A nova visão internacionalista de Bernie
Sanders parece estar levando mais a sério a responsabilidade que carrega de representar a esquerda na política externa americana.
Bernie Sanders foi chamado de “ruim na política externa” por praticamente todos. Vindo daqueles à sua direita, isso tipicamente significa insuficientemente dócil com as garras do establishment da política externa. Sanders se opôs em seus pronunciamentos e votou contra a Guerra do Iraque, é mais crítico a Israel que qualquer outro politico americano expressivo, propôs cortes drásticos nas despesas militares, buscou acabar com o programa de armas nucleares dos EUA, opõe-se ao apoio dos EUA à ofensiva liderada pela Arábia Saudita no Iêmen, e expressou forte oposição aos golpes na América Latina e no Irã endossados pela CIA, entre outras posições pouco ortodoxas sobre a política externa.
Vindas da esquerda, as críticas frequentemente se fundaram na preocupação legítima de que a política externa de Sanders não se afastou do consenso bipartidário tanto quanto sua politica da economia doméstica. Por exemplo, enquanto o que foi colocado acima é verdadeiro, ele não apoia o movimento pelo Boicote, Desinvestimento e Sanção (BDS) contra Israel, e ele votou pela intervenção militar dos EUA diversas vezes durante seus mandatos de décadas no Senado. Ele falou algumas vezes sobre a necessidade de preservar o poder militar americano, mesmo que tenha atacado o desperdício e os abusos militares dos EUA em outras ocasiões.
Como jovem, Sanders buscou ser um opositor continente à Guerra do Vietnam, visitou a Cuba pôs-revolucionária, e articulou reuniões diplomáticas com Sandinistas. Mas seu mandato coincidiu com uma enorme ausência de um movimento antiguerra doméstico forte, e ele frequentemente se encontrou no limite da politica externa liberal, guardando sua dissidência para as lutas sobre a politica doméstica e grandes episódios da politica externa como a Guerra do Iraque.
Mas a vida e a tarefa de Sanders mudaram consideravelmente desde que sua campanha presidencial catapultou-o de uma relativa obscuridade para o holofote nacional há três anos atrás. Agora, Sanders parece estar levando mais a sério a responsabilidade que carrega de representar a esquerda na política externa americana. Essa responsabilidade envolve o uso de sua plataforma para diferenciar a abordagem da esquerda da abordagem liberal, como ele vinha fazendo na política interna.
É um trabalho pesado. Apesar de a necessidade estar colocada, não há uma única corrente forte de internacionalismo de esquerda nos Estados Unidos que não esteja deformada por velhas alianças subterrâneas, uma que tenha chance de persuadir uma porção significativa da população americana a se opor à guerra e criar uma solidariedade internacional em escala de massas. Nessa nova era de ressurgimento da esquerda, nós devemos construir um novo internacionalismo de esquerda com nossas próprias mãos.
O discurso de Sanders ontem, intitulado “Construindo um Movimento Democrático Global para Combater o Autoritarismo” e adaptado de um editorial que ele escreveu em The Guardian no mês passado, foi um parâmetro que mede seu progresso nesta tarefa até o momento. Nele, ele expôs uma dupla oposição ao autoritarismo e à oligarquia. Sanders enfatizou ao longo de seu discurso que a desigualdade econômica e a concentração de riqueza são corrosivas para a democracia e, por sua vez, para os direitos civis – um refrão que ouvimos dele muitas vezes no contexto doméstico. Precisamos desenvolver um movimento global contra o poder inexplicável do Estado e das empresas, que se reforçam mutuamente, disse ele.
Sanders identificou como uma grande ameaça a ascensão de líderes de direita, nomeando o turco Recep Tayyip Erdoğan, o filipino Rodrigo Duterte, o brasileiro Jair Bolsonaro, o russo Vladimir Putin e o húngaro Viktor Orbán, entre outros. Esses líderes diferem em muitos aspectos, disse ele, mas compartilham uma “intolerância em relação às minorias étnicas e religiosas, hostilidade em relação às normas democráticas, antagonismo em relação à imprensa livre, constante paranoia sobre conspirações estrangeiras e a crença de que os líderes do governo deveriam poder usar suas posições de poder para servir a seus próprios interesses financeiros egoístas ”.
“Eles não estão subindo ao poder do nada”, afirma Sanders. A nova direita autoritária é levada pelas falhas do capitalismo.
Vemos hoje a enorme e crescente desigualdade de renda e riqueza, onde o 1% mais ricos do mundo agora possui mais riqueza do que os 99% inferiores, onde um pequeno número de grandes instituições financeiras exercem enorme impacto sobre a vida de bilhões de pessoas. Frequentemente, temos líderes políticos que exploram esses medos ampliando ressentimentos, alimentando a intolerância e alimentando ódios étnicos e raciais entre os que estão em dificuldades. Nós vemos isso muito claramente em nosso próprio país. Está vindo do mais alto nível de nosso governo.
