O cenário do segundo turno nas eleições uruguaias
Entrevista exclusiva com Cecilia Vercellino, senadora suplente eleita pela Frente Ampla uruguaia, sobre o cenário político do país perante as eleições
Foto: Cecilia Vercellino (PVP/Reprodução)
Entrevistamos a líder do Partido pela Vitória do Povo (PVP) e do movimento de professores e educação, Cecilia Vercellino, recentemente eleita senadora suplente pela lista da Frente Ampla (FA). Agradecemos a sua disposição e estamos atentos à situação no Uruguai, que está passando por uma eleição polarizada, em um segundo turno em poucos dias, com possibilidades reais de a voltar ao poder.
1) Que elementos políticos dominaram o cenário eleitoral no primeiro turno?
Dada a falta de propostas e de debate de ideias, a única coisa que propôs uma diferença substantiva em termos de ideias substantivas foi o Plebiscito sobre a Seguridade Social (SS), que se tornou um elemento central. Durante toda a campanha, houve uma preocupante ausência de propostas programáticas, sendo que o principal eixo de discussão da campanha acabou sendo a Previdência Social e o Plebiscito, apesar de setores importantes não o desejarem. As câmaras empresariais e a mídia estavam mais preocupadas com o que aconteceria com o plebiscito do que com o resultado eleitoral em termos de partidos políticos.
Nesse contexto, houve grande apatia e desmobilização, o que foi particularmente notável para os grupos militantes de esquerda acostumados a cobrir a cidade com bandeiras e a se mobilizar ativamente nessa fase. Parte do que observamos é que a campanha da esquerda, sobretudo por parte do candidato, era de que não havia e não haveria, se ele ganhasse as eleições, grandes diferenças com o modelo que governa atualmente, algo que gera profunda resignação. O próprio Yamandú Orsi disse isso na Argentina, em um evento durante a turnê de campanha.
Outra das principais fraquezas da FA, para nós, é que ela não apoiou a proposta do Plebiscito SS, algo inédito na história da esquerda. Isso gerou mais distanciamento entre a FA e as bases sociais, cuja grande maioria votou Sim à Previdência Social: 70% dos que votaram na FA votaram a favor do plebiscito sobre a previdência social, ao contrário do que diziam seus líderes, que publicamente pediam para votar contra. A ofensiva contra o plebiscito, por parte da direita, o que era de se esperar, mas também por parte da esquerda, gerou confusão e incompreensão nos setores populares que votam na FA.
2) Conte-nos um pouco sobre as votações nas câmaras (Senado e Deputados)
De acordo com as regras eleitorais do Uruguai, a Frente Ampla (FA) é um partido único, enquanto os partidos da coalizão de direita, atualmente no governo, concorrem como partidos separados com seus próprios candidatos, que não acumulam votos por estarem fragmentados. Isso permitiu que a FA, com 44% dos votos, obtivesse a maioria absoluta no Senado, 16 senadores de 30, e na Câmara dos Deputados, 48 deputados de 99, dois assentos a menos que a maioria. A maioria dos senadores e deputados da FA será do MPP (Espacio 609, a lista histórica de José Mujica e do candidato Yamandú Orsi), o que o torna a principal força da FA com hegemonia absoluta.
A coalizão de direita obteve um total combinado de 49 deputados. O principal candidato pró-governo, Álvaro Delgado, do Partido Nacional (PN), foi o vencedor das eleições internas da coalizão, obtendo 27% dos votos, 15% a menos que o candidato da FA.
Uma boa notícia que, embora esperada, foi o colapso eleitoral do Cabildo Abierto, um partido militar nacionalista de direita que havia obtido 11% dos votos em 2019 e agora tem 2,5%.
Os dois assentos de deputado restantes (que não foram para a FA ou o PN) foram para a Identidad Soberana do advogado Gustavo Salles, com 2,7% dos votos, uma novidade eleitoral nesta campanha. O surgimento desse personagem conservador, antivacina e supostamente antiestablishment antecipa mais dificuldades do que soluções, com a seguinte frase “o parlamento é a caverna daqueles que vendem seu país” inaugurando sua participação. Ao mesmo tempo, a esquerda fora da FA tem uma votação escassa, com 0,4%, não conseguindo entrar no parlamento.
Esse panorama parlamentar é de negociação iminente para obter maiorias para aprovar projetos de lei. Se a FA vencer, será preciso ver com quem e o que ela decidirá negociar.
3) Além das eleições, também temos plebiscitos. Essa medida interessante ajuda muito a politizar o eleitorado. Explique um pouco sobre o contexto e quais são os tópicos dessa consulta popular.
