cartão postal do convulsivo, surpreendente e outrora esperançoso 2019 chileno. Quase cinco anos se passaram desde aquele outubro, com dois processos constitucionais fracassados e uma pandemia no meio.

Sebastián Piñera, o presidente em exercício durante as mobilizações, morreu em um acidente de avião em fevereiro deste ano. Certa vez, em 2021 e no meio da campanha presidencial, o então candidato Gabriel Boric disse em um debate televisionado: “Sr. Piñera, o senhor foi avisado, será processado pelas graves violações de direitos humanos cometidas durante seu mandato”.

Já em setembro de 2023, o agora presidente Boric esclareceu que não acreditava que seu antecessor tivesse “ordenado especificamente algum tipo de violação dos direitos humanos”. “Ele defendia ideias diferentes das do nosso setor e também tinha uma interpretação da explosão social de 2019 que era diferente da minha, e agiu às vezes de uma forma da qual eu discordava, mas sempre, repito, sempre, usando os mecanismos da democracia e da Constituição”, disse ele mais tarde, em seu funeral.

É por isso que nem todos ficaram surpresos com a declaração do Presidente Boric em uma entrevista à Associação de Radiodifusores do Chile na quinta-feira, quando ele foi questionado sobre um novo episódio na crise de segurança do país: o assassinato de três policiais no sul no final de abril.

“Nunca entendi a imagem grosseira daquele cachorro, o cachorro ‘matapacos’, como era chamado. Vocês nunca encontrarão uma declaração minha comemorando ou se gabando disso”, disse o presidente. Mas alguns registros apareceram: uma foto antiga de seu computador com um adesivo do cachorro, por exemplo.

Não se pode dizer que foi por causa disso, mas na segunda-feira a pesquisa Plaza Pública divulgada pela consultoria Cadem, uma das mais respeitadas do país, mostrou uma queda de seis pontos na aprovação do presidente, que atingiu seu pior nível (24%).

“Acho que o presidente tem menos apoio do que quando foi eleito. Provavelmente, as pessoas que votaram nele e são de esquerda não concordarão com a forma como o governo tem sido administrado. Não vejo, no momento, nenhum apoio que tenha sido acrescentado”, diz Mireya Dávila, acadêmica da Escola de Governo da Universidade do Chile, enquanto Marco Moreno, professor da Universidade Central, enfatiza que Boric tem uma base sólida de apoio que não diminuiu. “É uma aprovação sólida e consistente, mas não é suficiente para poder governar: ele precisa romper esse cerco de aprovação limitado apenas aos seus seguidores”, diz ele.

“Esse apoio mais sustentado tem a ver com questões mais estruturais, como as reformas propostas por seu governo para o sistema previdenciário. Essas são justamente ações que são controversas e geram debate, mas que, ao mesmo tempo, tendem a consolidar um núcleo estável de apoio entre aqueles que veem essas iniciativas como necessárias para a mudança estrutural no Chile”, diz Susana Riquelme, acadêmica do Departamento de Administração Pública e Ciência Política da Universidade de Concepción.

O governo de Boric também obteve triunfos simbólicos e sem precedentes: a aprovação da lei para reduzir a semana de trabalho de 45 para 40 horas e o salário mínimo para US$ 532, ambos os quais serão introduzidos gradualmente. Também foi aprovada a lei que torna obrigatório o pagamento de pensão alimentícia aos pais e outra medida, conhecida como “co-pagamento zero”, que permite que os cidadãos membros do Fundo Nacional de Saúde tenham acesso a atendimento médico totalmente gratuito.

Ele também conseguiu aprovar o royalty de mineração, que finalmente redireciona parte dos lucros obtidos pelas empresas de mineração para as comunas afetadas por suas operações, bem como para outras localidades com maior vulnerabilidade social.

O governo de Boric também criou 500.000 novos empregos, reduziu a inflação e os índices de pobreza. Mas, ao mesmo tempo, a questão discursiva persiste.

Riquelme também enfatiza que o declínio atual coincide com “situações e decisões adversas que monopolizaram a opinião pública e os diferentes debates políticos, questões de alto impacto na mídia e tragédias que aumentaram o nível de choque na opinião pública”, como o assassinato dos três policiais.

Quanto a seus comentários sobre a figura do cachorro, o analista diz que “isso gerou críticas e distanciamento em parte de sua base de apoio, porque há reticência em relação ao que eles percebem como mudanças em sua postura ou abandono dos símbolos populares que fazem parte das mobilizações sociais”.

Mas também não se trata apenas do cachorro, mas do que sua figura personificava: oposição a uma força policial repressiva e questionada, que o próprio Boric prometeu “refundar”. Desde sua chegada a La Moneda, nenhum projeto específico foi formalmente apresentado, nem de refundação nem de reforma.

Essa falta de resposta às demandas de sua base de apoio derivada dos movimentos sociais coexiste com uma delicada situação de segurança que mantém a população com medo: a mesma pesquisa da empresa de consultoria Cadem mostra que as duas instituições mais bem avaliadas pelos cidadãos são os Carabineros (79%) e as Forças Armadas (68%), e em novembro passado a Pesquisa Urbana Nacional de Segurança Chilena mostrou que a percepção de insegurança no país chegou a 90%, a mais alta em uma década. O assunto é tema de conversas, programas de notícias, colunas de opinião, bate-papos no trabalho e reuniões familiares.

Esperava-se também que o diretor geral dos Carabineros, Ricardo Yáñez, que foi nomeado em meio à explosão social, fosse formalizado nesta terça-feira pela responsabilidade atribuída a ele pelas violações dos direitos humanos durante esse período. Esse seria um marco que poderia ter marcado o início da segunda metade do governo, que completou seu segundo mandato de quatro anos em março, mas a audiência foi adiada para outubro.

Também se falava que ele renunciaria uma semana depois do Dia do Carabineiro, que acontece todo dia 27 de abril, mas esse foi o dia em que o país acordou com a notícia do triplo assassinato. “Nisso todos nós somos necessários, e certamente também o general Yáñez”, disse o presidente Boric em uma entrevista coletiva concedida juntamente com a autoridade policial.

Gabriel Boric, explicam os especialistas, está em uma encruzilhada: cumprir suas promessas de campanha e tomar medidas a respeito da polícia ou dar mais apoio às instituições encarregadas de administrar a segurança que ameaça a sensação de bem-estar dos cidadãos. De certa forma, as duas opções estão em desacordo uma com a outra.

A metade de seu mandato e a iminência de sua segunda prestação de contas pública – que ocorrerá no Congresso Nacional na quinta-feira, 1º de junho, e que, além disso, significou uma reviravolta nas pesquisas no ano passado – podem ser um ponto-chave para essa decisão.


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