Rússia: origem e consequências do repúdio das dívidas de 10 de Fevereiro de 1918
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Rússia: origem e consequências do repúdio das dívidas de 10 de Fevereiro de 1918

Em Fevereiro de 1918 o repúdio das dívidas pelo governo soviético abalou a finança internacional e suscitou a condenação unânime por parte dos governos das grandes potências.

Eric Toussaint 9 fev 2022, 15:40

Em Fevereiro de 1918 o repúdio das dívidas pelo governo soviético abalou a finança internacional e suscitou a condenação unânime por parte dos governos das grandes potências.

Essa decisão de repúdio inscrevia-se na continuidade do primeiro grande movimento de emancipação social que abalou o império russo em 1905. Este vasto levantamento revolucionário foi provocado pela conjugação de diversos factores: o desastre russo na guerra contra o Japão, a cólera dos camponeses que exigiam terras, a rejeição da autocracia, as reivindicações operárias … O movimento teve início nas greves em Moscovo, em Outubro de 1905, e alastrou como um rastilho de pólvora a todo o império, assumindo diferentes formas de luta. No decurso do processo de auto-organização das massas populares nasceram os conselhos (sovietes, em russo) de camponeses, de operários, de soldados … 

1. Rússia: O repúdio das dívidas no cerne das revoluções de 1905 e 1917

Na sua autobiografia, Leon Trotsky, que presidiu ao soviete de São Petersburgo (capital da Rússia até Março de 1918), explica que a prisão de todos os membros da direcção do soviete, a 3 de dezembro de 1905, foi provocada pela publicação de um manifesto onde os membros do conselho eleito apelavam ao repúdio das dívidas contraídas pelo regime do czar. Explica ainda que esse apelo de 1905 ao não pagamento da dívida acabou por ser concretizado no início de 1918, quando o governo dos sovietes aprovou o decreto de repúdio das dívidas czaristas:

  • Fomos detidos no dia seguinte ao da publicação do que passou a ser conhecido como o nosso «Manifesto Financeiro», no qual se prenunciava a inevitável falência do regime czarista: anunciava-se categoricamente que as dívidas dos Romanov não seriam reconhecidas pelo povo, no dia em que este alcançasse a vitória [1].
Trotsky (com a pasta do documento na mão) entre os membros do soviete de Petrogrado em 1905, durante o julgamento

O manifesto do conselho de deputados operários declarava com clareza o seguinte:

  • A autocracia nunca teve a confiança do povo e os seus poderes não foram por ele atribuídos. Por consequência, decidimos não admitir o pagamento das dívidas relativas a todos os empréstimos que o governo do czar contraiu quando estava em guerra aberta e declarada contra todo o povo.

Meses mais tarde, a Bolsa de Paris iria responder a este manifesto, concedendo ao czar mais um empréstimo de 750 milhões de francos. A imprensa da reacção e dos liberais zombou das impotentes ameaças do soviete contra as finanças do czar e os banqueiros europeus. Feito isto, trataram de esquecer o manifesto. Mas isto não o impediu de permanecer nas memórias. A bancarrota financeira do czarismo, na sequência de todos os acontecimentos passados, estalou ao mesmo tempo que a derrocada militar. E, depois da Revolução, um decreto do conselho de comissários do povo, com data de 10 de fevereiro de 1918, declarou pura e simplesmente nulas todas as dívidas do czar. Este decreto continua em vigor [2]. Não tem razão quem afirma que a Revolução de Outubro não reconhece qualquer obrigação. A Revolução reconhecia peremptoriamente as suas próprias obrigações. O compromisso que assumiu a 2 de dezembro de 1905 manteve-se em 10 de fevereiro de 1918. Tem todo o direito de dizer aos credores do czar: «meus senhores, foram avisados atempadamente!».

Neste aspecto como em todos os outros, 1905 preparou 1917.

No livro intitulado 1905, L. Trotsky descreve a sucessão de acontecimentos que levou à aprovação do Manifesto Financeiro com que o soviete, órgão democrático revolucionário, apelava à recusa de pagamento das dívidas contraídas pelo czar.

Abria-se assim um vasto campo de acção diante do soviete. À sua volta estendiam-se vastas áreas políticas que era preciso lavrar com a forte charrua revolucionária [3]. Mas o tempo escasseava. A reacção, afincadamente, forjava manobras e esperava-se a todo o instante um primeiro golpe. O comité executivo, apesar da carga de trabalhos que tinha de despachar todos os dias, apressou-se a executar a decisão tomada pela assembleia a 27 de novembro de 1905. Lançou um apelo aos soldados e, numa conferência com os representantes dos partidos revolucionários, aprovou o texto do Manifesto Financeiro (…).

A 2 de dezembro de 1905, o Manifesto foi publicado em oito jornais de São Petersburgo: quatro socialistas e quatro liberais.


Eis o texto histórico:

  • «O governo está à beira da falência. Transformou o país num monte de ruínas juncado de cadáveres. Esgotados, esfomeados, os camponeses já não conseguem pagar os impostos. O governo serviu-se do dinheiro do povo para dar crédito aos proprietários. Agora não sabe o que fazer dos proprietários que lhe servem de penhor. As fábricas e oficinas já não funcionam. Falta trabalho. Por toda a parte reina o marasmo.
  • O governo usou o capital dos empréstimos estrangeiros para construir caminhos-de-ferro, uma frota, fortalezas, e para adquirir um arsenal de reserva. Uma vez secas as fontes [de empréstimo] estrangeiras, as encomendas do Estado deixaram de chegar. Os comerciantes, os grossistas, os empresários, industriais, que ganharam o hábito de se enriquecerem à custa do Estado, vêem-se privados dos seus benefícios e fecham os balcões e as fábricas. As falências multiplicam-se. Os bancos desabam. Quase já não se realizam operações comerciais.
  • A luta do governo contra a revolução gera preocupações constantes. Ninguém está seguro do que sucederá amanhã.
  • O capital estrangeiro fugiu além-fronteiras. O capital «puramente russo» também correu a refugiar-se nos bancos estrangeiros. Os ricos vendem os seus bens e emigram. As aves de rapina fogem do país, levando consigo os bens do povo.
  • Há muito que o governo gasta todos os rendimentos do Estado para manter o exército e a marinha. Não há escolas. As estradas encontram-se num estado pavoroso. E no entanto falta-lhe dinheiro, ao ponto de já não poder alimentar os soldados. A guerra foi perdida, em parte, por falta de munições. Por todo o país, o exército, condenado à fome e à miséria, revolta-se.
  • A economia das vias férreas foi arruinada pelo desperdício, grande número de linhas foi devastado pelo governo. Para reorganizar as ferrovias de maneira rentável, serão necessárias centenas e centenas de milhões.
  • […]
  • O governo delapidou as caixas de poupança e serviu-se dos fundos depositados para encher os cofres dos bancos privados e das empresas industriais, muitas delas podres. Joga na Bolsa com o capital dos pequenos investidores, expondo os fundos a riscos quotidianos.
  • A reserva de ouro do Banco do Estado é insignificante, em relação às obrigações criadas pelos empréstimos assumidos pelo governo e às necessidades do movimento comercial. Essa reserva não tarda a esgotar-se, se em todas as operações for exigida a troca de papéis de crédito por moeda-ouro.
  • […]
  • Aproveitando-se da ausência de controlo sobre as finanças, o governo contraiu desde há muito tempo empréstimos que ultrapassam em muito a solvabilidade do país. E é graças a novos empréstimos que paga os juros precedentes.
  • Todos os anos o governo estabelece um orçamento fictício de receitas e despesas, declarando-as acima dos seus montantes reais, pilhando a eito, relatando mais-valias em vez do défice anual. E os funcionários, livres de controlo superior, esgotam o que resta do Tesouro.
  • Só a Assembleia Constituinte pode pôr cobro a esta pilhagem das finanças, depois de derrubar a autocracia. A Assembleia submeterá a um inquérito rigoroso as finanças do Estado e estabelecerá um orçamento pormenorizado, claro, exacto e verificado de receitas e despesas públicas.
  • O medo a um controlo popular que revele ao mundo a sua incapacidade financeira força o governo a adiar sempre a convocação dos representantes do povo.
  • A falência financeira do Estado provém da autocracia, tal como o falhanço militar. Os representantes do povo serão convocados e obrigados a pagar o mais cedo possível as dívidas.
  • O governo, procurando defender o seu regime de maus investimentos, força o povo a manter contra ele uma luta de morte. Nesta guerra centenas ou milhares de cidadãos perecem ou arruínam-se; a produção, o comércio e as vias de comunicação estão em ruínas.
  • Só há uma saída: é preciso derrubar o governo, abafar o fôlego que ainda lhe resta. É preciso secar-lhe a última fonte que alimenta a sua existência: as receitas financeiras. É necessário fazê-lo, não só pela emancipação económica e política do país, mas, em particular, para pôr ordem na economia financeira do Estado.
  • Por consequência, decidimos:
  • Recusar todos os pagamentos para recompra das terras e todos os pagamentos às caixas do Estado. Exigiremos que todas as operações de pagamento de salários e tratamentos sejam feitas em moeda-ouro; e quando se tratar de montantes inferiores a cinco rublos reclamaremos moeda viva.
  • Retiraremos todos os depósitos efectuados nas caixas de poupança e no Banco do Estado, exigindo o seu reembolso integral.
  • A autocracia nunca teve a confiança do povo nem se legitima nela.
  • Actualmente, o governo comporta-se dentro do seu próprio Estado como em terra conquistada.
  • Por isso decidimos não tolerar o pagamento das dívidas resultantes de todos os empréstimos que o governo do czar contraiu desde que está em guerra aberta contra o povo.»

(Fim do texto do manifesto)

22/janeiro/1905 : Domingo vermelho em São Petersburgo

Por baixo do Manifesto publicado na imprensa a 2/12/1905 aparecia a seguinte lista de organizações que apoiavam este apelo à recusa de pagamento da dívida czarista e à asfixia financeira da autocracia:

  • «O soviete dos deputados operários;
  • O comité principal da União Pan-Russa dos Camponeses;
  • O Comité Central e a comissão organizadora do partido operário social-democrata russo;
  • O Comité Central do Partido Socialista Revolucionário;
  • O Comité Central do Partido Socialista polaco.»

Trotsky acrescenta um comentário final:

  • «É claro que este manifesto não podia só por si derrubar o czarismo, nem as suas finanças.
  • (…) O manifesto Financeiro do soviete apenas podia servir de introdução aos levantamentos de dezembro. Apoiado pela greve e pelos combates levados a cabo nas barricadas, obteve forte eco em todo o país. Enquanto, nos três anos anteriores, os depósitos feitos nas caixas económicas ultrapassavam os saques em 4 milhões de rublos, em dezembro de 1905 os saques excederam os depósitos em 90 milhões! A insurreição teve de ser esmagada pelas hordas czaristas, para repor o equilíbrio nas caixas económicas…»

A denúncia do carácter ilegítimo e odioso das dívidas czaristas teve um papel fundamental nas revoluções de 1905 e de 1917. O apelo ao não pagamento da dívida acabou por ser concretizado no decreto de repúdio da dívida aprovado pelo governo soviético em fevereiro de 1918.

