Outubro em Novembro

Qualquer deslocação social é suspeita, como se a história se destinasse à transcendência do poder eterno, das majestades, dos barões-ladrões, do capital omnipotente.

Francisco Louçã 10 nov 2017, 08:59

Comemorar tem um risco, o de usar a efeméride para diluir a sua memória nas penumbras do tempo. Por isso, o anjo da história tem a cara virada para o passado, escrevia Walter Benjamim, mas esse passado nunca é deixado em paz, ele é trucidado e capturado pelos vencedores, pois nele constroem a sua hegemonia. No bicentenário da revolução americana, o constitucionalismo continuista foi erguido em virtude, como se a guerra independentista não fosse a ruptura constitucional. No bicentenário da revolução francesa, foi o Rei homenageado, para se desprezar a turba que não tinha aceite os brioches prometidos. Nos 25 anos de Abril de 1974, a comissão empossada por Cavaco Silva propôs-nos que louvássemos a cordial “evolução” para esquecermos a nefanda “revolução”. Agora, no centenário de Outubro de 1917, são santificados os Romanov. Sim, há algo em comum: qualquer deslocação social é suspeita, como se a história se destinasse à transcendência do poder eterno, das majestades, dos barões-ladrões, do capital onipotente.

Mas comemorar tem ainda outro risco. É olharmos para nós próprios, com mais velas e menos futuro, tanta gente resumindo-se ao que em tempos teria considerado abominável. Como no romance de Dumas, vinte anos depois, em que D’Artagnan e Porthos estão alistados com o Cardeal Mazarino, enquanto Athos e Aramis conspiram com a Fronda, só se juntando, assim os condena o autor, para tentar salvar a cabeça de Carlos I de Inglaterra, vencido pela revolta de Cromwell. O arrependimento é aí resgatado pelo heroísmo, mesmo que fracassado.

Se estes riscos da comemoração forem evitados, talvez olhemos para os acontecimentos no seu tempo. Perdoar-me-ão então os leitores que, ignorando a efabulação de quem tem de apresentar a virtude da sua conversão a remediar passados tormentosos, veja para a revolução de Outubro como um momento inaugural do século XX.

Revolução, foi então o início de uma nova história, contraditória e atormentada. Enquanto decorria a tomada do poder pelos sovietes, Rosa Luxemburgo, escreveu as suas Notas de Prisão que “Concretamente, o que poderá trazer à luz do dia os tesouros de experiência e ensinamentos não é a apologia cega, mas a crítica penetrante e refletida. Porque uma revolução proletária modelo num país isolado, esgotado pela guerra mundial, estrangulado pelo imperialismo, traído pelo proletariado internacional, seria um milagre.” Um milagre?

Winston Churchill, que depois da revolução foi o principal promotor da invasão da Rússia pelas tropas do seu país e seria pouco dado a encómios dos inimigos, escreveu sobre Lênin: “A sua mente era um instrumento notável. Quando brilhava, a sua luz iluminava o mundo inteiro, a sua história, as suas dificuldades, as suas farsas e, sobretudo, as suas injustiças”. Um milagre?

Essa revolução não foi um milagre, foi a consequência da 1ª Guerra Mundial mas também do colapso do czar, criando pânico entre as classes dominantes. Mudando os eixos da política europeia, Outubro desencadeou outros abalos sísmicos (Alemanha, Hungria, Bulgária, Itália) e depois influenciou a vitória eleitoral das esquerdas em França e a revolução republicana em Espanha. A resposta das classes dominantes foi o fascismo e o nazismo e, portanto, a 2ª Guerra Mundial.

Sabemos agora que faltava a essa revolução a experiência de saber fazer o novo poder. Escrevia Rosa, a crítica: “Sem sufrágio universal, liberdade ilimitada de imprensa e de reunião e sem confronto livre de opiniões, extingue-se a vida em todas as instituições públicas, converte-se numa vida aparente, em que a burocracia passa a ser o único elemento ativo”. Como ela antecipou o que viria depois, os choques, as purgas, a destruição da vida política. Outubro em Novembro é toda essa herança, do que começou e do que fracassou.

(Artigo publicado originalmente em blogues.publico.pt)


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