O antiproibicionismo como antessala do anticapitalismo

O antiproibicionismo, ao debater os modelos de legalização da maconha, oferece uma chance de repensarmos o modo como as demais mercadorias são produzidas.

Pedro Micussi 27 jul 2017, 20:55

Começou na última semana no Uruguai a execução da derradeira etapa da lei que legalizou e regulamentou a venda de maconha no país. Finalmente, uruguaios e residentes podema obter a erva a partir da distribuição estatal da droga, que é realizada através da venda em farmácias em todo o território nacional. Em 2013, a partir de iniciativa do então presidente Pepe Mujica, o Uruguai legalizou a venda e o consumo da cannabis oferecendo uma alternativa radical ao paradigma proibicionista que vigorava até então.

A lei prevê aos cidadãos uruguaios três possibilidades distintas de obtenção da substância: a) através de cultivo individual doméstico, quando o usuário planta o seu próprio pé de maconha; b) através do cultivo coletivo, no qual usuários se associam em cooperativas de cultivo canábico; c) através da compra de pequenas porções da maconha em farmácias, onde a distribuição é regulamentada pelo Estado.

O caso do Uruguai é emblemático já que não apenas põe em xeque o paradigma proibicionista em vigor ao longo de toda a segunda metade século XX, mas também por desafiar os ditames neoliberais correntes, segundo os quais a produção de bens e serviços devem ser controlados por agentes econômicos privados. Com a experiência uruguaia, vemos que é possível lutar por um mundo onde as substâncias psicoativas estejam libertas das amarras da proibição, mas também das grandes indústrias.

Costumamos dizer em alguns círculos do movimento antiproibicionista que a luta pela legalização da maconha no Brasil é também uma luta por modelos de legalização. Com isso, entendemos que não basta à esquerda antiproibicionista lutar pela a legalização, mas que junto com essa bandeira é necessário explicitarmos de que modo gostaríamos de ver a maconha legalizada no país. Quer dizer, se a compra através do tráfico não está dando certo, como gostaríamos de poder obter a erva? Entendemos que por meio desses debates também conseguimos disputar a consciência de militantes antiproibicionistas brasileiros para a sensibilidade de pautas anticapitalistas.

Nem todo defensor da legalização da maconha é a favor, necessariamente, de um projeto de sociedade alternativo ao capitalismo. Os antiproibicionistas têm em comum o fato de verem na proibição a causa das maiores mazelas relacionadas às drogas na contemporaneidade, e aceitarem que a legalização ou a regulamentação delas (qualquer que seja o modelo) ofereceriam uma situação mais vantajosa do que a que encontramos hoje com a proibição ampla geral e irrestrita das drogas. Isto é, mesmo o socialista mais convicto não vacilaria em afirmar que qualquer modelo de produção e venda de maconha – mesmo se controlado por empresas capitalistas durante todo o processo – seria mais benéfico ao conjunto da população do que o paradigma em vigor hoje, com produção e distribuição sob o controle do tráfico.

Os anticapitalistas antiproibicionistas, contudo, costumam dar um passo além, oferecendo uma discussão no interior do movimento que busca relacionar as mazelas da proibição de hoje com os problemas da droga mercadoria de amanhã. Sendo assim, promovem debate no qual conjugam as conversas em torno da legalização das drogas com as que discutem modelos de produção alternativos.

Quão feliz ficaríamos em ver a maconha legalizada ser apropriada por monopólios, como já acontece com as bebidas? Quão satisfeitos estaríamos no que se refere à qualidade da erva que seria oferecida? Certo, a maconha prensada que se consome no Brasil é péssima e a legalização só tenderia a melhorar sua qualidade. Mas a julgar, por exemplo, pelo nível dos gêneros alimentícios que vemos nas prateleiras dos supermercados brasileiros, nos parece ingênuo supor que os produtores privados estariam de fato preocupados com a qualidade do produto final que chegaria ao consumidor.

Lutamos cotidianamente pela regulamentação de algo que seria, então, explorado por terceiros que lucrariam em cima do nosso prazer? Se falamos tanto em liberdade, faz sentido lutarmos para que a legalização da maconha seja seguida de um modelo de produção que se baseia na exploração de um ser humano pelo outro?

É inegável que os consumidores de drogas estabelecem com as substâncias que consomem uma relação afetiva. Se esse é o caso de Zeca Pagodinho e seus milhares de seguidores na internet, que compartilham suas peripécias com a cerveja, por exemplo, não seria diferente o caso dos maconheiros com a erva. Talvez por isso mesmo seja mais fácil realizar entre esses consumidores “especiais” o debate em relação ao modelo através do qual gostariam de ter esses produtos confeccionados.

A impressão que dá é que entre os militantes pela legalização da maconha fica mais fácil problematizar sistemas produtivos que tratam homens e mulheres como coisa, e oferecer modelos de produção um pouco mais humanos como alternativa.

Não apenas isso, a bandeira em si mesmo é promissora. É como se, ao defendermos a legalização de algo que é proibido, tivéssemos diante de nós uma suspensão do tempo em que permitimos a nós mesmos discutir o indiscutível, dizer o que normalmente não é dito. “Ok, vamos legalizar, mas e daí?”. Esse “e daí” representa justamente a dimensão criativa pela qual o antiproibicionismo oferece um terreno fértil aos anticapitalistas hoje em dia. O “e daí” nos permite ir ao coração do problema de nossa sociedade. Permite problematizar o que, se não fosse pelo próprio fato da coisa estar proibida, jamais pararíamos para pensar (como acontece, aliás, com todas as demais mercadorias que nos rodeiam): como é que vamos produzir e distribuir essa parada?

O Uruguai forneceu um caminho. Certamente, o seu próprio modelo está longe do ideal — a própria maconha que é fornecida pelo Estado nas farmácias é produzida por empresas privadas, por exemplo. É nosso dever estarmos atentos ao desenvolvimento da experiência uruguaia. Mais que isso, é preciso seguir debatendo, entre aqueles já convencidos pela legalização, os sentidos que queremos dar ao “e daí”… Talvez ganho o debate dos modelos de legalização das drogas entre essas pessoas, possamos ir além e problematizar os modelos sobre os quais todas as demais mercadorias estão no “legalizadas” no Brasil.


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