2. Da Rússia czarista à revolução de 1917 e ao repúdio das dívidas

A Rússia emergiu das guerras napoleónicas como uma grande potência europeia e participou na formação da Santa Aliança. A Santa Aliança, constituída a 26 de Setembro de 1815 em Paris, por iniciativa do czar Alexandre I, por três monarcas europeus vitoriosos sobre o império napoleónico, tinha objectivo assegurar as suas posições e precaver-se contra revoluções. Constituída inicialmente pelo Império russo, pelo Império austríaco e pelo Reino da Prússia, a ela se juntariam a França (onde a monarquia tinha sido restaurada) em 1818 e na prática foi apoiada por Londres.


A Rússia czarista: uma grande potência europeia

O Império russo fez parte da troika que colocou no trono grego um príncipe bávaro em 1830 e sujeitou o país a uma dívida simultaneamente odiosa e insustentável. Para Moscovo, o desmantelamento progressivo do Império Otomano era muito importante, pois estavam em jogo os interesses russos nos Balcãs, assim como o acesso ao mar Negro e ao Mediterrâneo.

A Europa em 1815, após o Congresso de Viena

Até à década de 1870, os banqueiros londrinos foram os principais financiadores do czar. Após a constituição do Império Alemão e da sua vitória sobre a França em 1871, os banqueiros alemães tomaram o lugar dos londrinos. A partir desse momento a Alemanha tornou-se o principal parceiro comercial da Rússia. Em vésperas da I Guerra Mundial, 53 % das importações russas provinham da Alemanha e 32 % das suas exportações destinavam a ela. Em finais do século XIX, os banqueiros franceses suplantaram os alemães. À boca da I Guerra Mundial, 80 % da dívida externa russa era detida por «investidores» franceses e a maioria dos empréstimos russos em curso foi emitida na bolsa de Paris.

Em suma, os capitalistas franceses emprestavam à Rússia e aí realizavam investimentos (os capitalistas belgas, em particular os «industriais», investiam igualmente somas consideráveis na Rússia  [4]), enquanto os capitalistas alemães escoavam na Rússia uma parte da sua produção e iam lá buscar matérias-primas.

Quando o soviete de Petrogrado aprovou o manifesto financeiro que apelava ao repúdio da dívida czarista, a Rússia preparava-se para emitir, com o auxílio dos banqueiros e do Governo franceses, um novo empréstimo vultoso. O aviso lançado pelo soviete não foi escutado pelos agentes financeiros de Paris e o empréstimo seguiu para a frente. Doze anos mais tarde seria repudiado.

Um título russo de 1906


Primeira Guerra Mundial

Na I Guerra Mundial opunham-se dois grupos de potências capitalistas: dum lado o Império Alemão e os seus aliados do Império Áustro-Húngaro, a Bulgária e o Império Otomano; do outro lado a Grã-Bretanha, a França, o Império Russo, a Bélgica, a Roménia, a Itália, o Japão e, a partir de Fevereiro de 1917, os Estados Unidos da América.

Havia anos que a Alemanha, a França, a Grã-Bretanha e a Rússia czarista se preparavam para a guerra. A Alemanha, em plena progressão económica, procurava alargar o seu território, tanto na Europa como nas regiões coloniais.
A França ansiava por se vingar da Alemanha e nomeadamente obter a Alsácia e a Lorena, anexadas pela Alemanha na sequência da derrota francesa de 1871. A Grã-Bretanha, a França e a Rússia pretendiam também alargar os seus domínios coloniais, nomeadamente sobre as ruínas do Império Otomano.
A esquerda, nos diversos países beligerantes, tinha denunciado alguns anos antes os preparativos desta guerra.

O Congresso de Estugarda (1907) da Internacional Socialista votou por unanimidade uma resolução que dizia: «Caso a guerra, apesar de tudo, venha a estalar, [os partidos socialistas] têm o dever de actuar para lhe pôr fim rapidamente e utilizar, com todas as suas forças, a crise económica e política criada pela guerra para agitarem as camadas populares mais profundas e precipitar a queda do domínio capitalista».

Em 1913, no Congresso extraordinário de Basileia, a Internacional enviou um aviso solene aos governantes: «Saibam os governantes que no estado actual da Europa e com o estado de espírito da classe operária, não podem, sem incorrer em risco, desencadear a guerra»  [5]

Jean Jaurés, grande figura do socialismo francês, resumiu esta mensagem, em termos sucintos, na frase final do seu discurso ao Congresso de Basileia: «Ao acentuar o perigo de guerra, os governantes deveriam ver que os povos poderão facilmente acertar contas: a sua própria revolução custar-lhes-ia menos mortos que a guerra dos outros».

No momento decisivo, em Agosto de 1914, vários grandes partidos socialistas (o partido social-democrata alemão, bem como os da Áustria, Bélgica, França e Grã-Bretanha) votaram com a burguesia os créditos para financiar a guerra. O custo em vidas humanas foi extremamente elevado. O total de mortos no conflito mundial elevou-se a 18,6 milhões – 9,7 milhões de militares e 8,9 milhões de civis. Entre 1914 e Fevereiro de 1917, o número de mortes russas provocadas pela participação do czar na I Guerra Mundial elevou-se a 3 300 000, das quais 1 800 000 militares e 1 500 000 civis  [6].


Da Revolução de Fevereiro de 1917 à de Outubro

Quando rebentou a revolução de Fevereiro 1917, com uma grande greve das mulheres (que teve início em 23-Fevereiro-1917 [7], dia internacional dos direitos das mulheres  [8]), a população russa queria ver-se livre do regime autocrático czarista; queria pão; queria o fim da guerra; queria o acesso à terra para dezenas de milhões de camponeses que dela estavam privados e que eram forçados a arriscar a vida numa guerra cujos objectivos lhe eram completamente alheios.

Alexandre Fedorovitch Kerensky (1881-1970)

O novo regime, dirigido pelo socialista moderado Kerensky  [9], que sucedeu ao czar, recusou-se a distribuir terras aos camponeses; prosseguiu a política de guerra e foi incapaz de alimentar a população. Empenhou-se também em reembolsar as dívidas contraídas pelo regime czarista junto de credores estrangeiros e contraiu novos empréstimos para prosseguir a guerra.

Dan, um dos principais dirigentes mencheviques oponentes do partido bolchevique, descreve a efervescência revolucionária nos meses que precederam o Outubro de 1917: as massas «começaram com frequência cada vez maior a exprimir o seu descontentamento e a sua impaciência com movimentos impetuosos, e acabaram […] por se virarem para o comunismo […]. As greves sucederam-se. Os operários procuravam responder à rápida subida do custo de vida com aumentos dos salários. Mas todos os seus esforços fracassaram perante a desvalorização contínua da moeda em papel. Os comunistas lançaram nas suas fileiras a palavra de ordem «controlo operário», e aconselharam-nos a tomar a direcção das empresas, a fim de impedir a “sabotagem” dos capitalistas. Por outro lado, os camponeses começaram a apoderar-se das terras, a correr com os latifundiários e a pegar-lhes fogo às mansões…»  [10].


A Revolução de Outubro de 1917

A insatisfação provocada pela política de Kerensky deu origem a uma segunda revolução em Outubro de 1917 (7-11-1917, segundo o novo calendário adoptado mais tarde). O novo governo [11], apoiado pelo congresso dos sovietes, comprometeu-se a estabelecer a paz, a distribuir as terras e, para arranjar meios para relançar a economia do país, a repudiar a dívida e nacionalizar o sector bancário  [12].


O repúdio das dívidas

No início de Janeiro de 1918 o governo soviético suspendeu o pagamento da dívida externa e no início de Fevereiro de 1918 decretou o repúdio de todas as dívidas czaristas, assim como das dívidas contraídas pelo governo provisório destinadas à continuação da guerra entre Fevereiro e Novembro de 1917. Ao mesmo tempo decidiu expropriar todos os haveres dos capitalistas estrangeiros na Rússia, para os restituir ao património nacional. A dívida pública russa em 1913 elevava-se a 930 milhões de £ (grosso modo 50 % do PIB). Entre o início da guerra e o momento em que os Bolcheviques chegaram ao poder com os seus aliados Socialistas Revolucionários de esquerda, a dívida multiplicou-se por 3,5, ascendendo a 3385 milhões de £.

Ao repudiar as dívidas, o governo soviético pôs em prática a decisão tomada em 1905 pelo soviete de Petrogrado e pelos partidos que o apoiavam. Este acto suscitou os protestos unânimes das grandes potências aliadas.


Decreto sobre a paz

O governo soviético propôs a paz sem anexações e sem indemnizações/reparações de guerra. A isto acrescentou a aplicação prática do direito à autodeterminação dos povos. Tratava-se de aplicar princípios totalmente inovadores ou revolucionários na relação entre Estados.

3. A revolução russa, o repúdio das dívidas, a guerra e a paz

No início de Janeiro de 1918, o governo soviético suspendeu o pagamento da dívida externa e em inícios de Fevereiro de 1918 decretou o repúdio de todas as dívidas czaristas, assim como das dívidas contraídas pelo governo provisório destinadas a financiar a guerra entre Fevereiro e Novembro de 1917. Ao mesmo tempo decidiu expropriar os haveres dos capitalistas estrangeiros na Rússia, a fim de os restituir ao património nacional. Ao repudiar as dívidas, o governo soviético punha em prática a decisão tomada em 1905 pelo soviete de Petrogrado e pelos partidos que o apoiavam. Este acto suscitou o protesto unânime das grandes potências aliadas.


Decreto sobre a paz

O governo soviético propunha uma paz sem anexação e sem indemnizações de guerra. Juntava a isso a aplicação prática do direito à autodeterminação dos povos. Tratava-se de aplicar princípios totalmente inovadores ou revolucionários nas relações entre Estados. Esta política do governo soviético contrariou e influenciou, ao mesmo tempo, a do presidente Woodrow Wilson [13], que tinha feito do direito à autodeterminação dos povos um elemento central da política externa dos EUA [14]. As motivações dos bolcheviques e as do governo dos EUA eram bastante diferentes. Os EUA, que não tinham domínios coloniais de monta, estavam interessados em enfraquecer os impérios britânico e alemão, as potências coloniais belga, francesa, holandesa e outras, a fim de ocupar o seu lugar por outros métodos. O melhor argumento diplomático e humanitário era o direito à autodeterminação dos povos africanos, caribenhos, asiáticos que ainda estavam sujeitos ao jugo colonial. Para os bolcheviques tratava-se de pôr fim ao império czarista, que eles denunciavam como uma prisão dos povos.

A vontade de fazer a paz constituía uma das causas fundamentais que provocaram o levantamento revolucionário de 1917. A esmagadora maioria dos soldados russos recusava prosseguir a guerra. Eram quase todos camponeses que desejavam regressar às suas famílias e trabalhar a terra. Além disso, durante muitos anos, muito antes do início efectivo da guerra, os bolcheviques, no quadro da Internacional Socialista, à qual pertenceram até à traição de Agosto de 1914, opuseram-se às políticas de preparação para a guerra, afirmando que era necessário travar um combate comum para pôr fim ao capitalismo e à sua fase imperialista, assim como ao domínio colonial.