Os plebiscitos nessa ocasião foram dois, um sobre a Seguridade Social (SS), que propunha colocar a SS na Constituição como um Direito Humano, e que foi promovido pela Convenção Única dos Trabalhadores, o PIT-CNT, e movimentos sociais e estudantis; o outro que foi proposto foi o que buscava permitir as batidas noturnas também modificando a Constituição. Essa proposta saiu do Parlamento com uma maioria de legisladores de direita. Uma (SS) surgiu de baixo para cima como uma resposta defensiva a uma lei aprovada pelo governo de Lacalle Pou, que implica um ajuste fiscal sobre os trabalhadores; a outra (a segunda) foi uma medida oportunista de cima para baixo, ligada à exploração dos medos e preocupações legítimos das pessoas com relação à (in)segurança. Essa proposta foi perdendo peso e gravidade no discurso e no cenário eleitoral e, felizmente, foi derrotada, o que significa vencer a lógica punitiva que restringe direitos e aumenta o autoritarismo do Estado como suposta solução para os problemas da violência e do tráfico de drogas.
O Plebiscito SS propunha incorporar à Constituição da República 3 medidas cautelares que iam contra a lei votada pelo atual governo, mas muito além: vincular, vincular as pensões mínimas ao salário mínimo nacional. Em outras palavras, que nenhum aposentado ou pensionista ganhasse menos do que o Salário Mínimo Nacional (esse governo congelou as aposentadorias e pensões durante todo o período, elas não aumentaram durante todo o período); recuperar os 60 anos como idade mínima a partir da qual se pode, se quiser, se aposentar (esse governo aumentou para 65 anos); e a parte principal como proposta de superação, que foi o que gerou toda a polêmica: eliminar o lucro na Seguridade Social, o que implica a eliminação das AFAPs (Administradoras de Fundos de Pensão no Uruguai). Só restam 12 países no mundo com esse modelo de AFAPs e o Uruguai é um deles.
Na FA não há acordo sobre essa questão. Além disso, desde o início eles deixaram claro que não iriam apoiar nenhuma proposta de plebiscito, com ou sem AFAPs. Eles não estavam dispostos nem concordavam em se envolver em outra luta, que consideravam perdida, e que poderia, na opinião deles, desviar a atenção e as forças destinadas a reconquistar o governo. Setores como aquele ao qual pertenço (o PVP) não estavam e não estão de acordo com essa visão de parte da FA e, juntamente com o Partido Socialista e o Partido Comunista, apoiamos desde o início a iniciativa do PIT-CNT, não sem nuances ou discussões, mas a apoiamos sem hesitação, porque, se tivéssemos que perder e se estivéssemos errados, preferíamos fazê-lo apoiando e dando suporte à classe trabalhadora organizada.
O contexto era de muita tensão e ataques permanentes aos líderes e ativistas que defendiam e promoviam a iniciativa. Procuravam estigmatizar a proposta, havia muito terrorismo verbal. Era uma questão de discutir direitos versus privilégios, e são essas discussões que levantam questões de fundo e despertam a virulência do modelo hegemônico e de seus fiéis representantes.
4) Qual é o balanço da campanha política em defesa da previdência social pública, junto a diferentes setores e referências sociais?
Nesse contexto, o plebiscito sobre a Seguridade Social (SS) ganhou campo e permitiu uma ampla discussão, na qual o movimento sindical deu uma contribuição que enriqueceu o debate democrático. Acabou sendo uma iniciativa apoiada por quase um milhão de pessoas que, apesar do terrorismo e das previsões sombrias das agências de classificação de risco e algumas outras, optaram por colocar a cédula branca do Sim, com um resultado de quase 40% do eleitorado, superando em muito os votos obtidos pelos partidos de direita.
De acordo com o camarada Sergio Sommaruga, foi “uma derrota eleitoral que alcançou importantes triunfos políticos”. Criou-se um sólido espaço argumentativo e um debate público que aprofundou a reflexão sobre a seguridade social e a necessária revisão do sistema tributário que nunca parece uma alternativa (taxar o capital, limitar as isenções fiscais, evitar a evasão fiscal), com fundamentos não apenas técnicos e conceituais, mas também a viabilidade de implementar os direitos que a cédula de votação propunha incorporar à constituição.
Ao mesmo tempo, apesar do fato de que a maioria da liderança da Frente se opôs ao voto no “Sim”, os resultados obtidos por essa votação não podem ser explicados sem assumir que em quase todos os departamentos quase todos os apoiadores da Frente Ampla o apoiaram. Isso mostra uma reserva militante e de esquerda na base popular da Frente Ampla, que não necessariamente obedece aos mandatos de seus líderes quando confrontada com uma proposta de democracia direta promovida pelo movimento social.
