Apesar da crise pandêmica, resistências crescem na América Latina

Uma análise da situação latino-americana por Ana Carvalhaes e Israel Dutra.

Ana Carvalhaes e Israel Dutra 4 maio 2021, 18:45

Numa das regiões que mais contribui para a alta global do número de casos e mortes por Covid-19, em meio ao descontrole da pandemia, de hospitais hiperlotados, falta de oxigênio, medicamentos e vacinas suficientes; além de desemprego, fome e desigualdade em escalada inédita, trabalhadores, estudantes e jovens de periferia, povos negros e originários da América Latina encontram formas de se levantar em defesa da vida – contra os planos de austeridade assassina de governos de direita ou centro-direita.

A catástrofe pandêmica não tem impedido as lutas e os embates político-ideológicos no terreno das eleições. Depois do levante paraguaio em março (uma explosão popular contra a incompetência governamental no trato com a saúde), agora é a vez da Colombia – onde está em curso uma inédita mobilização nacional (com uma greve nos dias 28 e 29 de abril, que aponta nova data para maio) que une trabalhadores urbanos, camponeses, indígenas, ambientalistas, em torno da derrubada da reforma tributária para os ricos que Duque tenta impor. Não é qualquer detalhe que entrem em movimento os explorados do segundo país mais populoso da América do Sul, com tradição histórica de governos direitistas e bastião militar dos EUA na região.

Tampouco é de se desprezar que, no México de AMLO, o polêmico presidente de  esquerda siga com 68% de aprovação popular e trave embate duro com organizações empresariais e o Judiciário em torno da renacionalização do setor elétrico – medida que já foi aprovada pelo senado mexicano e é igualmente apoiada majoritariamente pela população, na esperança de tarifas mais baixas. Travada na Justiça por juízes a serviço das empresas privadas do setor, a (des)reforma elética no México tende a acirrar a luta política-ideológica sobre saídas para a crise atual.

O que as eleições de abril dizem sobre a região?

Foi nesse contexto de crise social-econômica profunda e de placas tectónicas se mexendo no interior das sociedades larino-americanas, que aconteceram eleições em diferentes níveis em três países andinos no dia 11 de abril. Os resultados são também importantes para atualizar a avaliação da desafiadora situação política da região. Tivemos o primeiro turno das presidencias no Peru, eleições departamentais em quatro províncias da Bolívia e o polarizado segundo turno das presidenciais no Equador – países sacudidos por fortes processos de luta socal nos últimos anos. Ainda teriam acontecido as eleições para parlamentares constituintes no Chile, mas estas foram adiadas devido ao  agravamento da pandemia.

No Equador, o neoliberal direitista Guillermo Lasso, apoiado pela maioria do eleitorado de Quito e por todas as forças conservadoras do continente, derrotou o jovem Andrés Arauz, herdeiro político de Rafael Correa (este impedido legalmente de concorrer). Em pleito marcado por alta fragmentação, depois de anos de intensa crise institucional, o Peru levou ao segundo turno um sindicalista de esquerda, representante do país profundo, e a herdeira direta do golpista e corrupto Fujimori, ao mesmo tempo que elegeu um Congresso majoritariamente à esquerda. Na Bolívia, eleições para a chefia dos departamentos de La Paz, Tarija, Chuquisaca (onde fica Sucre) e Pando representaram derrotas para o MAS, mas com signos diferentes de local a local.

Diante do quadro regional de crises sanitária, econômico-social e política articuladas – o que põe mais uma vez pelo menos a América do Sul em sintonia com o panorama mundial –, com um Chile em compasso de espera, um Paraguai em rebelião popular, Colômbia e Brasil com governos nas mãos da direita mais retrógrada e antidemocrática, e o imperialismo do Norte sob novo comando, que sinais emitem os resultados dessas eleições? O que podemos prever sobre o próximo período?