Para pôr em prática esta orientação, o governo soviético foi forçado a encetar negociações separadas com Berlim e seus aliados, pois em 1917 Londres, Paris e Washington queriam ir para a frente com a guerra. O governo soviético bem se esforçou por levar essas capitais à mesa de negociações, mas em vão. Depois de assinado o armistício com o império alemão em meados de Dezembro de 1917, as negociações com Berlim arrastaram-se durante mais 5 meses. Os soviéticos tinham a esperança de que vários povos europeus, a começar pelo povo alemão, se sublevassem contra os respectivos governos para obterem a paz. Esperavam, igualmente em vão, que o presidente Wilson apoiasse a Rússia soviética contra a Alemanha. [15] Queriam também mostrar à opinião pública internacional que desejavam uma paz geral, tanto a oeste como a leste, e que só em último recurso assinariam um acordo de paz separado com Berlim.

A partir de Dezembro de 1917 o governo soviético começou a tornar públicos numerosos documentos secretos que mostravam que as grandes potências europeias se preparavam para repartir entre si os territórios e os povos, desprezando o direito à autodeterminação. Tratava-se nomeadamente de um acordo entre Paris, Londres e Moscovo, datado de 1915, que previa, após a vitória, que o império czarista tomaria posse de Constantinopla, a França recuperaria a Alsácia-Lorena e Londres apoderar-se-ia da Pérsia. [16] No início de Março de 1918 o governo soviético assinou o Tratado de Brest-Litovsk com Berlim. O preço foi elevado: o império alemão apoderou-se de uma grande parte do território ocidental do Império Russo: parte dos Países Bálticos, parte da Polónia e a Ucrânia. Em suma, este tratado amputava a Rússia de 26 % da sua população, de 27 % da superfície cultivada, de 75 % da produção de aço e ferro.


A intervenção das potências aliadas contra a Rússia soviética

O apelo do governo soviético à realização da revolução em todas as partes do mundo, combinado com a sua vontade de pôr fim à guerra, com o repúdio das dívidas reclamadas pelas potências aliadas e as medidas de nacionalização, levou os dirigentes ocidentais a lançarem-se numa acção massiva de agressão contra a Rússia soviética, a fim de derrubar o governo revolucionário e restaurar a ordem capitalista. A intervenção estrangeira começa no Verão de 1918 e termina em finais de 1920, quando as capitais ocidentais constatam o seu falhanço e reconhecem que o governo soviético e o exército vermelho tinham retomado o controlo do território. 14 países participaram nessa agressão. A França enviou 12 000 soldados (no mar Negro e no Norte), Londres enviou 40 000 (principalmente no Norte), o Japão 70 000 (na Sibéria), Washington 13 000 (no Norte, com britânicos e franceses), a Polónia 12 000 (na Sibéria e em Murmansk), a Grécia 23 000 (no mar Negro), o Canadá 5300. [17] Note-se que a intervenção japonesa prolongou-se até Outubro de 1922. Segundo Winston Churchill, ministro da Guerra no governo britânico, as tropas estrangeiras aliadas somavam 180 000 soldados.

Parada das tropas aliadas em Vladivostok em 1918

O governo francês foi o que mais violentamente se opôs ao governo soviético, desde o início. Várias razões explicam esta sanha: 1. o temor a que o movimento revolucionário iniciado pelo povo russo alastrasse a França, uma vez que entre a população francesa havia uma forte oposição à continuação da guerra; 2. a decisão soviética de repudiar a dívida afectava a França acima de todos os outros países, dado que os empréstimos à Rússia tinham sido emitidos em Paris e eram na sua maioria detidos pela França.

É certo que o Governo francês em 1917 tinha encetado negociações secretas com Berlim, a fim de chegar a um acordo de paz que permitiria ao império alemão estender-se para leste, em prejuízo da Rússia revolucionária, na condição de que lhe ser restituída a Alsácia e a Lorena. A recusa de Berlim pôs fim a estas negociações. [18]

O armistício de 11 de Novembro de 1918, assinado entre as capitais ocidentais e Berlim, previa que as tropas alemãs poderiam permanecer provisoriamente nos territórios «russos» que ocupavam. Em virtude do artigo 12º do armistício, a Alemanha teria de evacuar todos os antigos territórios russos «logo que os Aliados julgassem conveniente, tendo em conta a situação interna desses territórios». [19] Isto visava permitir ao exército imperial impedir que o governo soviético recuperasse rapidamente o controlo do território concedido à Alemanha pelo Tratado de Brest-Litovsk. A ideia dos Aliados era permitir às forças antibolcheviques o controlo desses territórios e estabelecer um ponto de apoio para derrubar o governo.

O historiador britânico E. H. Carr relata a que ponto a intervenção contra a Rússia soviética era impopular: «Quando os homens de Estado aliados se reuniram em Paris para a conferência de paz, em Janeiro de 1919, discutiram a ocupação da Rússia pelas tropas aliadas; o primeiro-ministro britânico, Lloyd George, declarou aos seus colegas que “se tentasse actualmente enviar um milhar de soldados britânicos para ocuparem a Rússia, as tropas revoltar-se-iam” e que “se se iniciasse uma operação militar contra os bolcheviques, a Inglaterra tornar-se-ia bolchevique”. A intuição de Lloyd George captava bem os sintomas. No início de 1919 houve graves motins na frota francesa e nas unidades militares francesas desembarcadas em Odessa, assim como noutros portos do mar Negro; no início de Abril foram precipitadamente retiradas. Quanto às tropas multinacionais sob comando inglês na frente de Arcangel, o director das operações militares no Ministério inglês da Guerra fez saber que o seu moral era “tão baixo que se encontravam à mercê da propaganda bolchevique, muito activa e insidiosa, que o inimigo insufla com uma energia e uma habilidade crescentes”. Muito mais tarde, os relatórios oficiais americanos revelaram a situação em detalhe. No 1º de Maio de 1919, as tropas francesas que tinham recebido ordem de avançar revoltaram-se. Alguns dias mais tarde, uma companhia de infantaria britânica “recusou marchar para a frente de batalha”. Pouco depois, uma companhia americana “recusou durante algum tempo regressar à frente”. Perante estes acontecimentos, o Governo britânico decidiu em Março de 1919 retirar do Norte da Rússia – retirada que apenas foi concluída seis meses mais tarde». [20]

Intervenções militares ocidentais no Oeste da Rússia em 1919 e 1920

Winston Churchill era um dos principais falcões no campo ocidental. Aproveitando a ausência de Lloyd George e do presidente dos EUA, aquando duma conferência de alto nível em Paris a 19 de Fevereiro de 1919, Churchill meteu-se em campo para convencer os outros governos a completarem a sua intervenção de apoio directo às forças dos generais russos brancos; propôs-lhes o envio «de voluntários, de técnicos de armamento, de munições, de tanques, de aviões, etc.» e «armar as forças antibolcheviques». [21]

Os Aliados tentaram convencer as novas autoridades alemãs (pró-ocidentais) a participarem nas acções contra a Rússia bolchevique. Apesar da forte pressão das capitais ocidentais, em Outubro de 1919, o Reichstag (parlamento alemão), no seio do qual os socialistas (SPD) e os liberais eram maioritários, votou por unanimidade contra a adesão da Alemanha ao bloqueio decretado pelos Aliados contra a Rússia soviética. É preciso acrescentar que ao mesmo tempo alguns generais alemães, como Ludendorff e, em especial, Von der Goltz, que dirigia os derradeiros restos organizados do antigo exército imperial, mantinham actividades militares a leste para auxiliarem os generais russos brancos antibolcheviques. Faziam-no com o apoio das capitais ocidentais. [22]

É evidente que tanto os governos ocidentais como as potências centrais que tinham sido vencidas (Império Alemão e Austro-húngaro) receavam que a revolução alastrasse aos respectivos países. Lloyd George escreveu num documento confidencial no início de 1919: «A Europa inteira foi conquistada pelo espírito revolucionário. Os operários têm um sentimento profundo não só de descontentamento, mas também de cólera e de revolta contra as condições de antes da guerra. A ordem estabelecida nos aspectos político, social, económico é posta em causa pelas massas duma ponta à outra da Europa». [23] Este medo da revolução não era imaginário e explica em grande medida a violência da agressão contra a Rússia bolchevique.

A intervenção estrangeira deu apoio aos ataques dos generais russos brancos e prolongou a guerra civil, que fez um grande morticínio (provocou mais mortos do que a Guerra Mundial na Rússia [24]). O custo da intervenção estrangeira em vidas humanas e em destruição material foi considerável e o governo soviético exigiu mais tarde que esta questão fosse tida em conta nas negociações internacionais, a propósito do repúdio da dívida (ver adiante).


O bloqueio económico e financeiro contra a Rússia soviética; o bloqueio do ouro russo

A partir de 1918, a Rússia soviética sofreu um bloqueio orquestrado pelas potências aliadas. O governo soviético estava disposto a pagar em ouro a importação de bens de que tinha necessidade absoluta. Mas nenhum dos grandes bancos e nenhum governo do mundo podia aceitar o ouro soviético sem entrar em conflito directo com os governos aliados. De facto, Paris, Londres, Washington, Bruxelas … entendiam que deviam receber o ouro russo para indemnizar os capitalistas que tinham sido expropriados na Rússia e para reembolsar as dívidas. O comércio russo teve muita dificuldade em ultrapassar este obstáculo. Nos EUA, qualquer pessoa ou empresa que quisesse realizar uma transacção em ouro ou entrar no país com ouro tinha de fazer a seguinte declaração: «Eu, abaixo assinado, proprietário de um lote de ouro … declaro solenemente, pela presente declaração, que este ouro não tem origem bolchevique e nunca esteve na posse do autoproclamado Governo bolchevique da Rússia. O abaixo assinado, por outro lado … reclama, doravante, nos Estados Unidos, sem restrição nem reservas, o seu direito sobre o dito ouro.» [25]

É preciso acrescentar que após a capitulação alemã, em Novembro de 1918, a França conseguiu recuperar o forte resgate em ouro que Berlim tinha obtido em resultado do Tratado de Brest-Litovsk, assinado em 1918. [26] A França recusou-se a devolver esse ouro à Rússia, justificando que se tratava duma parte das indemnizações que a Alemanha tinha de pagar a Paris. Note-se que o bloqueio do ouro russo continuou parcialmente durante anos. Foi assim que a França conseguiu em 1928 que as autoridades de Washington proibissem um pagamento em ouro russo, a propósito de um contrato entre a Rússia e uma sociedade privada norte-americana.

