Para combater o aumento das desigualdades, devemos cancelar as dívidas e implementar um projeto socialista, feminista, ecológico, anticapitalista, antiracista, internacionalista e de autogestão
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Para combater o aumento das desigualdades, devemos cancelar as dívidas e implementar um projeto socialista, feminista, ecológico, anticapitalista, antiracista, internacionalista e de autogestão

Entrevista com Eric Toussaint por C.J. Polychroniou para o site da TruthOUT.

C. J. Polychroniou e Éric Toussaint 21 jun 2021, 14:54

Entrevista com Eric Toussaint por C.J. Polychroniou para o site da TruthOUT https://truthout.org/

Pergunta: Nas últimas décadas, a desigualdade aumentou em muitos países do mundo, tanto no mundo desenvolvido quanto no Sul global, criando o que o Secretário Geral da ONU, Antonio Guterres, chamou em seu prefácio ao Relatório Social Mundial 2020 de ’uma paisagem global profundamente desigual’. Além disso, o 1% mais rico da população é o grande vencedor da economia capitalista globalizada do século 21. A desigualdade é um desenvolvimento inevitável diante da globalização, ou é o resultado de políticas e ações tomadas no nível de cada país?

Éric Toussaint: O aumento da desigualdade não é inevitável. No entanto, é óbvio que a explosão das desigualdades é consubstancial à fase em que o sistema capitalista mundial entrou na década de 1970, há meio século. A evolução das desigualdades no sistema capitalista está diretamente relacionada com as relações de forças entre as classes sociais fundamentais, entre Capital e Trabalho. Quando uso o termo ’mão-de-obra’, estou me referindo aos assalariados das cidades, assim como aos trabalhadores e pequenos produtores do campo.

A explosão das desigualdades é consubstancial com a fase em que o sistema capitalista mundial entrou na década de 1970

Podemos distinguir grandes períodos na evolução do capitalismo de acordo com a evolução das desigualdades e das relações sociais de forças. As desigualdades aumentaram entre o início da revolução industrial na primeira metade do século XIX e as políticas implementadas pela administração de F. D. Roosevelt nos Estados Unidos na década de 1930, e depois diminuíram até o início da década de 1980. Na Europa, a virada para a redução da desigualdade ficou atrás dos Estados Unidos por cerca de uma década, pois foi somente no final da Segunda Guerra Mundial e na derrota final do nazismo que as políticas para reduzir a desigualdade foram implementadas, seja na Europa Ocidental ou na parte da Europa que passou para o campo de Moscou. Nas principais economias latino-americanas, a desigualdade foi reduzida dos anos 30 aos 70, particularmente durante as presidências de L. Cardenas no México e J. D. Peron na Argentina. No período entre os anos 30 e 70, houve grandes lutas sociais. Em muitos países capitalistas, o Capital teve que fazer concessões ao Trabalho a fim de estabilizar o sistema. Em alguns casos, a natureza radical das lutas sociais levou a revoluções, como na China, em 1949, e em Cuba, em 1959.

Podemos distinguir grandes períodos na evolução do capitalismo de acordo com a evolução das desigualdades e das relações sociais de forças

A volta à políticas que reforçaram fortemente a desigualdade começou de maneira brutal nos anos 70 na América Latina e em parte da Ásia. A partir de 1973, podemos citar a ditadura do General Pinochet, aconselhada pelos Chicago boys, a ditadura de F. Marcos nas Filipinas, e as ditaduras na Argentina e no Uruguai, para citar apenas alguns exemplos de países onde as políticas neoliberais foram colocadas em prática pela primeira vez.

A volta à políticas que reforçaram fortemente a desigualdade começou de maneira brutal nos anos 70

Essas políticas neoliberais, que produziram um forte aumento da desigualdade, se generalizaram a partir de 1979 na Grã-Bretanha com M. Thatcher, de 1980 nos Estados Unidos com R. Reagan, de 1982 na Alemanha com H. Kohl, e de 1982-1983 na França após a virada à direita de F. Mitterrand.

As desigualdades aumentaram acentuadamente com a restauração capitalista nos países da ex-União Soviética e seu bloco na Europa Central e Oriental. Na China, a partir da segunda metade dos anos 80, as políticas ditadas por Deng Xiaoping também levaram a uma restauração gradual do capitalismo e a um aumento da desigualdade.