Primeiro olhar sobre os resultados

A tremenda fragmentação de opções nas presidenciais peruanas é a expressão mais acabada da profunda crise de representação de seu regime democrático-burguês, depois de quatro presidentes acusados de corrupção – presos ou inelegíveis – , um suicídio (Alan García), várias tentativas de golpes parlamentares e um golpe derrotado pelas ruas. Havia onze postulantes, que iam desde um ex-jogador de futebol, Forsyth, até o ex-presidente Ollanta Humala, passando por candidatos tradicionais, como Lescano do APRA. A  direita e a extrema-direita se concentraram em duas candidaturas: a de Keiko Fujimori (filha e herdeira política do ex-ditador) e Rafael Aliaga, reconhecido como o Bolsonaro peruano.

Da parte da esquerda, as candidaturas que apareciam com chances de segundo turno eram Veronika Mendonça (Juntos por Peru) e Pedro Castilho (Peru Livre). O sindicalista Castilho, com força no interior da selva e Andes, acabou surpreendendo – além de dirigente da maior greve de professores da última década, enfrentado com a burocracia sindical, o atual favorito para o segundo turno soube incorporar sua trajetória antissistêmica, o que dá votos na crise peruana.

No Equador, a direita neoliberal do banqueiro Guillermo Lasso venceu no segundo turno contra Andrés Arauz, herdeiro de Rafael Correa (57,58% a 47,48%), numa virada de jogo em que pesaram o desgaste do correísmo, de um lado, e a crise  em torno de possíveis irregularidades na primeira volta. Naquela, em fevereiro, a ínfima diferença entre Lasso e Yakku Pérez, do Movimento Plurinacional Patchakutik, foi acertadamente questionada pelos movimentos sociais que apoiaram o candidato indígena, reforçando a opção da CONAIE por chamar a um voto nulo “ideológico” contra o sistema político como um todo. Na arguta observação do analista equatoriano Juan Cuvi, foi de fato um estranho segundo turno entre três forças. O resultado é que o governo do Equador volta às mãos de um representante direto da burguesia depois de 35 anos, com um programa frontalmente ultraneoliberal, mas com a terrível contradição de enfrentar-se com um povo não derrotado e uma oposição de esquerda ampla majoritária no parlamento ( o movimento de Lasso elegeu 22 assembleístas, contra 48 da aliança de Arauz e 27 de Patchakutik, sem contar os 14 da Izquierda Democrática). [Ver a respeito: https://nuso.org/articulo/como-volvio-la-derecha-al-poder-en-ecuador/)

Na Bolívia, o 11 de abril fechou um ciclo de três eleições em sete meses depois de derrotado o governo golpista de Añez, com a realização do segundo turno em quatro departamentos (províncias) importantes. Os candidatos do MAS perderam em todas – embora o movimento social e político de Evo Morales continue sendo a única força partidária nacional.  Em Santa Cruz (epicentro do reaccionarismo anti-plurinacional e berço da ultra direita), venceu o incansável Fernando Camacho. Na amazônica Pando, um candidato de direita menos extrema venceu até mesmo a ex-golpista Añez. Em Tarija, ganhou uma força local à direita – Unidos por Tarija, enquanto em Chuquisaca, a vitória ficou com o ex-líder camponês David Condori.

No cômputo geral, o MAS ficou com a “gobernación” de três dos nove departamentos do país (Cochabamba, Oruro e Potosí), tal como em 2005 – tendo perdido outras três em que era governo – além de ficar com o gosto amargo da derrota em cidades importantes como La Paz (em que venceu para prefeito um ex-ministro de Añez), Cochabamba e a estratégica El Alto. Os números gerais e, em particular, o desempenho de candidatos ligados a movimentos sociais que já foram do MAS ou arrastam bases masistas (como a ex-senadora Eva Copa, agora prefeita de El Alto, e os governadores eleitos de La Paz e Chuquisaca) aumentam a temperatura do debate interno do partido-movimento de Evo, onde escolhas de candidatos “a dedo” pelo ex-presidente já eram fortemente questionadas mesmo antes da derrota.