4. A Revolução russa, o direito dos povos à autodeterminação e o repúdio das dívidas

O Tratado de Versalhes foi finalmente assinado a 28 de Junho de 1919, sem a presença da Rússia soviética. No entanto, o Tratado de Versalhes anulava o Tratado de Brest-Litovsk. Em virtude do artigo 116º do Tratado de Versalhes, a Rússia podia exigir compensações de guerra à Alemanha. Coisa que não fez, porque queria manter-se coerente com a sua posição a favor da paz sem anexações e sem indemnizações. De certa maneira, o que lhe interessava era que o Tratado de Brest-Litovsk fosse abolido e que os territórios anexados pela Alemanha em Março de 1918 fossem devolvidos aos povos que tinham sido espoliados (povos bálticos, polacos, ucranianos, russos …), de acordo com o princípio do direito à autodeterminação defendido pelo novo governo soviético.


Os tratados com as répúblicas bálticas, a Polónia, a Pérsia, a Turquia …

Este direito é invocado nos primeiros artigos de cada um dos tratados de paz assinados entre a Rússia soviética e os novos Estados bálticos em 1920: a Estónia a 2 de Fevereiro, a Lituânia a 12 de Julho e a Letónia a 11 de Agosto. Estes tratados são semelhantes e a independência desses Estados – que tinham sido integrados à força no império czarista – é sistematicamente afirmada no primeiro ou no segundo artigo. Por meio destes tratados a Rússia reafirma a sua oposição à dominação do capital financeiro e a sua decisão de repudiar as dívidas czaristas. De facto, o tratado assinado a 2 de Fevereiro com a Estónia enuncia: «A Estónia não terá nenhuma responsabilidade resultante das dívidas e das demais obrigações da Rússia (…). Todas as reclamações dos credores da Rússia por conta de dívidas relativas à Estónia devem ser dirigidas unicamente contra a Rússia.» Nos tratados assinados com a Lituânia e com a Letónia encontramos disposições semelhantes. Além de reafirmar que os povos não deveriam pagar as dívidas ilegítimas contraídas em seu nome mas não no seu interesse, a Rússia soviética reconheceu assim o papel de opressor desempenhado pela Rússia czarista em relação às nações minoritárias que faziam parte do império.

Assinatura do Tratado entre a Estónia e a Rússia soviética, representada por Adolf Joffé, a 2 de Fevereiro de 1920

Coerente com os princípios que proclamava, a Rússia sociética foi ainda mais longe. Nos tratados de paz comprometeu-se a restituir às nações bálticas oprimidas os bens açambarcados pelo regime czarista (nomeadamente bens culturais e académicos, como as escolas, as bibliotecas, os arquivos, os museus), bem como os bens individuais que foram retirados dos territórios bálticos durante a Primeira Guerra Mundial. A título de indemnização pelos danos causados durante a I Guerra Mundial, na qual a Rússia czarista participou, a Rússia soviética anunciou nos tratados a sua vontade de conceder 15 milhões de rublos-ouro à Estónia, 3 milhões de rublos-ouro à Lituânia e 4 milhões de rublos-ouro à Letónio, bem como o direito desses Estados a explorarem as florestas russas nas cercanias das suas fronteiras. Enquanto os créditos do Estado russo sobre os Estados bálticos recém-criados são transferidos para as novas autoridades independentes, os tratados de paz assinados com a Lituânia e a Letónia especificam que as dívidas dos pequenos proprietários camponeses para com os antigos bancos fundiários russos (entretanto nacionalizados) não são transferidas para os novos governos, mas sim «pura e simplesmente anuladas». Estas normas abarcavam igualmente os pequenos proprietários estónios, em virtude do artigo 13º do tratado de paz assinado com a Estónia, que prevê que as «isenções, direitos ou privilégios particulares», concedidos a um novo Estado saído do império czarista ou aos seus cidadãos, são extensíveis de igual modo à Estónia e aos seus cidadãos.

Ao assinar estes tratados, a Rússia soviética, ao mesmo tempo que punha em prática os princípios que pretendia defender, procurava sair do isolamento a que a tinham votado as potências imperialistas desde a Revolução de Outubro. Os Estados bálticos são os primeiros a romper o bloqueio imposto à Rússia e os acordos de paz abrem a via a trocas comerciais entre as partes. Em Março de 1921 é assinado um tratado de paz semelhante entre a Rússia, a Ucrânia e a Bielorrússia por um lado, e a Polónia por outro. Este documento liberta a Polónia de todas as responsabilidades respeitantes às dívidas contraídas em seu nome pelo império czarista, prevê a restituição dos bens capturados pela Rússia czarista e o pagamento russo de indemnizações à Polónia e à Ucrânia, num total de 30 milhões de rublos-ouro. A assinatura deste tratado é ainda mais significativa do que a dos Estados bálticos: a Polínia é uma potência chave no isolamento da Rússia promovido pelas potências capitalistas aliadas.

O tratado de amizade assinado entre a Rússia soviética e a Pérsia, a 26 de Fevereiro de 1921, é mais um sinal da boa vontade da Rússia soviética para favorecer a emancipação dos oprimidos por via do direito à autodeterminação. Com este tratado, a Rússia declara romper com a «política tirânica dos governos colonizadores» da Rússia czarista e renuncia aos territórios e aos interesses económicos que possuía na Pérsia. Logo no primeiro artigo do documento declara-se: «O conjunto dos tratados e convénios celebrados entre a Pérsia e a Rússia czarista, que esmagou os direitos do povo persa, são nulos e sem efeito». Adiante o artigo 8º denuncia claramente as dívidas reclamadas à Pérsia pelo regime czarista: o novo governo russo renuncia à política czarista no Oriente, «que consistia em emprestar dinheiro ao governo persa, não com o objectivo de participar no desenvolvimento económico do país, mas com objectivos de submissão política», e daí a anulação dos créditos russos sobre a Pérsia.

Algumas semanas mais tarde, o governo soviético renuncia a todas as obrigações, incluindo as monetárias, da Turquia em relação à Rússia, resultantes dos acordos assinados pelo governo czarista. [27]

5. A imprensa francesa a soldo do czar

Com o derrube do czarismo em Fevereiro de 1917 e a chegada ao poder dos bolcheviques, aliados aos socialistas-revolucionários de esquerda, em Outubro, numerosos documentos até aí confidenciais foram divulgados ao público (ver mais adiante). Isto permitiu a Boris Souvarine, militante comunista franco-russo, consultar os arquivos imperiais da Rússia. Souvarine descobriu uma vasta operação de corrupção da imprensa francesa iniciada antes da Primeira Guerra Mundial, visando promover junto dos cidadãos franceses o investimento nos títulos da dívida czarista. Várias personagens influentes foram corrompidas (e actuaram como chantagistas) e tudo isto foi denunciado pelo jornal L’Humanité durante vários meses, entre 1923 e 1924, numa série de artigos intitulada «A abominável venalidade da imprensa francesa».


Como o regime do czar comprou a imprensa francesa para continuar a emitir títulos de dívida

A partir de finais do século XIX, a praça financeira de Paris foi o lugar privilegiado pelo Império czarista para emissão de títulos de dívida. Os títulos foram comprados por numerosos pequenos investidores franceses. No início do século XX, estes empréstimos foram muito importantes para salvar o regime czarista – uma grande potência pouco desenvolvida economicamente –, tanto mais que o regime entrou em guerra contra o Japão, de 1904 a 1905, ao mesmo tempo que procurava conter o descontentamento da população russa; para isso necessitou de reprimir o movimento revolucionário de 1905. Em 1905 o regime russo foi derrotado na guerra contra o Japão e fez uma grande emissão de dívida em Paris. Arthur Raffalovitch, diplomata e conselheiro secreto do Ministério das Finanças russo, fica encarregado, até à Primeira Guerra Mundial, de promover em Paris os empréstimos à Rússia. A sua correspondência com a hierarquia do governo do czar, que Boris Souvarine consultou, permitiu revelar o nível de corrupção e de chantagem, nos quais estiveram envolvidos vários grandes periódicos, nomeadamente jornais parisienses (como Le Figaro, Le Petit Journal, Le Temps e Le Matin), grandes bancos franceses (nomeadamente o Crédit Lyonnais e o Banque de Paris et des Pays-Bas, futuro BNP Paribas), senadores e ministros franceses. Entre estes conta-se Raymond Poincaré, posto em causa pelo papel que desempenhou enquanto chefe do governo e ministro dos Negócios Estrangeiros em 1912 (o seu ministro das Finanças, Louis-Lucien Klotz, também esteve envolvido). Poincaré ocupou a seguir o cargo de presidente da República, de 1913 a 1920, e voltou a ser chefe do Governo e ministro dos Negócios Estrangeiros quando o escândalo estalou. Note-se que o assunto não o incomodou: continuou a chefiar o Governo até Junho de 1924 e em 1926 voltou a ocupar o cargo de ministro das Finanças! Segundo Souvarine, o papel deste síndico dos corretores de Paris – que vendiam títulos de dívida aos investidores – foi central na chantagem a que o governo do czar foi submetido. Entre 1900 e 1914, foram pagos à imprensa francesa, pelo governo russo, 6,5 milhões de francos.

Boris Souvarine

Quando este caso se deu, a corrupção da imprensa não era assunto virgem no que diz respeito ao mundo da finança, pois um escândalo datado do século XIX já tinha revelado que o empréstimo para financiamento da construção do Canal do Panamá, emitido em França, foi promovido pelos mesmos métodos. No caso dos empréstimos à Rússia, o governo czarista e os bancos franceses que emitiram os títulos compraram «publicidade» aos grandes jornais, que elogiaram a situação financeira russa e a sustentabilidade da dívida do czar. Segundo a correspondência do agente czarista Raffalovitch, esta publicidade incluía também actos de censura – acontecimentos como a má postura da Rússia na guerra contra o Japão ou o movimento revolucionário de 1905, se fossem divulgados, não teriam causado boa impressão aos potenciais investidores. Esta correspondência sugere mesmo subscrições falsas em certos jornais! O síndico dos corretores, os directores dos jornais e os responsáveis políticos corrompidos tiraram partido da situação para pressionar o governo russo, exigir pagamentos mais elevados e maximizar os lucros.

As revelações contra o L’Humanité baseiam-se em documentos autênticos. Dos jornais incriminados, apenas Le Matin apresentou queixa contra o jornal comunista. Logo no primeiro dia do processo, Vladimir Kokovtsov, ministro das Finanças do czar quase sem interrupção de 1904 a 1914 e chefe do governo czarista de 1911 a 1914, foi chamado à barra. Reaccionário e exilado em França, não lhe interessava acusar directamente a imprensa, mas atestou a honestidade do seu antigo colaborador Raffalovitch. Recorde-se que L’Humanité acabou por ser condenado por razões puramente formais, uma vez que o tribunal reconheceu a autenticidade da correspondência revelada e concedeu ao Matin apenas 10.000 francos dos 1.500.000 que o jornal reclamava a título de indemnização. Note-se ainda que em 1924 Maurice Bunau-Varilla, dono do Matin e directamente indiciado no caso, não fazia segredo das suas simpatias pelos nacionalismos autoritários instalados na Europa a fim de lutarem contra o comunismo. Apoiou a Itália fascista e, anos mais tarde, a Alemanha nazi. Durante a ocupação [da França] e o regime de Vichy, o jornal Le Matin tornou-se colaboracionista e foi proibido após a Libertação.