Sanders identificou a eleição de Trump como um fator acelerador na ascensão da direita autoritária e oligárquica global. A administração de Netanyahu e a monarquia saudita de Israel, segundo ele, foram encorajadas em seus abusos pela intensificação do apoio americano preexistente de Trump. Sanders também criticou o governo Trump por expressar seu apoio, por meio de seu embaixador na Alemanha, a partidos de extrema direita em toda a Europa. Em seguida, ele estabeleceu conexões entre os líderes políticos desses partidos e os interesses endinheirados que podem ganhar com sua política econômica de direita, inclusive aqui nos EUA.
“Muitos desses líderes também estão profundamente ligados a uma rede de oligarcas multibilionários que vêem o mundo como seu brinquedo econômico”, disse ele, destacando que tanto os irmãos Koch quanto a família real saudita gastam muito em Washington, enquanto a família Mercer esbalda dinheiro em eleições tanto em casa como na Europa.
Mas Trump não causou essa podridão no sistema, insistiu Sanders. Ele é uma consequência disso.
Como outros da direita autoritária, ele subiu ao poder alimentando o ódio e a divisão que já era endêmica em uma sociedade estratificada e hipercompetitiva, e explorando redes corporativas bem estabelecidas que também antecediam sua carreira política.
Portanto, disse Sanders, para efetivamente opor-se ao autoritarismo de direita, não podemos simplesmente ficar na defensiva. Precisamos ser pró-ativos e entender que apenas defender o status quo falido das últimas décadas não é bom o suficiente. Na verdade, precisamos reconhecer que os desafios que enfrentamos hoje são um produto desse status quo.
A tarefa da esquerda americana não é simplesmente se opor a líderes e movimentos específicos de direita em todo o mundo, embora isso seja certamente necessário. E certamente não é demitir os líderes com uma política externa intervencionista liderada pelos EUA que forçará ainda mais a hegemonia americana. A tarefa é construir um movimento internacional próprio contra as elites capitalistas, contra os homens fortes autoritários, pelos direitos civis e liberdades, e “por um futuro em que as políticas públicas e novas tecnologias e inovações trabalhem para beneficiar todas as pessoas, não apenas as poucos”. Em resumo, pela democracia e pelo socialismo.
Nossa tarefa é lutar contra o poder corporativo em conjunto com trabalhadores de outros países. Isso significa construir laços através da luta com os trabalhadores do mundo inteiro lutando – como estamos aqui nos Estados Unidos – contra as corporações que estão destruindo o planeta; contra a corrupção política, incluindo a compra de eleições e supressão de eleitores; contra a extrema concentração de riqueza nas mãos do 1 por cento, enquanto o resto experimenta extrema pobreza ou, pelo menos, declínio dos padrões de vida; contra as políticas comerciais que aumentam os lucros das empresas e, ao mesmo tempo, devastam as vidas das pessoas que trabalham, aos milhões; e contra a aceitação do orçamento militar anual de US $ 1,7 trilhão do mundo, a maior parte dos quais dos Estados Unidos, que deveria ser redirecionado para fins pacíficos.
Sanders concluiu:
Enquanto o eixo autoritário está empenhado em derrubar uma ordem global pós-Segunda Guerra Mundial que eles vêem como limitando seu acesso ao poder e à riqueza, não é suficiente simplesmente defendermos essa ordem conforme ela existe.
Devemos observar com honestidade como essa ordem não cumpriu muitas de suas promessas e como os autoritários exploraram habilmente esses fracassos a fim de obter apoio para sua agenda. Devemos aproveitar a oportunidade para reconceitualizar uma ordem global baseada na solidariedade humana, uma ordem que reconhece que cada pessoa neste planeta compartilha uma humanidade comum, que todos queremos que nossos filhos cresçam saudáveis, tenham uma boa educação, tenham empregos decentes. beba água limpa, respire ar puro e viva em paz. Nosso trabalho é alcançar aqueles em todos os cantos do mundo que compartilham esses valores e que estão lutando por um mundo melhor.
Um internacionalismo de esquerda popular é difícil, mas não é inatingível. É uma necessidade se tivermos alguma chance de assegurar paz e prosperidade para todas as pessoas, contra os interesses limitados da classe capitalista global. Afinal, as empresas não permitem que as fronteiras os detenham. Para combater a hegemonia corporativa, o movimento socialista democrático também não deveria.
Reprodução da tradução publicada pelo Portal da Esquerda em Movimento.