O que têm em comum Trump, o governo Maduro e o guadoísmo?

Tanto o governo de Maduro como o guadoismo estão fazendo o possível para gerar desconfiança nas eleições parlamentares e para limitar ao máximo a participação eleitoral.

Edgardo Lander 4 set 2020, 19:33

Por diferentes motivos, e com diferentes argumentos, Donald Trump, o governo de Maduro e a oposição extremista articulada em torno de Juan Guaidó, têm em comum a vontade de fazer todo o possível para gerar desconfiança nas eleições e limitar, ao máximo, a possibilidade de que os cidadãos de seus respectivos países possam expressar sua vontade política com a participação eleitoral.

Trump tem isso claro. As pesquisas de opinião dizem isso de forma contundente diariamente, por mais que ele pretenda desqualificá-las como “fake news”, que a maioria da população dos Estados Unidos rejeita sua gestão e que, de acordo com estas pesquisas, limitadas possibilidades de ser reeleito em novembro. Isto ocorre como consequência, de suas desastrosas políticas ambientais, que colocam em risco a vida no planeta, suas políticas patriarcais, suas políticas que conduzem ao acelerado aumento das desigualdades, seu profundo racismo, seu respaldo às organizações armadas da extrema-direita supremacista branca, e sua coleção interminável de mentiras. [1]

A todos os pontos listados anteriormente se somaram três severas crises que atravessam hoje ao país. Em primeiro lugar, a pandemia da COVID-19 que, graças às erráticas e irresponsáveis políticas de Trump, que a todo momento pôs seus interesses políticos pessoais (a reeleição) acima da vida dos estadunidenses, afetou a tal país muito mais que a qualquer outro. De acordo com o registro oficial do Centro de Controle e Prevenção de Enfermidades dos Estados Unidos, para 23 de agosto de 2020, haviam sido registrados no país 5 643 812 casos de infectados e um total de 175 651 mortes, [2] muitas mais que a somatória das mortes de soldados dos EUA nas guerras da Coreia, do Vietnã e todas as aventuras militares posteriores dos Estados Unidos. Com somente 4% da população mundial, os Estados Unidos têm 22% dos contagiados e aproximadamente 20% dos mortos por COVID-19.

Em segundo lugar, uma profunda crise econômica, com uma queda do produto nacional mais acelerada que a ocorrida durante a Grande Recessão da década de 1920 do século passado, e uma taxa de desemprego que se triplicou em poucos meses. Era precisamente a suposta bonança econômica o que servia a Trump de sustento para suas expectativas de reeleição.

Em terceiro lugar, o assassinato de George Floyd produziu as mobilizações de protesto mais amplas, mais social e etnicamente diversas e mais extensas geograficamente da história dos Estados Unidos contra o racismo sistêmico, não somente dos corpos policiais, mas do conjunto da sociedade. Essa sociedade teve que olhar para o espelho. A reação fundamentalmente repressiva ante estas mobilizações por parte do governo de Trump confirma de que lado ele está nestas confrontações.

Frente à crescente preocupação de que poderia perder as eleições, Trump se dedicou de forma sistemática a criar desconfiança em relação a estas. Ele se negou a afirmar que reconhecerá os resultados caso venha a perder e, ainda que como presidente não tem atribuições para isso, ameaçou adiá-las.

Neste contexto, o voto pelo correio colocou como um tema central do debate eleitoral. Mais de 60% da população afirma nas pesquisas que lhe daria medo siar de casa em condições de pandemia e a maioria dos estados tomaram medidas para facilitar o voto pelo correio. Trump respondeu a isso levando a cabo uma sistemática campanha para deslegitimar e obstaculizar o voto pelo correio.

Há nos Estados Unidos uma longa tradição de voto pelo correio. O voto em ausência foi uma prática generalizada, utilizada pelos que, como resultado da enfermidade, de sua idade avançada ou de se encontrar em outra localidade, não podem acudir a seu centro de votação. Vários estados, já faz algum tempo, realizam a totalidade de seus processos eleitorais pelo correio. Não se constataram nestas variadas experiências casos de fraude eleitoral. O sistema de correios é uma das instituições mais respeitadas do país, e como instituição federal, qualquer interferência em seu funcionamento está penalizada com fortes sanções.