L’Humanité de 5 de Dezembro de 1923

6. Os títulos da dívida russa após o repúdio

Embora em Fevereiro de 1918 os títulos russos tenham sido repudiados pelo governo soviético, continuaram a ser transaccionados até à década de 1990.

A política do governo francês e doutros governos teve interferiu directamente nesta vida após a morte.


Os empréstimos nunca morrem

Em 1919 o Governo francês elaborou uma lista dos detentores de títulos russos em França: 1.600.000 pessoas declararam possuí-los. Tudo leva a crer que os títulos russos representavam 33 % das obrigações estrangeiras detidas por residentes em França. Isto equivalia a 4,5 % do património dos Franceses. 40 a 45 % da dívida russa estava nas mãos de franceses. Um dos principais títulos russos transaccionados na Bolsa de Paris era o famoso empréstimo de 1906, que tinha sido previamente denunciado pelo Soviete de Petrogrado em Dezembro de 1905. Este empréstimo massivo foi emitido em Paris em Junho de 1906, no montante de 2,25 mil milhões de francos. Destinava-se a permitir ao governo czarista a continuação do pagamento das dívidas antigas e a restabelecer as finanças após o descalabro da guerra russo-japonesa. O Crédit Lyonnais [28], banco francês especializado na emissão da dívida russa, obtinha desses empréstimos 30 % dos seus lucros totais, antes de 1914.

Durante o período precedente e posterior ao repúdio das dívidas pelo governo soviético, 72 % dos títulos de empréstimo de 1906 encontravam-se em França e eram transaccionados na Bolsa de Paris.

Havia um elevado nível de cumplicidade entre o regime czarista, o Governo francês, os banqueiros franceses que emitiam os títulos russos (com o Crédit Lyonnais à cabeça, mas também a Société Générale e o Banque de l’Union Parisienne [29]), os grandes corretores e a imprensa francesa, que foi comprada pelo emissário do czar.

Os banqueiros recebiam gordos lucros graças às comissões recebidas no momento da emissão e às operações especulativas de compra e venda dos títulos russos. Isto acontecia sem perigo de riscos graves, pois quem ficava com os títulos eram os pequenos investidores. Os proprietários dos jornais embolsavam as luvas pagas pelo emissário do czar. Também havia membros do Governo com as mãos untadas. No plano político e diplomático, o czar era um aliado de primeira água com o Governo francês e com os grandes capitalistas franceses que investiam na Rússia (tal como os capitalistas belgas).

Durante a guerra, o governo francês pagou os juros a que cada portador dos títulos tinha direito. Os juros eram de 5 %. O montante pago pelo Governo francês em substituição do império russo foi acrescentado à dívida da Rússia à França. O derrube do czar pelo povo russo em 1917 resultou num mau negócio para o Governo francês, que mantinha as esperanças no governo provisório, uma vez que este afirmara que honraria as dívidas contraídas pelo czar. As coisas azedaram a sério quando os bolcheviques e seus aliados socialistas de esquerda foram postos no governo pelos sovietes, em Novembro de 1917. Quando o governo soviético suspendeu o pagamento da dívida, em Janeiro de 1918, o Governo francês voltou a pagar aos detentores dos títulos russos os respectivos juros. Quando o governo soviético repudiou todas as dívidas do czar e as do governo provisório, a França decidiu recorrer a meios de força e preparou-se para enviar tropas contra a Rússia. A partir de Julho de 1918, quatro meses antes do armistício assinado com o império alemão, o governo francês enviou tropas para se juntarem às britânicas que tinham tomado Murmansk, no Norte da Rússia. A seguir, outros militares foram enviados para ocuparem Arcangel. Após a assinatura do armistício com Berlim, a França enviou tropas para o mar Negro, para bombardear com navios de guerra as posições do exército vermelho. Isto provocou um motim entre os marinheiros franceses. É claro que a agressão contra a Rússia soviética não foi motivada apenas pelo repúdio da dívida: as potências que nela participaram pretendiam pôr fim a um foco de contágio revolucionário. Mas os interesses financeiros da França e dos seus capitalistas constituíram um poderoso motivo. As autoridades francesas apoiavam financeiramente os generais brancos na sua luta para derrubarem os bolcheviques, que tinham proclamado o reconhecimento das dívidas do czar. Paris apoiava igualmente os políticos e os militares polacos, os ucranianos e os das repúblicas bálticas, que obtiveram a independência ou lutavam por ela, na esperança de que as autoridades dos novos Estados independentes tomassem a seu cargo uma parte das dívidas czaristas. Quando os soviéticos assinaram a partir de 1920 tratados com as repúblicas bálticas e com a Polónia, nos termos dos quais esses países não deveriam tomar a seu cargo nenhuma das dívidas czaristas, Paris não levou a coisa a bem.


Que aconteceu aos detentores de títulos russos após o repúdio das dívidas, tornado público em Fevereiro de 1918 ?

Em França, em Setembro de 1918, o Governo propôs uma troca dos títulos russos por títulos da dívida francesa. Os detentores de títulos russos podiam adquirir os títulos do novo empréstimo contraído pelo Governo francês, em troca dos títulos russos. Em Julho de 1919, o Governo francês renovou a operação. As autoridades de Roma, de Londres e de Washington fizeram o mesmo: trocaram títulos russos respectivamente por títulos de dívida italiana ou britânica ou norte-americana. Quanto ao Governo japonês, indemnizou a 100 % os portadores de títulos russos. [30]

É claro que ao procederem assim, os governos desses países corriam em auxílio dos banqueiros, que eram responsáveis pelo financiamento do regime czarista, pagando as consequências do repúdio das dívidas odiosas. No caso francês, o Governo tinha sido activamente co-responsável com os banqueiros pelo apoio ao regime do czar. O Governo francês tinha sistematicamente incentivado uma parte da sua base social – os investidores da classe média – a adquirir títulos russos.

Uma nota importante: em França, uma grande parte dos títulos russos não foi trocada por títulos franceses. Os títulos russos tinham juros superiores aos títulos franceses. A taxa de juro dos títulos russos em 1906 chegou aos 5 %, enquanto a taxa média dos títulos do Estado francês era de 3 %.

Entre 1918 e 1922, correram rumores, lançados pela imprensa financeira e pelo Governo, de que o governo soviético iria cair e o seu sucessor assumiria a dívida czarista. Ainda por cima, aquando da conferência de Génova e noutros momentos, a mesma imprensa dava a entender que Moscovo ia finalmente aceitar reconhecer a dívida. Assistiu-se então a uma situação surrealista: os títulos repudiados, emitidos por um governo que já não existia, continuavam a ser comprados e vendidos na Bolsa de Paris. É um exemplo perfeito de capital fictício.

Entre 1918 e 1919, o preço de revenda dos títulos russos oscilou entre 56,5 % e 66,25 % do seu valor facial (à partida tinham sido vendidos por 88 % do seu valor facial). O preço dos títulos soberanos franceses oscilava nessa época entre 61 % e 65 %. A diferença entre o preço dos títulos repudiados e os títulos franceses era portanto ligeira. É certo que o especulador (com os banqueiros à cabeça) faziam bom negócio ao comprarem a 56 quando os pequenos detentores da dívida, com medo deste ou daquele rumor lançado pela imprensa (a mando dos banqueiros), se desembaraçavam dela e revendiam a 66.

7. O jogo diplomático à volta do repúdio das dívidas russas

Em Abril-Maio de 1922, durante cinco semanas, teve lugar uma importante conferência de alto nível. O primeiro-ministro britânico, Lloyd George, desempenhou aí um papel central; o mesmo se pode dizer de Louis Barthou, ministro do presidente francês, Raymond Poincaré.

O objectivo central era convencer a Rússia soviética [31] a reconhecer as dívidas que tinha repudiado em 1918 e a abandonar os seus apelos à revolução mundial.


A negociação de Génova (1922)

Outros pontos constavam da agenda de trabalhos dessa conferência que reuniu delegados de 34 países (com os EUA ausentes), mas não foram objecto de grandes debates. Entre esses pontos: adopção de regras em matéria monetária, nomeadamente a propósito do sistema gold exchange standard, que foi adoptado nesse ano. Dada a ausência dos EUA, as decisões a esse respeito foram tomadas noutro lugar.

Foram 5 as potências que convocaram: a Grã-Bretanha (ex-principal potência mundial, que tinha acabado de ser ultrapassada pelos EUA), a França (terceira potência mundial após a derrota da Alemanha), a Bélgica (que antes da guerra era a quinta potência mundial em termos de exportações), o Japão (cujo império estava em plena expansão na Ásia Oriental) e a Itália.

Das 5 potências anfitriãs, uma, o Japão, mantinha tropas de ocupação na Sibéria soviética. Só as retirou definitivamente seis meses após o fim da Conferência, em Outubro de 1922. Os outros 12 países que tinham, em 1918, enviado tropas a fim de derrubar o governo soviético e acabar com a experiência revolucionária, tinham posto termo à ocupação em finais de 1920. As tropas estrangeiras, cujo moral bélico era muito baixo, tinham de facto sido retiradas depois de os respectivos governos terem reconhecido, a contragosto, que os generais brancos russos tinham sido definitivamente derrotados pelo exército vermelho e que a intervenção estrangeira não conseguiria remediar o problema. Tratava-se portanto de obter, por via diplomática e por chantagem, o que as tropas não tinham conseguido realizar.

As grandes potências pensavam que na Conferência o governo soviético acabaria por reconhecer as dívidas que tinham sido repudiadas, pois a situação económica e humanitária russa era dramática. A guerra civil tinha deixado o país exangue e a partir do Verão de 1921 as colheitas catastróficas tinham causado uma carestia terrível. As capitais ocidentais pensavam que o governo soviético estava de joelhos e que conseguiriam alcançar os seus propósitos concedendo os empréstimos e investimentos de que a Rússia necessitava como condição prévia para reconhecer as dívidas e indemnizar as empresas ocidentais que tinham sido expropriadas.

A França, que permanecia a grande potência mais agressiva em relação à Rússia soviética (tal como em relação à Alemanha [32]), era apoiada pelas autoridades belgas. Por seu lado, a Grã-Bretanha, que tinha sido menos afectada pelo repúdio das dívidas, mostrava-se mais aberta ao diálogo com Moscovo e tinha assinado em Março de 1921 um acordo comercial anglo-russo que punha fim ao bloqueio e significava na prática o reconhecimento de facto [33] da Rússia soviética.

Por seu lado, o governo soviético estava eventualmente disposto a aceitar o reembolso duma parte das dívidas contraídas pelo czar se, em troca, as outras potências reconhecessem oficialmente (= reconhecimento de jure) a Rússia soviética, concedendo-lhe empréstimos de Estado para Estado e encorajando as empresas privadas que tinham sido afectadas pela expropriação das suas filiais e bens na Rússia a aceitar como indemnização concessões de exploração dos recursos minerais, em particular nas zonas desérticas da Sibéria. O governo soviético pretendia desta forma que as empresas capitalistas estrangeiras investissem capitais, do seu próprio bolso, em actividades que permitissem à economia soviética consolidar-se. Em contrapartida o governo recusava a constituição de organismos multilaterais para gerirem os empréstimos, os investimentos e os litígios que pudessem ocorrer. Pretendia conservar a autonomia plena do poder soviético face às potências estrangeiras. A renúncia ao exercício da soberania estava fora de causa.

