Amistoso cancelado em Jerusalém: Um gol de placa antes da copa!

A decisão da seleção argentina foi um grande triunfo e deve ser tomado como lição para a esquerda em todo o mundo.

Israel Dutra 7 jun 2018, 13:34

Dias antes de começar a copa do mundo na Rússia, um dos mais bonitos e simbólicos lances foi registrado. Podemos chamar de gol de placa a decisão que a seleção argentina de futebol, encabeçada por Lionel Messi, de cancelar a partida marcada contra Israel, em 09 de junho, em Jerusalém.

Depois de duas semanas de controvérsias, o titular da Associação de Futebol Argentino, Claudio Tapia, anunciou em conferência de imprensa que a seleção não iria mais viajar e gostaria que tal decisão fosse tomada como “um aporte a paz mundial” e que o “futebol é uma mensagem universal que transcende fronteiras e nada tem a ver com a violência”. O próprio Benjamim Netanyahu recorreu a Macri para buscar uma saída diante da crise que se montou. Era tarde demais. O triunfo democrático da pressão da opinião pública mundial se materializou no cancelamento da partida.

O jogo estava marcado para o estádio Teddy Kollek – sede do clube Beitar Trump Jerusalém – que se levantou onde era uma antiga aldeia palestina.

A campanha “#ArgentinaNoVayas” ganhou as redes sociais do mundo. Em Barcelona, onde está concentrada e treinando a seleção portenha, os protestos foram diários durante a última semana. A manifestação levou a frente camisetas da seleção argentina machadas de sangue. O chamado mundial por repúdio foi encabeçado pela Associação de Futebol Palestino, ecoado pela campanha internacional BDS. Uma carta escrita por 70 crianças – muitas delas descendentes de palestinos que viveram na aldeia que foi destruída, foi entregue a Messi, diretamente, destacando sua responsabilidade como embaixador da Unicef. Foi uma campanha rápida, mas que contou com intensa mobilização e simpatia mundial. A tomada de decisão da equipe, vocalizada pela AFA, teve como protagonistas jogadores como Mascherano, Higuain e o próprio Messi.

Desde o dia 30 de março (dia da Terra) existe uma nova situação em Gaza. Os protestos se multiplicam e existe uma real disputa de narrativa sobre os 70 anos da Nakba – a catástrofe palestina. O que se vê desde então é um fortalecimento da repressão, com centenas de mortos e milhares de feridos, num estado permanente de guerra. Apenas num único dia, na data da inauguração da nova embaixada americana, 14 de Maio, os atiradores de elite israelenses mataram 55 palestinos. A temporada de mortes segue. A lista de assassinatos cresce, incluindo esportistas, ativistas culturais, jornalistas e até mesmo uma enfermeira voluntária, Razan Al-Najar, reconhecida como responsável por salvar a vida de centenas de civis.

Uma provocação nada “amistosa”

A partida organizada entre o governo israelense e o argentino era uma provocação montada. A diferença de outros jogos, a seleção de Israel não jogaria nos tradicionais estádios de Haifa ou Tel Aviv. O jogo, marcada para Jerusalém, era parte fundamental de uma operação política que envolvia legitimar a política de Trump e de Israel para colonizar a parte leste de Jerusalém. Uma operação que envolve gastos pesados por parte do Estado de Israel e uma linha diplomática onde Trump busca aliados. O acirramento da linha de tensão isola mais no campo internacional a postura mais agressiva. O nome da equipe que seria anfitriã leva agora o nome de Trump, em homenagem ao presidente americano. Parte da estratégia era levar os craques argentinos, muito populares no mundo árabe, para visitar o muro das lamentações e outras agendas oficiais.

Macri, outro aliado do direita sionista, chegou a cogitar ir a Jerusalém participar oficialmente da cerimônia. As relações de seu governo com a política de Netanyahu são conhecidas. Sua ministra de segurança nacional, Patricia Bullrich, firmou contratos e convênios para aperfeiçoar a vigilância contra os movimentos sociais, visitando regularmente o governo do Likud. Com crise interna crescente, caiu muito mal a linha de Macri ao ver desmontada sua articulação. A busca por um eixo da “nova direita mundial” sofreu um revés com o cancelamento da viagem dos argentinos.

Netanyahu e a idealizadora do amistoso, ministra Miri Regev, pressionaram até o final. Regev, da ala militarista do Likud, da pasta de Cultura e Esporte, é a vanguarda da linha expansionista. No âmbito da cultura, ela tem exercido um rigoroso controle da produção artística para selecionar as obras mais afinadas com a política expansionista, cancelando contratos com grupos com posturas mais independentes, como a companhia de teatro infantil de Hayfa, onde atuam crianças judias e palestinas. Chegou a chamar artistas de seu país de “presunçosos e ingratos”.

Há uma batalha internacional, no terreno cultural e da informação, para legitimar a atual política de ocupação sobre as terras palestinas. Com a direita mais agressiva no poder, em que pese as crises internas do governo, a busca por uma linha expansiva internacional se torna estratégica. No Brasil, isso acontece com a entrada com mais força junto as igrejas neopentecostais por um lado; e afirmando a linha do sionismo para a defesa das pautas civis, por outro.

A esquerda tem lado

A decisão da seleção argentina foi um grande triunfo. Deve ser tomado como lição para a esquerda em todo o mundo. Foi a persistência da articulação internacional em prol da causa palestina que levou Messi e seus companheiros a voltar atrás e recusarem ser parte dessa operação. Há duas semanas, Gilberto Gil também cancelou um show em Tel Aviv, gesto político irrepreensível.

É necessário articular com a esquerda judaica, que tem ganho força em nomes como Illan Pape. Nos ativistas que deixam o Exército de Israel, os chamados refusenik, para lutar a favor de uma paz justa e contra os massacres. É importante o diálogo com esses setores.

A esquerda brasileira não pode hesitar. A recente delegação do PSOL que foi a Cisjordânia – contando com Guilherme Boulos, Juliano Medeiros e Fred Henriques – deu um belo exemplo. A manifestação dos palestinos na parada LGBT de São Paulo contra a presença do governo israelense, como forma de dissimular os crimes recentes na suposta “defesa dos direitos individuais”, foi outro ponto importante, ainda que com alcance sobre a vanguarda.

O golaço de Messi faz lembrar a Argentina de 1986, quando Maradona mostrou ao mundo a verdadeira “Mão de deus”, na eletrizante partida contra Inglaterra, vingando a ação imperialista britânica na então recente Guerra das Malvinas. O futebol é uma paixão incrível. E fonte de esperança aos oprimidos do mundo, especialmente os que resistem nas árduas condições de sobrevivência em Gaza.


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