Se somarmos os setores políticos que apoiaram e enveloparam (juntaram a cédula com as listas), são mais ou menos 355.000 votos (a cédula obteve 935.000). Há então 580.000 votos que não correspondem a esses setores e que temos de alocar aos outros. Ao mesmo tempo, há 120.000 trabalhadores que votaram no Partido Nacional e no Partido Colorado que apoiaram a cédula branca, o que demonstra a transversalidade alcançada pela campanha promovida pelo movimento sindical, algo muito importante que demonstra a legitimidade e a credibilidade das propostas.
5) Mesmo nas eleições, ao contrário do Brasil e do campo de Trump, o setor mais ligado à extrema direita, Manini Ríos sofreu um revés. Você pode descrever esse fenômeno?
Como mencionei, o partido militar de Manini Rios teve de fato uma votação escassa, passando de 3 senadores e 9 deputados em 2019 para apenas 2 deputados. Ele deixou de ser a novidade que era na última eleição e pagou as consequências de ter vários casos de corrupção em suas fileiras e de se acomodar às necessidades do presidente Lacalle Pou e da coalizão. Durante todo o período, ele foi crítico na mídia, mas no parlamento votou a favor de tudo o que a coalizão precisava. Seu personalismo e autoritarismo geraram problemas internos substanciais, com os quais ele mesmo confessa não saber lidar, enquanto a implantação da lista 609 (o setor do MPP que havia sofrido uma fuga de votos para o Cabildo Abierto) recupera os votos que perdeu na última eleição. O surgimento de Gustavo Salles e o retorno de Pedro Bordaberry (filho do ditador, Partido Colorado) competindo por esses mesmos votos conservadores também explicam a queda do partido de Manini Ríos.
Esses eleitores não desaparecem, eles ainda estão lá, mas se dispersam para outras opções quando o Cabildo não está mais à altura da tarefa e prova ser “apenas mais um partido” com corrupção, privilégios parlamentares e sem credibilidade. Mesmo assim, ele tem 2 deputados, o que pode ser fundamental para as maiorias parlamentares de que qualquer governo precisará.
6) Dentro da Frente Ampla, temos duas políticas muito diferentes, desde a eleição “interna” até o Plebiscito, quando parte da liderança da FA não o apóia. Fale-nos sobre isso.
De certa forma, o processo de discussão e apoio ou não ao plebiscito da SS condensa essas diferenças dentro da FA. Aqueles que decidiram pela liberdade de ação nesse aspecto, levando em conta essas diferenças.
Aqueles de nós que têm uma visão crítica dos processos e governos progressistas e que acreditam que estes deveriam estar muito mais próximos dos movimentos sociais e populares apoiaram a candidatura de Carolina Cosse nas eleições internas (em junho deste ano). Uma candidatura alternativa que dizemos ser de esquerda porque representa uma visão que coloca o Estado, o trabalho de qualidade e o investimento público, bem como o combate à desigualdade, como aspectos centrais de qualquer projeto de esquerda.
O resultado das eleições internas não foi o esperado e o atual candidato Yamandú Orsi venceu a disputa por ampla maioria, deixando os setores que eram a favor do plebiscito (e que apoiavam Carolina) em uma situação de maior tensão e certo isolamento. O apoio de Carolina Cosse ao plebiscito sempre foi ambíguo e, na realidade, acabou gerando uma grande decepção, pois foi interpretado que ela sempre foi contra, mas, por razões de conveniência política, adiou e se posicionou. Isso gerou mais inquietação entre a base militante desses partidos.
Sem dúvida, essa luta mostrou as ênfases programáticas e de base social dos diferentes setores que fazem parte da Frente Ampla. O distanciamento da FA das questões sociais (grande parte de sua base está nos trabalhadores) foi levantado no documento de autocrítica como parte do que explica a perda do governo em 2019. Embora sempre tenha havido diferentes construções programáticas por parte dos trabalhadores e da FA, o desenvolvimento da luta pelo plebiscito da Previdência Social provocou um fato inédito, que foi o de que a grande maioria das lideranças dos partidos e movimentos que compõem a FA não apenas não a apoiou, mas se manifestou publicamente contra ela em termos semelhantes aos da direita, que havia aprovado uma reforma regressiva à qual os trabalhadores responderam com mobilizações e greves. Em outras ocasiões, uma síntese harmoniosa foi alcançada entre o movimento sindical e a FA na época das eleições, mas nessa ocasião houve uma ruptura.