Se as condições estivessem reunidas, Moscovo estava disposto a prometer a retoma do reembolso duma parte da dívida czarista no prazo de 30 anos. A delegação soviética afirmou claramente, por diversas vezes ao longo da Conferência, que se tratava duma concessão que estava disposta a fazer, a fim de chegar a um acordo, mas que, no fundo, considerava que a Rússia soviética estava perfeitamente no direito de repudiar toda a dívida czarista (assim como a contraída pelo governo provisório entre Fevereiro e Outubro de 1917). A conferência terminou em desacordo e a delegação russa manteve o repúdio.

Para compreender o desenrolar da conferência, convém ter igualmente em conta a relação particular que se estabeleceu entre Berlim e Moscovo após o Tratado de Versalhes, em Junho de 1919.

Assinatura do Tratado de Rapallo: o chanceler Joseph Wirth com os representantes da delegação soviética Leonid Krassin, Grigorij Tchitchérine e Adolf Joffe

O governo de Berlim era composto por uma coligação de socialistas (SPD), centristas (antecedente da CDU de Angela Merkel) e liberais (antecedente da actual FDP), e era fundamentalmente pró-ocidental e anti-soviética. Mas como se via afectado pelo pagamento de enormes indemnizações impostas pelo Tratado de Versalhes e esmagado pelo peso da dívida daí resultante, sentia-se inclinado ao diálogo e a fazer acordos com Moscovo. Esta tendência era reforçada pela vontade das grandes empresas industriais alemãs (entre as quais a AEG e a Krupp) de escoar uma parte da sua produção para o mercado russo, que tinha sido o seu principal parceiro comercial a partir da década de 1870, como vimos. Ao deslocar-se de Moscovo a Génova, a delegação soviética fez uma estada prolongada em Berlim, para negociar e estabelecer acordos com as autoridades alemãs, antes de se encontrar com as potências anfitriãs na cidade italiana. Em plena Conferência de Génova, enquanto as potências anfitriãs adoptavam uma atitude intransigente em relação a Moscovo, estalou um golpe de teatro: as delegações alemã e soviética, que se tinham reunido na cidade vizinha de Rapallo, assinaram um importante acordo bilateral que ficou para a história como Tratado de Rapallo.

É muito interessante recordar o desenrolar da Conferência de Génova, as negociações que aí tiveram lugar e os argumentos apresentados de parte a parte.

As grandes potências anfitriãs pretendiam exercer o máximo de pressão sobre a Rússia soviética, indicando que um dos objectivos fundamentais da conferência consistia no «reconhecimento por todos os países das suas dívidas públicas e na concessão de indemnizações» [34].

As grandes potências afirmavam na sua convocatória que o «sentimento de segurança não pode ser restabelecido a não ser que as nações (ou os Governos das Nações) que pretendem obter créditos estrangeiros se comprometam livremente a reconhecer todas as dívidas e obrigações públicas que foram ou venham a ser contraídas ou garantidas pelo Estado, pelos municípios e por outros organismos públicos, e a reconhecerem igualmente a obrigação de restituir, restaurar ou pelo menos indemnizar todos os interesses estrangeiros pelas perdas ou danos que lhes foram causados aquando do confisco ou do sequestro da propriedade» [35].

Ao que Georges Tchitcherine, chefe da delegação soviética, retorquiu: «a tarefa de reconstrução económica da Rússia, e com ela o trabalho tendente a pôr fim ao caos económico europeu, tomarão um rumo falso e fatal, se as nações economicamente mais poderosas, em lugar de criarem as condições necessárias ao reconhecimento da economia russa e de lhe facilitarem a sua marcha em direcção ao futuro, a esmagarem sob o peso de exigências superiores às suas forças, sobreviventes de um passado que lhe é odioso» [36].

Durante a discussão, face aos soviéticos que afirmavam que o povo e o seu novo governo não tinham de assumir as dívidas contraídas pelo regime tirânico anterior, Lloyd George respondeu: «quando um país assume obrigações contratuais em relação a outro país ou aos cidadãos desse país por valores recebidos, esse contrato não pode ser denunciado cada vez que um país muda de Governo, ou pelo menos é preciso que esse país restitua os valores recebidos» [37].

8. Em 1922, nova tentativa de submissão dos sovietes às potências credoras

Os governos ocidentais apresentaram um extenso programa de exigências visando resolver a seu contento o contencioso à volta do repúdio das dívidas e das expropriações decretadas pelo governo soviético. Estas exigências foram apresentadas em Génova a 15 de Abril de 1922, 5 dias após o início da conferência, num documento intitulado «Relatório da Comissão de Peritos de Londres sobre a Questão Russa».


As exigências ocidentais feitas a Moscovo

O artigo 1º rezava assim:

  • «Artigo 1.
  • O Governo soviético russo deverá aceitar as obrigações financeiras dos seus predecessores, ou seja do Governo imperial russo e do Governo provisório russo, em relação às potências estrangeiras e respectivos cidadãos.»

A forma e o conteúdo de todo o documento indicam claramente que se tratava duma série de imposições que as potências ocidentais pretendiam ditar ao poder soviético.

No primeiro artigo constava também uma disposição que ia directamente contra os tratados que a Rússia soviética tinha assinado em 1920-1921 com as repúblicas bálticas e a Polónia (que tinha obtido a independência após a queda do governo czarista), que previam, como já vimos, que os Estados não deviam assumir as dívidas czaristas.

  • «Trata-se igualmente de saber se e em que medida os novos Estados saídos da Rússia e actualmente reconhecidos, assim como os Estados que adquiriram uma parte do território russo, deverão suportar uma parte das obrigações visadas nas presentes disposições.»

O artigo 3º impunha ao Governo soviético a responsabilidade dos actos praticados pelo regime czarista:

  • «Artigo 3.
  • O Governo soviético russo deverá comprometer-se a assumir a responsabilidade por todos os prejuízos materiais e directos, ocasionados ou não por contrato e sofridos pelos cidadãos das outras Potências, se tiverem resultado de actos ou negligência do Governo soviético ou dos seus predecessores (…)»

Isto entrava em contradição evidente e total com a posição de Moscovo.

O artigo 4º dava quase todos os poderes a organismos estrangeiros:

  • «As responsabilidades previstas nos artigos precedentes serão fixadas por uma Comissão da Dívida Russa e por Tribunais Arbitrais Mistos a criar.»

O Anexo 1 explicitava a composição da Comissão da Dívida Russa e respectivas competências. O Governo soviético ver-se-ia claramente em minoria na Comissão:

  • «Anexo 1.
  • Comissão da Dívida Russa.
  • 1. Será constituída uma Comissão da Dívida Russa, composta por membros nomeados pelo Governo russo, membros nomeados pelas outras Potências, e um presidente independente, que será escolhido por comum acordo entre os outros membros e exterior a eles, ou que, na falta de acordo, será designado pela Sociedade das Nações, que deverá pronunciar-se, por exemplo, através do seu Conselho ou do Tribunal de Justiça Internacional.»

A Comissão teria o poder de emitir nova dívida russa, para pagar as antigas dívidas do czar e indemnizar os capitalistas estrangeiros das empresas que tinham sido nacionalizadas:

  • «A Comissão terá as seguintes atribuições: a) prover a constituição e regulamento dos Tribunais Arbitrais Mistos, que deverão ser instituídos conforme as disposições do Anexo II, e dar todas as instruções necessárias com vista a assegurar a unidade da sua jurisprudência; (…)
  • entregar novas obrigações russas, em conformidade com as disposições previstas no Anexo II, às pessoas que a elas tiverem direito em resultado das decisões dos Tribunais Arbitrais Mistos; aos portadores de títulos de Estado antigos ou outros títulos e valores, em troca dos quais as novas obrigações russas devem ser repostas; às pessoas que a elas tenham direito a título de consolidação de interesses e reembolso de capital.»

A comissão dominada pelos credores teria poderes exorbitantes, ao ponto de poder determinar que recursos da Rússia deveriam ser utilizados para reembolsar a dívida:

  • «Determinar, se for caso disso, no conjunto dos recursos da Rússia, os que deverão ser especialmente afectos ao serviço da dívida; por exemplo, uma parcela de certos impostos ou dos direitos ou taxas incidentes sobre as empresas na Rússia. Controlar, se for esse o caso e se a Comissão achar necessário, a colecta total ou parcial desses recursos afectos e gerir o seu produto.»

Para as potências convidadas, tratava-se de obrigar a Rússia soviética a aceitar a instituição de uma tutela construída a partir do modelo que tinha sido imposto na Tunísia, no Egipto, no Império Otomano e na Grécia no decurso da segunda metade do século XIX.1

O Anexo III conferia plenos poderes, no tocante à emissão de dívida russa, à Comissão da Dívida, na qual as autoridades soviéticas eram marginalizadas:

  • «1. Todas as indemnizações pecuniárias acordadas no seguimento das reclamações formuladas contra o Governo soviético serão resolvidas pelo estabelecimento de novas obrigações russas no montante fixado pelos Tribunais Arbitrais Mistos. As condições nas quais essas obrigações serão resolvidas, assim como todas as questões resultantes da conversão de antigos títulos, e das operações respeitantes às novas emissões, serão determinadas pela Comissão da Dívida Russa.
  • 2. As obrigações darão lugar a juros, cuja taxa será fixada pela Comissão da Dívida Russa.»

Embora o governo soviético tivesse dito muito claramente que recusava pagar as dívidas contraídas após 1 de Agosto de 1914 para financiar a guerra, o texto do Anexo III afirmava que «em consequência da situação económica muito grave na qual se encontra a Rússia, os mencionados Governos credores estão dispostos a reduzir o montante das dívidas de guerra que a Rússia contraiu junto deles».

9. O contra-ataque soviético: o Tratado de Rapallo de 1922

Este texto, que era uma verdadeira provocação da parte das potências ocidentais, levou a delegação soviética a contactar poucas horas depois a delegação alemã, que era mantida um pouco à margem da conferência pelas autoridades de Paris e Londres. Estas capitais pretendiam convencer os russos soviéticos a aceitar as condições mencionadas anteriormente ou, no mínimo, uma parte delas, para de seguida negociar com os alemães uma situação favorável. A questão russa era claramente prioritária.