Depois da guerra civil e a emancipação dos escravizados, as elites brancas do Sul, com o fim de preservar seu poder, impuseram restrições legais à possibilidade de que os ex-escravizados pudessem votar: as chamadas leis Jim Crow. Somente com a aprovação da Lei de direito de voto de 1965, no contexto do grande movimento nacional pleos direitos civis, durante o governo de Lyndon Johnson, foram proibidas todas as restrições ao direito ao voto baseadas na chamada “raça”. Desde então, os Republicanos continuaram fazendo todo o possível para restringir a participação eleitoral dos setores mais pobres da população, fundamentalmente, mas não somente, a população negra e latina. Entre os mecanismos eficazes têm sido as leis que impedem que os ex-condenados possam recuperar seus direitos cidadãos uma vez cumprida sua sentença, negando-se dessa maneira o direito ao voto. Consequência do profundo racismo que caracterizou esse país desde a sua fundação, uma elevada proporção dos ex-condenados são pobres, negros, latinos, e outros migrantes, grupos demográficos que tendem a votar no Partido Democrata.

Um assalto em grande escala ao direito ao voto empreende Trump bloqueando o financiamento que requer o correio para funcionar adequadamente. Trump vem afirmando de forma reiterada que a “votação universal pelo correio” conduzirá à “eleição mais inexata e fraudulenta da história”. Negar o financiamento ao correio vem se convertendo num mecanismo expressamente reconhecido por Trump como via para limitar o voto pelo correio.

| “Agora é necessário esse dinheiro para que o Escritório de Correios funcione e possa receber todos estes milhões e milhões de cédulas… Mas caso não recebam, isso significa que não pode haver uma votação universal pelo correio.”[3]

Ele nomeou como Diretor Geral do Serviço Postal a Louis DeJoyl, financiador do Partido Republicano e de Trump. Dono de milhões de dólares em ações numa das empresas privadas que se beneficiaria com uma deterioração ou com a privatização do correio, o que tem sido um objetivo de tal partido durante décadas. Para limitar a capacidade do correio para processar as cédulas eleitorais produziu-se um conjunto de mudanças no funcionamento do correio. Entre outras medidas, eliminou a hora extra e retirado um grande número de máquinas de classificação automática de correspondência, produzindo com isso sérios atrasos na distribuição do correio.

Com isso se buscam simultaneamente dois objetivos. Reduzir o número de votos pelo correio, dificultando-o e criando desconfiança de que seriam contabilizados e, ao mesmo tempo, criar uma crise, inclusive um caos no dia das eleições. Se uma proporção maior de eleitores democratas que de republicanos votam pelo correio, no dia das eleições os votos contabilizados primeiro favoreceriam a Trump. Os votos pelo correio, majoritariamente democratas, poderiam ser retardados por vários dias e inclusive chegar aos centros de votação demasiado tarde para ser contados. Isso criaria as condições para que Trump declarasse sua vitória nas eleições, e a possibilidade de que suas milícias armadas de ultradireita saiam às ruas para defender sua vitória. Não seria a primeira vez que as eleições seriam decididas sem contar todos os votos. Este foi o caso da eleição de George Bush, no ano 2000 quando a Corte Suprema suspendeu a contagem de votos na Flórida e declarou que Bush havia ganhado as eleições nesse estado e portando havia prevalecido sobre Al Gore nas eleições nacionais.

Muitos analistas estão falando da perspectiva de uma muito severa crise constitucional se Trump se nega a reconhecer os resultados das eleições. Foram realizados inclusive pronunciamentos públicos chamando os militares a intervir caso isso ocorra.

Em todo caso, trata-se de uma estratégia dupla. Por um lado, fazer todo o possível para limitar a participação eleitoral e, pelo outro lado, gerar o máximo de desconfiança no processo de maneira a ir preparando o terreno para desconhecer os resultados se estes não lhe são favoráveis.

E o governo de Maduro e o guaidoismo?

Qual semelhança pode ter isso tudo com as eleições na Venezuela? Muita!

Por motivos diferentes, tanto o governo de Maduro como o guadoismo estão fazendo todo o possível para gerar desconfiança nas eleições parlamentares e para limitar ao máximo a participação eleitoral.