É também muito claro que para os ideólogos do sistema capitalista e para toda uma série de funcionários de organizações internacionais, um aumento da desigualdade é uma condição necessária para o crescimento.

Recordemos que Simon Kuznets [1] desenvolveu nos anos 50 uma teoria segundo a qual um país cuja economia decola e progride deve necessariamente passar por uma fase de crescente desigualdade. De acordo com este dogma, a desigualdade começará a cair assim que o país atingir um patamar mais elevado de desenvolvimento. É uma espécie de promessa de paraíso após a morte usada pelas classes dirigentes para fazer as pessoas aceitarem uma vida de sofrimento e retrocessos. A necessidade de ver a desigualdade aumentare um dogma muito enraizado no Banco Mundial. As palavras do presidente da WB Eugene Black em abril de 1961 são prova disso: ’A desigualdade de renda decorre necessariamente do crescimento econômico (que) dá às pessoas a oportunidade de fugir de uma vida de pobreza’ [2]. Entretanto, estudos empíricos realizados pelo Banco Mundial durante a época de Hollis Chenery, o economista-chefe da instituição nos anos 70, refutaram as afirmações de Kuznets.

Em seu livro O Capital no século XXI [3], Thomas Piketty apresentou uma crítica muito interessante sobre a teoria de Kuznets. Piketty lembra que no início o próprio Kuznets duvidava da validade de sua curva, mas isso não o impediu de torná-la uma teoria que tem uma vida longa. Entretanto, as desigualdades atingiram um nível nunca visto na história da humanidade. Este é o produto da dinâmica do capitalismo globalizado apoiado pelas políticas das instituições internacionais encarregadas do ’desenvolvimento’ e dos governos que favorecem os 1% mais ricos, em detrimento da esmagadora maioria da população tanto do Norte como do Sul do planeta.

As desigualdades atingiram um nível nunca visto na história da humanidade. Este é o produto da dinâmica do capitalismo globalizado

Em 2021, o Banco Mundial analisou à primavera árabe de 2011 https://www.bancomundial.org/es/new… afirmando, contra todas as evidências, que o nível de desigualdade era baixo em toda a região árabe e isso os preocupava muito porque, segundo eles, é um sintoma de que algo não está funcionando suficientemente no suposto sucesso econômico da região. Como fiéis seguidores da teoria de Kuznets, Vladimir Hlasny e Paolo Verme afirmam em um artigo publicado pelo Banco Mundial que ’a baixa desigualdade não é um indicador de uma economia saudável’ [4].

Gilbert Achcar resume a posição tomada por Paolo Verme do Banco Mundial da seguinte forma: ’segundo o estudo do Banco Mundial de 2014, é a aversão à desigualdade, e não a desigualdade per se, que deve ser deplorada, uma vez que a desigualdade deve inevitavelmente aumentar com o desenvolvimento a partir de uma perspectiva kuznetsiana’ [5].

Finalmente, é muito claro que a pandemia do coronavírus aumentou ainda mais a desigualdade na distribuição de renda e riqueza. A desigualdade diante da doença e da morte também aumentou drasticamente.

As políticas neoliberais criaram altos níveis de dívida para os chamados mercados emergentes e países em desenvolvimento, com a dívida ameaçando criar uma emergência de desenvolvimento global que poderia ser mais grave do que a emergência sanitária global criada pela pandemia de Covid-19. Qual é a solução mais realista para a crise da dívida nos países em desenvolvimento?

A solução é clara: suspensão dos pagamentos, sem multa de atraso. Além da suspensão dos pagamentos, auditorias da dívida devem ser realizadas em cada país com a participação ativa dos cidadãos, a fim de determinar qual parte da dívida é ilegítima, odiosa, ilegal e/ou insustentável e deve ser cancelada. Uma crise desta magnitude impõe de ’zerar os ponteiros’, como aconteceu em muitas ocasiões na história da humanidade. David Graeber nos lembrou disso em seu famoso livro Debt: 5000 Years of History (Dívida: 5000 Anos de História).