Joffé, um dos responsáveis da delegação soviética, telefonou aos alemães à uma da manhã do domingo de Páscoa, 16 de Abril de 1922, para lhes propor um encontro imediato, a fim de tentar alcançar um acordo bilateral. O biógrafo de Walther Rathenau, ministro alemão da Economia, conta que os membros da delegação alemã se reuniram em pijama no salão do hotel de Rathenau, para decidirem se aceitavam o convite soviético. Aceitaram-no e catorze horas mais tarde, no domingo de 16 de Abril de 1922, às 17 horas, o Tratado de Rapallo foi assinado entre a Alemanha e a Rússia soviética. Este tratado incluía a renúncia mútua a toda e qualquer exigência de ordem financeira, incluindo as reclamações alemãs relativas aos decretos soviéticos de nacionalização, «na condição de o Governo da RSFSR não satisfazer reclamações semelhantes introduzidas por outros Estados» . Sublinhemos que a Rússia soviética se manteve coerente com a posição que o Governo soviético tinha adoptado nas suas propostas de paz desde o primeiro dia da revolução: uma paz sem anexações nem indemnizações. Recordemos que o Império Alemão tinha imposto à Rússia em Março de 1918 condições draconianas, no Tratado de Brest-Litovsk, anexando territórios russos e exigindo um resgate de guerra muito pesado. Este tratado viria a ser anulado em Junho/1919 pelo Tratado de Versalhes, no qual as potências ocidentais impuseram à República da Alemanha uma amputação do seu território e indemnizações avultadas. Por seu lado, no Tratado de Rapallo, a Rússia soviética assinou um acordo de paz que incluía a renúncia mútua às indemnizações, apesar de o artigo 116 do Tratado de Versalhes atribuir à Rússia o direito de obter compensações financeiras por parte da Alemanha. Esta iniciativa da Rússia soviética também era coerente com os tratados assinados em 1920-1921 com as repúblicas báltica e polaca.

Outra cláusula do Tratado de Rapallo previa que a Alemanha financiasse a criação de empresas mistas destinadas a reforçar o comércio entre os dois países.

Em resumo, o Tratado de Rapallo, assinado por iniciativa da delegação soviética, deu uma resposta firme à atitude muito agressiva e dominadora das potências ocidentais.

Só depois disso a delegação soviética comunicou a sua resposta oficial às potências ocidentais, reagindo às exigências formuladas por estas a 15/Abril.

O Petit Journal de 20/Abril/1922

10. Em Génova (1922), as contra-propostas soviéticas face às imposições das potências credoras

A 20 de Abril de 1922, Tchitcherine comunica a resposta soviética às propostas ocidentais apresentadas a 15 de Abril.
A resposta afirmava que: «A Delegação russa continua a considerar que a situação económica actual da Rússia e as circunstâncias que lhe deram origem justificam plenamente, para a Rússia, a sua libertação total de todas as suas obrigações citadas nas propostas acima mencionadas, pelas razões expostas nas suas contra-reclamações.» [38]

Apesar do seu desacordo com as exigências exorbitantes das potências ocidentais, a delegação russa afirmou-se disposta a fazer concessões respeitantes à dívida contraída pelo czar antes da entrada em guerra em 1/Agosto/1914 e avançou uma série de propostas.

Comprometia-se, em caso de acordo, a começar o pagamento da dívida 30 anos mais tarde: «A retoma dos reembolsos relativos aos compromissos financeiros aceites pelo Governo da Rússia (…), incluindo o pagamento de juros, começará após um período de 30 anos contados a partir da data da assinatura do presente acordo.» [39]

A delegação russa afirmou que apenas assinaria um acordo com os outros governos se estes reconhecessem plenamente o Governo soviético e se fossem concedidos créditos de Estado a Estado, não para ajudar o Governo soviético a reembolsar a dívida, mas sim para reconstruir a economia do país. Concretamente, isto significava que o Governo soviético exigia antes do mais receber dinheiro fresco para relançar a economia do país, o que permitiria, após um prazo de 30 anos, começar a reembolsar uma parte da dívida contraída pelo regime czarista antes de Agosto de 1914.


As contrapropostas ocidentais sobre a dívida russa

A 2 de Maio de 1922, as potências anfitriãs fizeram novas propostas à delegação russa; mas, ainda que nalguns pontos fizessem ligeiras concessões (nomeadamente ao proporem um prazo de 5 anos antes do recomeço do pagamento da dívida), introduziram novas condições inaceitáveis, designadamente no plano político. A cláusula 1 estipulava que «todas as Nações deveriam comprometer-se a abster-se de toda a propaganda subversiva da ordem e do sistema político estabelecido nos outros países; o Governo Soviético russo não intervirá de forma alguma nos assuntos internos e abster-se-á de todo e qualquer acto susceptível de abalar o statu quo territorial e político nos outros Estados».

Isto significava nomeadamente que o Governo soviético deveria renunciar a apelar aos povos colonizados para que fizessem respeitar o seu direito à autodeterminação. Concretamente, teria de se abster de apoiar a independência de colónias como a Índia, as colónias africanas dos vários impérios, em particular o britânico e o francês. Implicava também que o Governo soviético deixasse de dar o seu apoio a greves e outras formas de luta noutros países.

A cláusula 1 acrescentava: «Suprimirá igualmente no seu território todas as tentativas de ajuda aos movimentos revolucionários noutros Estados.» [40] Na prática isto implicava retirar o apoio à Internacional Comunista (também conhecida como Terceira Internacional), que tinha sido criada em 1919 e estava sediada em Moscovo.

Em matéria de dívida, a cláusula 2 reafirmava a posição das potências ocidentais: «o Governo Soviético russo reconhece todas as dívidas e obrigações públicas que foram contraídas ou garantidas pelo Governo Imperial russo ou pelo Governo provisório russo ou por ele próprio perante as Potências estrangeiras.»

O segundo ponto da cláusula 2 recusava a exigência soviética de fazer valer o seu direito a indemnizações pelas perdas materiais e humanas causadas à Rússia pela agressão perpetrada pelas potências estrangeiras durante e após a revolução. O texto afirmava: «Os Aliados não podem reconhecer a responsabilidade invocada contra eles pelo Governo Soviético russo, pelas perdas e danos sofridos durante a revolução na Rússia após a guerra.»

A cláusula 6 exigia a constituição de uma comissão arbitral internacional, na qual a Rússia seria minoritária: «Essa Comissão será composta por um membro nomeado pelo Governo Soviético russo, um membro nomeado pelos credores estrangeiros, além de dois membros e um presidente, os quais serão nomeados pelo Presidente do Supremo Tribunal dos Estados Unidos ou, na sua ausência, pelo Conselho da Sociedade das Nações ou pelo Presidente do Tribunal Internacional Permanente de Justiça de Haia. Esta Comissão decidirá sobre todas as questões respeitantes à reposição de juros, assim como as modalidades de pagamento do capital e dos juros, tendo em conta a situação económica e financeira da Rússia.»

Em resumo, as potências anfitriãs pretendiam substituir a comissão da dívida russa proposta por elas a 15 de Abril, por uma comissão arbitral com poderes amplos e na qual a Rússia seria minoritária.

Gueorgui Vassilievitch Tchitcherine en 1925


A resposta soviética reafirmou o direito ao repúdio das dívidas.

A 11 de Maio de 1922, a delegação soviética comunicou a sua resposta, donde iria resultar o malogro das negociações de Génova e que reafirmava peremptoriamente o direito de repudiar as dívidas.

Tchitcherine afirmou que «vários Estados presentes na Conferência de Génova repudiaram no passado dívidas e obrigações que tinham contraído, vários Estados confiscaram e sequestraram bens de cidadãos estrangeiros ou dos seus próprios cidadãos, sem por isso terem sido sujeitos ao ostracismo infligido à Rússia soviética».

Tchitcherine sublinhou que uma mudança de regime pela via revolucionária acarreta uma ruptura das obrigações assumidas pelo regime anterior: «Não cabe à Delegação Russa legitimar essa grande acção do povo russo diante duma assembleia de potências cuja história, em muitas delas, conta com mais do que uma revolução; mas a Delegação Russa sente-se obrigada a relembrar o princípio de direito, segundo o qual as revoluções, que são uma ruptura violenta com o passado, trazem consigo novas relações jurídicas dentro e fora dos Estados. Os governos e os regimes saídos da revolução não são obrigados a respeitar as obrigações dos governos depostos.»


A soberania dos povos não pode ser tolhida pelos tratados dos tiranos

Tchitcherine prossegue nestes termos: «A Convenção Francesa [=contrato social do regime saído da Revolução Francesa], da qual a França se reivindica herdeira legítima, proclamou a 22 de Setembro de 1792 que “a soberania dos povos não é tolhida pelos tratados dos tiranos”. Em conformidade com esta declaração, a França revolucionária não só rasgou os tratados políticos do Antigo Regime com o estrangeiro, mas também repudiou a sua dívida de Estado. Concordou em pagar um terço da dívida, mas apenas por motivos de oportunidade política. É o “terço consolidado”, cujos juros só começaram a ser regularmente pagos no início do século XIX. Esta prática, tornada doutrina por homens de leis eminentes, foi seguida quase sem excepção pelos governos saídos duma revolução ou duma guerra de libertação. Os Estados Unidos repudiaram os tratados dos seus predecessores, a Inglaterra e a Espanha.» [41]

Tchitcherine, com base em precedentes históricos, defendeu que a Rússia soviética tinha o direito de proceder à nacionalização de bens estrangeiros no seu território: «Por outro lado, os governos dos Estados vencedores, durante a guerra e sobretudo aquando da conclusão dos tratados de paz, não hesitaram em apoderar-se de bens dos cidadãos dos Estados vencidos situados nos seus territórios e até em territórios estrangeiros. Em conformidade com estes precedentes, a Rússia não pode ser obrigada a assumir qualquer responsabilidade face às potências estrangeiras e respectivos cidadãos no que diz respeito à anulação das dívidas públicas e à nacionalização de bens privados.»

Face à exigência de indemnizações avançada pelas potências ocidentais, Tchitcherine responde: «Outra questão de direito: o Governo russo será responsável pelos estragos causados aos bens, direitos e interesses dos cidadãos estrangeiros causados pela guerra civil, além daqueles que lhes foram causados pelos actos do próprio Governo, ou seja, pela anulação das dívidas e pela nacionalização dos bens? Mais uma vez, neste caso, a doutrina jurídica é favorável ao Governo russo. A revolução, à semelhança de todos os grandes movimentos populares, estando associada à figura da força maior, não confere a quem a sofreu nenhum direito de indemnização. Quando os cidadãos estrangeiros, apoiados pelos seus governos, pediram ao governo do czar o reembolso das perdas que lhes tinham sido causadas pelos acontecimentos revolucionários de 1905-1906, este indeferiu o pedido, alegando que, não tendo concedido compensações aos seus próprios súbditos por ocorrências análogas, não podia colocar os estrangeiros numa posição privilegiada.»

Tchitcherine concluiu assim esta parte da sua argumentação: «Por conseguinte, do ponto de vista do direito, a Rússia não tem obrigação de pagar as dívidas do passado, de restituir os bens ou indemnizar os seus antigos proprietários, e tão-pouco pagar indemnizações por outros danos sofridos pelos cidadãos estrangeiros, quer eles resultem da legislação emanada pela Rússia no exercício da sua soberania, quer resultem dos acontecimentos revolucionários.»
A seguir o responsável da delegação soviética reafirmou a disposição da Rússia soviética para fazer concessões de forma voluntária, a fim de tentar chegar a um acordo.

«No entanto, dentro de um espírito de conciliação e para alcançar um bom entendimento com todas as potências, a Rússia aceitou» reconhecer uma parte da dívida.