Não há  “ciclo conservador” em ascensão

Embora ainda faltem o segundo turno peruano e as constituintes chilenas (além das parlamentares mexicanas em junho), é possível apontar muito inicialmente  elementos que comporão a situação política da região no próximo período.  A crise de múltiplas faces do capitalismo global se expressa regionalmente também por uma tremenda crise dos regimes democrático-burgueses (mais ou menos grave de país a país), que se agrava, em vez de ter solução, com o crescimento aqui e ali das alternativaas neofascistas. A falência das opções neoliberais cosmopolitas do início do século (Menem, FHC, PRI mexicano, Piñeira, Lozadas e Mesas na Bolívia) e a ausência por ora de uma esquerda anticapitalista de novo tipo, apontam que as próximas disputa se darão entre opções neoliberais-oligárquicas (mais ou menos debilitadas), de um lado, com herdeiros do chamado “progressimo” que governou durante boa parte do atual século.

Com a quase certa continuidade das lutas sociais, de agora em diante ainda mais prováveis por conta do empobrecimento brutal provocado pela pandemia, não se fechará a contra-ofensiva neoliberal dos últimos anos, embora estas opções estejam menos fortes que há dois, três anos e possam se debilitar ainda mais com novos embates nas ruas e urnas. A experiência dos povos  e trabalhadores latino-americanos com o neoliberalismo e seus “monstros”mais (Bolsonaro) ou menos exóticos (Duque, Piñera, Lasso, Lacalle) vai continuar e se aprofundar.

Guardadas todas as diferenças de experiência, organização, derrota ou vitórias recentes entre os vários estados da região, as alternativas capitalistas autóctonas, profundamente associadas aos EUA, não têm projeto que dê conta das respostas econômicas, democráticas e de soberania nacional necessárias à superação das tragédias sanitárias, ambientais e sociais do mundo da Covid. Seus planos de superexploração e autoritarismo (escancarado ou disfarçado) seguirão se chocando com as demandas de vacina, hospital, emprego, renda, educação, habitação e transportes, independência política e, acima de tudo, o direito de se organizar e lutar por suas vidas. O próximo período será de mais choques e convulsões sociais. Basta pensar no Equador: como conseguirá Lasso impor sua receita de “apertar os cintos” e subjugar o país aos ditados do mercado internacional diante de uma sociedade complexa, organizada em diferentes âmbitos e experiente em derrubar ou desgastar governos que a enfrenta?

Não haverá progressismo como antes

Tampouco se abriu nem é provável que se abra um “novo ciclo” do chamado “progressismo” – categoria sob a qual se classificou experiências tão distintas quanto os processos da Venezuela e da Bolívia (de frontal rusgas com o imperialismo) e, de outro lado, os social-liberais da “Concertación” chilena, Frente Ampla uruguaia e do PT no Brasil (este ademais com pretensões e práticas subimperialistas). Ou seja, é pouco provável a repetição de hegemonia regional de governos de centro-esquerda ou esquerda com mais ou menos traços anti-imperialistas, em condições de promover certo redistributivismo. Isto não significa negar a importância das vitórias do MAS na Bolívia, de AMLO no México, da derrota de Macri na Argentina, nem descartar que Lula possa voltar a presidir o Brasil. Nem que não torçamos para a vitória de Castillo contra Fujimori no Peru.

A questão é que o “progressismo”da primeira década do século, tanto em suas faces mais bolivarianas como nas mais social-liberais, foi resultado de condições econômicas e políticas globais (e também domésticas), muito específicas, que não se repetirão.  O relativo êxito dos chamados governos “progressistas” sustentou-se também naquilo em que foi (e é, veja-se a situação atual da Venezuela) sua estrutural limitação: se nutriu do “boom” das commodities, criando modelos desenvolvimentistas extrativistas, tendentes a reforçar a natureza agrário-exportadora (portanto colonial e depredatória) das economias da região.