Uma crise desta magnitude impõe de ’zerar os ponteiros’, como aconteceu em muitas ocasiões na história da humanidade

No nível do CADTM, que é uma rede global ativa principalmente no Sul do planeta, mas também no Norte, a necessidade de recorrer a suspensões de pagamentos e cancelamentos de dívidas não diz respeito apenas aos países em desenvolvimento, sejam eles emergentes ou não. Também diz respeito aos países do Norte, começando por países como a Grécia ou as semicolônias como Porto Rico.

As dívidas abusivas cobradas das classes trabalhadoras devem ser canceladas

Também devemos ousar falar sobre a anulação das dívidas abusivas cobradas das classes trabalhadoras. Os bancos privados e outras organizações privadas desenvolveram uma política muito agressiva de empréstimos às classes trabalhadoras que recorrem ao empréstimo porque sua renda não é suficiente para pagar o ensino superior ou para o atendimento à saúde. As dívidas dos estudantes totalizam mais de 1650 bilhões de dólares nos Estados Unidos, uma grande parte das dívidas hipotecárias está sujeita a condições abusivas (como a crise do subprime mostrou claramente a partir de 2007), algumas dívidas dos consumidores também são abusivas, assim como no Sul, a maioria das dívidas ligadas ao microcrédito abusivo.

O endividamento das classes trabalhadoras está eminentemente ligado ao agravamento das desigualdades e à demolição do estado debem-estarem que a maioria dos governos tem se empenhado desde os anos 80. Isto é verdade em todos os cantos do mundo: no Chile, Colômbia, região árabe, Japão, Europa e Estados Unidos. Como as políticas neoliberais desmantelam os sistemas de proteção, as pessoas são, por sua vez, forçadas a assumir dívidas individuais para compensar o não cumprimento das obrigações dos Estados de proteger, promover e cumprir os direitos humanos. Cynzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser destacaram isso em seu livroFeminismo para os 99%: Um manifesto

Quais são as alternativas para outro modelo de desenvolvimento?

Como dizemos nomanifesto{}Acabemos com o sistema privado de patentes!: ’A crise sanitária está longe de ser resolvida. O sistema capitalista e as políticas neoliberais têm desempenhado um papel fundamental em todas as etapas. Na raiz deste vírus está a transformação desenfreada da relação entre a espécie humana e a natureza. A crise ecológica e a crise sanitária estão intimamente ligadas.

Os governos e o Grande Capital só abandonarão a continuação desta ofensiva contra os interesses da esmagadora maioria da população se mobilizações muito poderosas os obrigarem a fazer concessões.

Entre os novos ataquesaos quaisque temos que resistir: a aceleração da automação/robotização do trabalho; a generalização do teletrabalho onde os funcionários estão isolados, têm ainda menos controle de seu tempo e têm que assumir uma série de custos ligados às suas ferramentas de trabalho que não teriam que assumir se estivessem fisicamente trabalhando na empresa; novos ataques contra a educação pública e um desenvolvimento do ensino à distância que aprofunda as desigualdades culturais e sociais; o reforço do controle da vida privada e dos dados privados; o reforço da repressão,…

Entre os novos ataques: a aceleração da robotização do trabalho; a generalização do teletrabalho; novos ataques ao ensino público e ao desenvolvimento do ensino à distância; o reforço do controle da vida privada e da repressão, …

A questão da dívida pública está de volta ao centro das batalhas sociais e políticas. Hoje, as dívidas públicas estão explodindo porque os governos recorremmaciçamente ao endividamento para evitar tributar os ricos na luta contra os efeitos da epidemia da Covid-19 e logo, sob o pretexto de pagar essas dívidas, eles retomarão a ofensiva de austeridade. Consequentemente, a luta pelo cancelamento das dívidas públicas ilegítimas deve assumir um novo vigor. As dívidas privadas ilegítimas reclamadas das classes trabalhadoras também pesarão cada vez mais na vida cotidiana. A luta pelo seu cancelamento deve ser reforçada.

As dívidas públicas estão explodindo porque os governos recorremmaciçamente ao endividamento para evitar tributar os ricos

As lutas que irromperam em vários continentes em junho de 2020, incluindo as lutasantirracistasmassivas sob o tema ’Black Lives Matter’, mostram que as classes trabalhadoras e os jovens não aceitam a continuação do status quo.

Em 2021, as enormes mobilizações populares na Colômbia e mais recentemente no Brasil mostram mais uma vez que os povos da América Latina estão resistindo em massa.