Os grupos políticos e partidos articulados em torno da figura de Guaidó denunciaram estas eleições como fraudulentas e anunciaram seu chamado à abstenção inclusive antes de se conhecer as condições nas quais estas seriam realizadas, condições não necessariamente muito diferentes daquelas nas quais os partidos de oposição ganharam as parlamentares de 2015 por ampla maioria. Isso por várias razões. Sob a diretriz do governo de Trump de “mudanças de regime” como a única opção aceitável, rechaçaram toda possibilidade de acordo político e visto as eleições como uma reafirmação da Constituição do ano 1999, Constituição que querem eliminar. Têm claro igualmente que, numas eleições livres, ainda nas melhores condições possíveis, haveria uma mudança na composição da Assembleia Nacional. Sabem que o respaldo a Guaidó, e aos partidos e frações de partido que o respaldam hoje, é muito menor do que foi há cinco anos, inclusive em relação a um ano atrás.

O país já não está caracterizado pela polarização dos anos anteriores. De acordo com a pesquisa Delphos do mês de agosto de 2020, a maioria da população rejeita Maduro, mas não por isso se identifica com Guaidó, nem com os partidos que o acompanham. Todas as pesquisas de opinião destacam que uma proporção crescente da população não se identifica com o governo, nem com os partidos dessa oposição. Diferentemente da situação no início de 2019, quando os que reconheciam Guaidó como presidente superavam amplamente os que reconheciam Maduro como tal, hoje 50% da população reconhece Maduro como presidente e somente 16,2% reconhece Guaidó. Enquanto 81,1% afirma que está “pouco satisfeito” ou “nada satisfeito” com “os resultados mostrados por Nicolás Maduro em seu desempenho como político”, a cifra correspondente a Guaidó é ainda maior: 89%. Cerca de 52% dos entrevistados considera que a “via mais realista e possível para superar essa crise” é “mediante acordos pacíficos e negociados” entre governo e oposição, uma elevada proporção dos que se identificam com esses partidos da oposição, ao mesmo tempo que rejeita a participação eleitoral, considera que a superação da crise passa por uma intervenção militar internacional (42,9%). Mais entrevistados se sentem identificados com o PSUV (24.4%) que a somatória dos que se sentem identificados com os quatro partidos do chamado G4 (15,6%). Mais pessoas afirmam que estariam dispostas a votar nos candidatos do governo que nos candidatos dos partidos dessa oposição, e mais estariam dispostos a votar nos candidatos independentes, que nos candidatos desses partidos.

Sabe este setor da oposição que com estes significativos deslocamentos políticos e os efeitos da melhoria na representação proporcional, a composição da Assembleia Nacional, ainda numas eleições com um máximo de garantias, mudaria substancialmente. Seria uma assembleia muito mais diversa na qual nenhum setor teria hegemonia e portanto passaria a ser um âmbito no qual, para tomar decisões, seria preciso chegar a acordos, seria indispensável negociar com os oponentes políticos. Sabem que, sem dúvida, Guaidó deixaria de ser presidente da Assembleia e com isso se viria abaixo todo o andaime de seu governo paralelo. Resultaria difícil ao que os Estados Unidos chamam de “comunidade internacional” seguir reconhecendo Guaidó como “presidente legítimo”. A opção foi então a de se negar a participar, desconhecer de antemão as eleições e seus resultados, fazer o possível por deslegitimá-las, e buscar ao máximo de abstenção. Tudo isso parece conduzir à criação de um governo no exílio com um destino incerto.

A prioridade destes setores é exterminar a experiência bolivariana e controlar o poder do Estado custe o que custar. A melhor demonstração desta disposição a colocar seus interesses políticos e/ou pessoais por cima dos interesses da população é, não somente seu apoio às ilegais sanções econômicas unilaterais que lhe impôs o governo de Trump a Venezuela, mas seus sucessivos chamados a incrementá-las. Estas sanções não afetam ao governo de Maduro, que as utiliza para cerrar fileiras nas forças armadas e nos PSUV e, igualmente, justificar a profundidade da crise. Afetam severamente o conjunto do povo venezuelano. Nas condições da severa crise humanitária que vive o país, aprofundada pela pandemia, apoiar o bloqueio à exportação de petróleo – principal fonte de entrada das divisas requeridas para importar alimentos e medicamentos – obstaculizar ou impedir a importação de insumos e apropriar-se, como piratas, de gasolina propriedade do Estado venezuelano em águas internacionais, buscando deter a atividade produtiva do país, ilustra onde estão as prioridades deste setor. É uma política diretamente criminosa.

