Dona Rosa (ou Ode ao Povo)

Conto.

Lucas Custódio Martins 16 nov 2019, 19:46

“É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”

Carlos Drummond de Andrade

“The only girl I’ve ever loved

Was born with roses in her eyes

But then they buried her alive

One evening in 1945”

Neutral Milk Hotel

TA.FO.FO.BIA

subs. fem. Descrito como medo irracional de ser enterrado vivo. 

***

FLASH

Eu acho que essa é a última foto

FLASH

Falta daquele lado. Peraí. Já preencheu a ficha?

FLASH

Pronto. Ainda não. Preciso alocar espaço no freezer.

Acho que tem uma gaveta sobrando.

Não tem, está ocupada.

Não tá, saiu hoje, foi pro municipal. 

Eu vivo falando que é precária a situação da sala de necropsia desse hospital mas ninguém me escuta.

Ei, eu te escuto.

Claro, não tem mais nada pra escutar aqui.

Ela parece ter vivido uma boa vida.

Risos. Você não sabe quem ela é, sabe? Que droga eu vivo esquecendo que você está aqui só há alguns meses. 

Não. Aqui diz que o nome dela é Rosa.

Claro, é a Dona Rosa. Ela é uma das nossas residentes mais antigas.

Residente tipo, médica?

Não, eu falo residente porque ela praticamente mora aqui faz anos. 

Ela mora aqui?

Sim. Ela sempre esteve aqui. Em coma. Não se sabe desde quando. Alguns dizem que ela esteve aqui desde sempre.

Como isso é possível?

Teve épocas em que se mobilizavam como podiam. Ela era prioridade, usavam tecnologia de ponta, tudo em prol de fazer com que ela despertasse. Mas ela nunca despertou. Houve poucas vezes em que existiu a falsa ilusão de que ela havia se movido. Mas era apenas impressão. Com o tempo ela foi sendo esquecida. A cada determinado período de anos a equipe era substituída, sempre chegavam mais pessoas que acreditavam que podiam despertá-la mas o resultado era sempre igual. No fundo todo mundo fez a mesma faculdade. Todo mundo usava os mesmos métodos. Todo mundo só sabia remediar.

Que horror. E a família dela? 

Não tem família. Como ela se mantém no hospital é um mistério. De tempos em tempos alguém decide que não tem mais espaço para ela. Que tem que ser esquecida, superada. Que, de fato, é impossível que acorde. E tentam matá-la.

Como? E podem fazer isso? 

Você sendo a autoridade máxima sob controle da situação, quem vai te impedir?

Justo.

Mas, de alguma forma nunca conseguiram. A não ser agora. Agora, finalmente, ela está morta.

Como morreu?

Não se sabe. O que sabemos apenas é que está morta e agora não tem mais volta.

Qual gaveta está livre?

Aquela. 

Vem, me ajude a tirar ela da maca.

***

Á.PO.RO

mat. Problema considerado sem resolução, impossível. p.ext. Situação considerada impossível, sem saída.

***

Na madrugada desta quarta-feira (6), os funcionários do hospital local levaram um enorme susto ao descobrirem que o corpo que estava já há dias no freezer do necrotério do hospital respirava. Nenhum dos funcionários quis prestar depoimento sobre o assunto, apenas relataram estarem extremamente assustados e abalados com a situação. O corpo em questão pertence a uma senhora cujo primeiro nome acredita-se ser Rosa. O sobrenome não se sabe ao certo, pois não existe nenhuma ficha que indique de onde ela veio, nem papeladas que comprovam sua entrada no hospital. Apenas sabe-se que já é paciente de longa data e que atende pelo nome de Rosa. Após o incidente, Rosa continua no estado de coma, porém já é capaz de reagir a alguns estímulos. Acredita-se que em breve serão capaz de despertá-la. Vão despertá-la pois não existe outra saída. Não existe outra saída, ela continuará aqui e continuará a ocupar espaço. E quando menos perceberem ela ainda estará ali em algum canto. Não conseguirão matá-la, pois já tentaram. Tentaram e não conseguiram. O máximo que conseguem fazer no momento é ignorá-la. Ignorar que ela continua ali. E estará ali até o momento de acordar. E quando acordar, saberemos. Saberemos. Saberemos tudo. Vigiemos. Vigiemos atentos aos seus poucos estímulos, para não deixar um sequer passar.

Bom dia, Dona Rosa. É hora de acordar


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