Na versão social-liberal, pensando no plano interno, construíram conscientemente coalizões de classe entre forças populares e setores mais ou menos amplos das classes dominantes – que depois desembarcaram desses projetos e não parecem dispostas a reexperimentá-los.

A crise econômica global de hoje,  sem precedentes, e a agudização do embate entre EUA e China (sem falar em EUA versus Rússia) fazem impossível a repetição de um novo período mais ou menos longo de estabilidade baseado no modelo de uma época em que o mundo crescia e EUA, Europa, China e Rússia coexistiam sem maiores tensões.

Desgraçadamente, as opções progressistas não superaram este modelo e continuam chamando os povos a crer que é possível “começar de novo”, como se nada tivesse mudado, como se não tivessem governado e se desgastado diante de seus apoiadores e novas gerações de ativistas – por se chocar com suas demandas. Como assinalou Franck Gaudichaud em entrevista recente ao L’Humanité:  “A América Latina – como o resto do mundo – entrou num período de forte turbulência, que combina uma crise económica gigantesca, o impacto muito significativo da crise sanitária em sociedades estruturalmente desiguais, o aprofundamento da crise da biosfera e do clima, e finalmente uma nova polarização social, política e ideológica”. (https://www.humanite.fr/franck-gaudichaud-en-amerique-latine-le-bilan-de-la-restauration-neoliberale-est-catastrophique)

Evidente que, ainda mais com o crescimento da extrema-direita ultraliberal e conservadora, está colocado lutar ombro a ombro com setores “progressistas” e mesmo, eventualmente, unir-se a eles ou apoiá-los em eleições. Mas o debate estratégico fica empobrecido quando se freia o pensamento e ação nessa tática frentista. Porque nem toda a ampla “esquerda social” (ativismo mais eleitorado) latino-americana é disciplinadamente “progressista”, como foram as bases dos partidos operários europeus do século XIX. É preciso conquistar os que nunca foram e os que se desiludiram. E porque a disputa pela consciência dos povos e trabalhadores não se dá única e exclusivamente por uma tática.

Nas grandes lutas sociais dos últimos anos, em especial as mais recentes (Chile, Equador, Peru, Bolívia, México, mesmo Argentina, Brasil e agora no Paraguai e Colômbia) surgiram e continuam surgindo centenas de milhares de ativistas antissistêmicos, em que se destacam movimentos de bairros periféricos, feministas, antirracistas, ambientalistas, de povos originários, do campo, das comunidades LGBTQI, da juventude escolarizada, de professores e de novos assalariados por aplicativos – todos com bandeiras  que se chocam com as limitações do “progressismo” clássico, porque se chocam com as condições de vida impostas pelo capitalismo contemporâneo. Os casos do Equador, Peru e Bolívia, ainda que eleitorais, expressam as tremenda contradições, problemas e desafios que a nova situação latino-americana traz com ela – problemas para a direita, para a esquerda tradicional e para os que se propõem a construir uma alternativa anticapitalista nova, ecológica, feminista, antirracista e democrática.

Como os  exemplos da Bolívia, Peru e Equador apontam, cada um a sua maneira e diferente intensidade, há crescente espaço social e político para a construção de alternativas anticapitalistas com programas que, surgindo dos embates sociais, avancem nas respostas à desigualdade de todo tipo, ao racismo, à fome, aos regimes corruptos, à violência policial-militar, à destruição do meio-ambiente, ao etnocídio dos povos indígenas. O caminho disso não será linear, nem fácil, haverá altos e baixos, derrotas e vitórias. O grande desafio é estar nas lutas, junto a essa nova geração de lutadores, para construir com eles (e não para eles) nosso programa de ruptura.


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