O governo de Maduro busca, igualmente, promover a abstenção eleitoral. Necessita as eleições para cumprir, pelo menos formalmente, a Constituição, buscar algum mínimo de legitimidade, e para se livrar de Guaidó. Mas sabe que se é elevada a participação eleitoral, dado o muito amplo rechaço da população tanto a ele como a seu governo, sairia esmagadoramente derrotado. Propõe-se portanto mobilizar ao máximo a sua hoje mais reduzida, mas existente, base eleitoral, e buscar todos os meios que o restante da população se abstenha como ocorreu nas eleições da ilegítima Assembleia Nacional Constituinte que terminou sendo conformada em 100% por representantes do governo.

Para conseguir estes objetivos, ele se dedicou, e certamente continuará fazendo isso, a colocar todos os obstáculos possíveis à participação eleitoral, cometendo uma ampla gama de arbitrariedades e ilegalidades, dando de bandeja aos abstencionistas da oposição guaidoísta todos os argumentos requeridos para justificar sua política abstencionista. A lista destas ilegalidades, obstáculos e arbitrariedades é ampla. Como ilustração basta apontar algumas: a limitada atualização do registro eleitoral, os apertados lapsos do cronograma eleitoral, a forma como se nomeou à diretiva do Conselho Nacional Eleitoral e como, violando todas as normas, o TSJ nomeou ao novo vice-presidente do corpo. Entretanto tudo isso passa para um segundo plano em comparação com a mais dura autoritária e arbitrária ilegalidade: a intervenção por parte do governo, via TSJ, dos partidos da aliança guaidoísta, sua decapitação e a nomeação de novas direções mais favoráveis ao governo. A intervenção do Movimento Tupamaro, da UPV, e do PPT permite constatar que organizações de esquerda, aliados que se atrevem a assumir posturas críticas, são igualmente submetidas.

As eleições são um âmbito privilegiado da democracia. Como nos Estados Unidos, os múltiplos obstáculo que se põem no caminho para limitar a participação eleitoral, venha esta de onde venha, constituem uma violação ao direito que tem a população de eleger seus representantes e governantes.

Tanto nos Estados Unidos como na Venezuela, são muitos os obstáculos que é preciso superar para votar. Na Venezuela não se deve votar porque se considere que estas são eleições limpas, equitativas, livres. É preciso votar apesar desses obstáculos, apesar destas provocações, precisamente porque se reconhece que estes dois polos extremos que deixaram de representar o país estão fazendo tudo o que for possível para que não votemos, para negar voz à maioria.

As eleições, por si mesmas, não são uma solução mágica. Por si mesmas, obviamente, não nos conduzem à superação das profundas crises que vive a Venezuela. Mas podemos utilizá-las como um referendo para expressar nosso massivo rechaço a estes dois polos que têm sido cúmplices na destruição da nação, e que estão nos conduzindo para níveis de violência extremamente perigosos. Oferecem a possibilidade de começar a expressar e articular as forças necessárias para recuperar sua Constituição e reconstruir o país.

25 de Caracas, agosto de 2020

Artigo originalmente publicado em Aporrea.org. Reprodução da tradução realizada por Charles Rosa para o Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.

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[1]. De acordo com o Washington Post, que dedicou uma equipe ao acompanhamento de cada um de seus pronunciamentos como presidente até 13 de julho de 2020, Trump havia enunciado 20 mil afirmações falsas ou enganosas. https://www.washingtonpost.com/politics/2020/07/13/president-trump-has-made-more-than-20000-false-or-misleading-claims/

[2]. Centers for Disease Control and Prevention, 23 de Agosto 2020. https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/cases-updates/cases-in-us.html

[3]. Aaron Blake, “Trump blurts out his true motive on mail-in voting”, The Washington Post, 13 de Agosto, 2020. https://www.washingtonpost.com/politics/2020/08/13/trump-blurts-out-his-true-motive-blocking-post-office-funding-mail-in-voting/


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