7) Como será a dinâmica do movimento social uruguaio após o plebiscito e na hipótese de um novo governo da FA, como os trabalhadores e o movimento popular se comportarão?
Como o movimento operário e popular se posicionará após a luta pelo plebiscito e diante de um provável novo governo da FA é uma questão muito importante. Os 15 anos de governo progressista deixaram muitas lições. A FA fez sua autocrítica, o movimento social e sindical precisa continuar a elaborar a sua própria.
Sem dúvida, esse será o tema de discussão em um novo congresso do PIT-CNT, em princípio no próximo ano. O governo de direita de Lacalle Pou foi tão profundamente prejudicial aos trabalhadores e aos sindicatos que, na queixa comparativa, é muito fácil saber de que lado se está.
O problema com isso é a tentação de apoiar permanente e resignadamente o mal menor, que sempre, nas palavras de Gramsci, “…Todo mal maior se torna menor em relação a outro que é ainda maior, e assim por diante ad infinitum.” [Quaderno, 16 (XXII)].
8) Qual é o cenário para as próximas semanas, em relação ao segundo turno das eleições?
É um cenário incerto, tudo pode acontecer. A FA é a favorita, está em uma posição melhor para esse segundo turno e é possível que alguns dos indecisos ou aqueles que votaram em Salles no primeiro turno passem a votar na FA, mas isso não é de forma alguma certo.
Para o segundo turno, a votação, que ocorrerá em 24 de novembro, o perfil do candidato será mais predominante, enquanto o confronto sobre os programas e as contradições que podem ser vistas entre o programa da FA e sua liderança se tornarão mais agudas. Em 18 de novembro, teremos um debate entre os candidatos à presidência que, embora muitas vezes não some, pode subtrair. A direita está fazendo uma campanha muito boa em seus próprios termos e, por ter governado por 5 anos com todos os escândalos de corrupção e a redução de salários, o resultado passado é quase o mesmo de 2019, o que é surpreendente e, portanto, pode muito bem se repetir. A FA, em seu desespero para buscar o centro político eleitoral, continua sem se diferenciar ou apresentar propostas motivadoras.
Quando a disputa da esquerda é o centro político, a balança de poder se inclina decisivamente a favor da direita, porque a disputa eleitoral pelo centro político é hegemonizada pelo chamado senso comum imposto pela direita de que não há outra forma possível de governar, portanto, essa mudança de tentar ganhar o centro está cada vez mais se deslocando para a direita, que é quem, em última instância, tem um projeto estratégico de longo prazo.
Os eleitores de hoje não percebem nenhum ponto de vista alternativo importante, o que leva a uma confusão que pode acabar muito próxima dos objetivos da direita. As câmaras empresariais do Uruguai disseram que não há diferenças substanciais entre os partidos que disputam o governo.
9) Finalmente, fale-nos sobre as abordagens do PVP?
Como PVP, vemos a necessidade de transformações profundas que permitirão outro ciclo progressivo, caso contrário, a maquiagem superficial só garante retrocessos.
Algumas de nossas principais propostas com as quais continuaremos avançando e promovendo não apenas no próximo período legislativo, mas também em todos os espaços de discussão política que tivermos:
Mudanças no regime fiscal envolvendo ajustes financeiros do Estado e sua dívida pública. Nova reforma tributária que inclui grandes fortunas, maior tributação sobre lucros corporativos, um imposto de renda progressivo, um alto imposto sobre herança. Estudo aprofundado da possibilidade de tributar a renda agrícola extraordinária, revisão das isenções fiscais. Reforma do fundo militar.
Redução da jornada de trabalho, socializando parte dos lucros que o grande capital obtém com a incorporação de tecnologia para substituir empregos. Recompor e retomar as tarefas nos setores do Estado que foram muito negligenciados nos últimos anos. Defesa do setor público: com ênfase na educação pública, por uma educação laica, gratuita e obrigatória, com a participação de todos os atores envolvidos e os recursos necessários para sua implementação desde a primeira infância até o nível universitário em todo o país. Esse foi um dos grandes nós dos governos progressistas.
A luta pelos direitos humanos e contra todas as formas de impunidade diante do avanço autoritário, que busca modificar os padrões de ação social coletiva, as formas de ação política, impor novos tipos de relações e um novo conceito de autoridade, aplicando uma lógica punitiva como método de intimidação. Fortalecer a luta pela memória, pela verdade, pela justiça e pelo nunca mais.