É necessário contribuir o máximo possível para a criaçãode um novo movimento social e políticopoderoso capaz de ajudar na convergência das lutas sociais e de contribuir para a elaboração de um programa de ruptura com o capitalismo, propondo soluçõesanticapitalistas,antirracistas, ambientalistas, feministas e socialistas.

É fundamentalagir para a socialização dos bancos com expropriação dos grandes acionistas, para a suspensão do pagamento da dívida públicaatérealizar uma auditoria com participação cidadã para repudiar a parte ilegítima da dívida, para a imposição de um imposto de crise muito alto aos mais ricos, para o cancelamento das dívidascobradasilegitimamente das classes trabalhadoras (dívidas estudantis, hipotecas abusivas…), para o fechamento das bolsas de valores que são lugares de especulação, para a redução radical das horas de trabalho (com manutenção dos salários) a fim de criar um grande número de empregos socialmente úteis, para o aumento radical dos gastos públicos com saúde e educação, para a socialização das empresas farmacêuticas e do setor energético, para arelocalização de um máximo de produção e o desenvolvimento de circuitoscurtose toda uma série de outras demandas essenciais.

Há alguns anos, você disse que o projeto socialista havia sido traído e tinha que ser reinventado no século 21. Como deve ser o socialismo no mundo de hoje, e como isso pode ser alcançado?

Hoje o projeto socialista deve ser feminista, ecológico, anticapitalista, antirracista, internacionalista e autogerenciado. Em 2021, comemoramos o 150º aniversário da Comuna de Paris, na qual o povo estabeleceu uma forma de autogoverno democrático: uma combinação de auto-organização e formas de delegação de poder que poderiam ser contestadas a qualquer momento, pois todos os mandatos públicos eram revogáveis a pedido do povo. Deve-se afirmar claramente que a emancipação dos oprimidos será obra dos próprios oprimidos ou não será. O socialismo só pode ser alcançado se os povos se fixarem conscientemente o objetivo de construí-lo e se eles se equiparem com os meios para evitar a degeneração autoritária ou ditatorial e a burocratização da nova sociedade.

O projeto socialista deve ser feminista, ecológico, anticapitalista, antirracista, internacionalista e autogerenciado

É necessário sublinhar a validade do que Rosa Luxemburgo disse em 1918: “sem imprensa livre, sem livre associação e reunião, a dominação de vastas camadas populares é totalmente impensável” (A revolução russa, Fundação Rosa Luxemburgo, 2017, p. 91,pdf para baixar)

Ela acrescentava: “Liberdade somente para os partidários do governo, somente para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam –, não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente. Não por fanatismo pela “justiça”, mas porque tudo quanto há de vivificante, salutar, purificador na liberdade política depende desse caráter essencial e deixa de ser eficaz quando a “liberdade” se torna privilégio

Diante da crise multidimensional do capitalismo e sua corrida para o abismo devido à crise ecológica, ajustar o capitalismo não é uma opção real, seria apenas um mal menor que não forneceria as soluções radicais que a situação exige.


Tradução: Alain Geffrouais

Fonte: https://truthout.org/articles/to-address-increasing-inequality-and-global-poverty-we-must-cancel-debt/

Notas

[1] KuznetsSimon. 1955. « Economic Growth and Income Inequality »,American Economic Review, n°49, mars 1955, p.1-28.

[2] CitadoparDevesh Kapur, John P. Lewis, Richard Webb.1997.The World Bank, Its First Half Century,Volume 1, p. 171.

[3] O Capital no Século XXI,Intrínseca, 2014

[4] « low inequality was not an indicator of a healthy economy »Vladimir Hlasny et Paolo Verme, « On the ‘Arab Inequality Puzzle’: A Comment », publicado em janeirp 2021 na revista Development and Change do Instituto de Estudos Sociais da Haya, p. 4.

[5] Gilbert Achcar , ’On the ‘Arab Inequality Puzzle’: The Case of Egypt’, publicado17de março2020,https://doi.org/10.1111/dech.12585 in the view of the 2014 World Bank study, it is inequality aversion, not inequality per se, that should be deplored, since inequality must inevitably rise with development from a Kuznetsian perspective. … Following the same logic, in order to conform to the Kuznets curve, it is more inequality rather than less that Egypt needs


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