Tchitcherine deu mostras do seu domínio da jurisprudência ao afirmar: «A prática e a doutrina não estão em conformidade quando se trata de impor a responsabilidade dos danos causados pela intervenção e pelo bloqueio aos governos que provocaram esses danos. Para não citar mais casos, contentamo-nos em recordar a decisão do Tribunal Arbitral de Genebra, de 14 de Setembro de 1872, que condenou a Grã-Bretanha a pagar aos Estados Unidos 15 milhões de dólares pelos danos causados a estes pelo corsário Alabama City que, na guerra civil entre os Estados do Norte e os Estados do Sul, tinha ajudado os últimos. A intervenção e o bloqueio dos aliados e dos neutros contra a Rússia constituiu, por parte destes, actos de guerra oficiais. Os documentos publicados no anexo II do primeiro Memorando russo provam à evidência que os chefes dos exércitos contra-revolucionários apenas o eram na aparência e que os verdadeiros comandantes eram os generais estrangeiros enviados especialmente para esse efeito por certas potências. Essas potências não só participaram directamente na guerra civil, como até são seus autores.»

Em documento anexo fornecido pela delegação soviética, é desenvolvida a seguinte argumentação: «As dívidas de antes da guerra contraídas pela Rússia perante o estrangeiro estão mais que compensadas pelos enormes danos e perdas permanentes causados à nossa riqueza nacional pela intervenção, bloqueio e guerra civil, organizados pelos Aliados. (…) Mas o que foi feito com uma mão (empréstimos antes da guerra) foi destruído com a outra (intervenções, bloqueio, guerra civil). Por isso a única medida equitativa seria considerar as dívidas de antes da guerra amortizadas pelos danos causados e abrir uma nova era de relações financeiras.» [42]

Tchitcherine reafirma que a Rússia está disposta a fazer concessões se lhe forem concedidos créditos reais: «no seu desejo de alcançar um acordo prático, a Delegação russa, (…), seguiu a via das mais amplas concessões e declarou-se disposta a renunciar condicionalmente às suas contra-pretensões e a aceitar os compromissos dos governos depostos, em troca duma série de concessões por parte das potências, das quais a mais importante consiste em pôr à disposição do Governo russo créditos reais num montante previamente calculado. Infelizmente este compromisso das potências não foi obtido.»

A resposta da delegação soviética rejeitava as pretensões das potências anfitriãs que reclamavam da Rússia o reembolso dos créditos concedidos ao czar e ao governo provisório para prosseguirem uma guerra que o povo rejeitava: «Da mesma forma, o Memorando volta a colocar integralmente a questão das dívidas de guerra, cuja anulação era uma das condições da renúncia da Rússia às suas contra-pretensões.»

Quanto à vontade das potências anfitriãs de impor à Rússia uma comissão internacional de arbitragem, Tchitcherine responde que se essa comissão for constituída, «A soberania do Estado russo ficará entregue ao acaso. Pode ser posta em causa pelas decisões de um tribunal arbitral misto, composto por quatro estrangeiros e um russo que podem decidir em última instância se os interesses estrangeiros devem ser restaurados, restituídos ou indemnizados».

Por fim Tchitcherine denuncia o facto de potências como a França exigirem com unhas e dentes que a Rússia soviética indemnize uns quantos capitalistas, sem levar em consideração a massa de pequenos portadores de títulos russos que a Rússia estava disposta a indemnizar: «a Delegação russa constata que os Estados interessados, dedicando toda a sua solicitude a um grupo restrito de capitalistas estrangeiros e dando provas de uma intransigência doutrinária inexplicável, sacrificaram os interesses (…) da multidão de pequenos portadores de títulos da dívida russa e dos pequenos proprietários estrangeiros cujos bens foram nacionalizados ou sequestrados, e que o Governo russo tinha a intenção de incluir na lista de reclamantes aos quais reconhecia o bom fundamento da demanda de justiça. A Delegação russa não pode deixar de exprimir a sua surpresa pelo facto de potências como a França, donde provém a maioria dos pequenos portadores de títulos da dívida russa, tenham manifestado a maior insistência na restituição dos bens, subordinando os interesses dos pequenos portadores de títulos da dívida russa aos de alguns grupos que exigem a restituição de bens.»

Tchitcherine conclui pela responsabilidade das potências anfitriãs no malogro das negociações: afirmou que para atingir um acordo, seria necessário que «as potências estrangeiras que organizaram a intervenção armada na Rússia renunciassem a falar com a Rússia na linguagem usada pelo vencedor quando se dirige ao vencido, tanto mais que a Rússia não foi vencida. A única linguagem que permitiria um acordo seria a que usam dois Estados que dialogam em pé de igualdade. (…) As massas populares da Rússia não poderiam aceitar um acordo no qual as suas concessões não teriam como contrapartida vantagens reais.»

11. Dívida: Lloyd George versus soviéticos

Numa sessão plenária, Lloyd George deu uma resposta que fala por si:

«A Rússia pode obter ajuda abundante, mas se quiser obtê-la, não pode comportar-se desta maneira, como se propositadamente quisesse provocar e ultrajar os sentimentos, os preconceitos, os sentimentos da vasta maioria das pessoas (…)

Disse preconceitos. Vou citar-vos dois ou três que foram espezinhados no vosso memorando de 11 de Maio. Na Europa Ocidental, quando um homem vende mercadorias a outro, existe um preconceito curioso: gosta de ser pago. Mais um preconceito: se um vizinho vem procurá-lo e lhe pede mais uma vez ajuda, é natural que ele responda: “É sua intenção reembolsar-me? Reembolse-me primeiro o que lhe emprestei”. Se a isto o devedor responde: “Os meus princípios não me permitem pagar”, por muito estranho que isto pareça à Delegação russa, este ocidental está de tal forma repleto de preconceitos que, muito provavelmente, não quererá emprestar novas somas de dinheiro. Não é uma questão de princípio – eu sei o que são os princípios revolucionários – mas fora da Rússia, tenham lá paciência, há estranhas pessoas, com estranhas ideias! E se quiserem fazer negócio connosco, têm de aceitar-nos tal como somos. São ideias que, por assim dizer, se entranharam em nós com o leite materno, que herdámos de sucessivas gerações de gente honesta e trabalhadora, e chegados a este ponto gostaria de advertir a delegação russa que escusa de esperar, nesta rota que vamos encetar em direcção à paz final, que abandonemos friamente à beira do caminho os nossos preconceitos. Esses preconceitos, essas ideias, mergulham as suas raízes profundamente no solo da Europa Ocidental. Há milhares de anos que elas estão aí enraizadas. (…) Quando escrevem a alguém a pedir novos montantes de dinheiro, a melhor forma de o obter não consiste certamente em dedicar uma grande parte da vossa missiva a uma dissertação sábia para justificar a doutrina do repúdio das dívidas. Não é essa a via indicada para obter crédito. Talvez seja uma bela doutrina, mas não é diplomática. (…) Para terminar, gostaria de vos implorar, como homem desde sempre favorável à ideia de socorrer essa nobre nação, de lhe pedir, quando vier a Haia, que nunca mais tente espezinhar as nossas ideias ocidentais.» [43]

A resposta de Tchitcherine:
Depois de deplorar «termos sido impedidos de colocar à Conferência a questão do desarmamento», respondeu assim a Lloyd George: «O Sr. Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha diz-me que se o meu vizinho me emprestou dinheiro, eu tenho de pagar-lhe, pois bem, a bem da conciliação, estou disposto a aceitar esse ponto, mas acrescento que se esse vizinho irrompeu na minha casa e, depois de matar os meus filhos, quebrou a minha mobília, queimou a minha casa, deve pelo menos começar por restituir o que destruiu.» [44]

Convém recordar que no decurso da negociação sobre a ordem de trabalhos da conferência de Génova a delegação soviética interveio por diversas vezes para que fossem tomadas decisões a fim de organizar o desarmamento geral. A França reagiu de forma violenta, recusando pura e simplesmente agendar esse ponto. Para o Governo francês estava fora de questão a redução das despesas de armamento. É claro que esta orientação estava a mil léguas de distância do povo francês, mas quem estava ali presente era um governo de direita belicista que dirigia a sua agressividade contra a Alemanha e contra a Rússia (já para não falar dos povos colonizados). Em 1921 a França tinha mais uma vez tentado pôr de pé uma aliança com a Roménia (que tinha anexado a Bessarábia, que fazia parte do antigo Império Russo) e a Polónia, contra a Rússia soviética. A França visava declarar, em conjunto com esses países, a guerra à Rússia soviética. [45]

Por outro lado, a delegação soviética propunha que todas as nações fossem convidadas para a Conferência de Génova, nomeadamente os povos colonizados representados directamente. As organizações operárias também deviam ser convidadas. A delegação soviética criticou as propostas gerais em matéria de economia.

Tchitcherine declarou que «O capítulo VI do Relatório da Comissão Económica, que diz respeito ao trabalho, devia abrir-se à importância da participação dos trabalhadores na restauração económica da Europa. No entanto, não encontramos uma linha sobre o que seria mais necessário aos trabalhadores, não encontramos qualquer menção a leis protectoras dos operários, além da questão do desemprego; não encontramos qualquer proposta sobre cooperativas, apesar de estas serem um instrumento de primeira ordem para a melhoria das condições dos trabalhadores. É sumamente lamentável que no decurso dos trabalhos da Primeira Subcomissão as propostas relativas às cooperativas tenham sido arredadas.

Mas há mais: o artigo 21, que menciona as convenções da Conferência do Trabalho de Washington, privam essas convenções duma grande parte da sua importância prática, ao consagrarem o direito dos participantes a não as ratificar. Este facto, que a Delegação russa se esforçou por evitar, explica-se pelo desejo de certos Governos, como o suíço, de não adoptarem a jornada de trabalho de oito horas. A Delegação russa considera a jornada de oito horas um princípio fundamental para o bem-estar do trabalhador e levanta uma objecção formal contra a possibilidade explicitamente formulada de os Governos não a aplicarem.» [46]

Face ao malogro das negociações de Génova, as potências anfitriãs e a Rússia acordaram em reunir-se daí a um mês, em Haia, para tentarem chegar a um acordo de última instância. O encontro realizou-se de facto, a 20 de Julho de 1922, mas voltou a ser inconclusivo. A França e a Bélgica, desta vez com Washington ausente mas dando-lhes apoio de bastidores, tinham endurecido ainda mais as suas posições. [47]

12. A reafirmação do repúdio das dívidas é bem sucedida

Antes do início da Conferência de Génova, a Rússia soviética conseguiu assinar tratados bilaterais com a Polónia, as repúblicas bálticas, a Turquia, a Pérsia … Além disso conseguiu estabelecer um acordo comercial com a Grã-Bretanha. Esse acordo, assinado em 1922, validava as leis soviéticas de nacionalização aos olhos dos tribunais britânicos, impedindo que as empresas que transaccionavam com a Rússia fossem molestadas. [48]

Durante a Conferência de Génova, a Rússia também foi bem sucedida na assinatura de um tratado com a Alemanha, graças ao qual ambas as partes renunciaram a ser ressarcidas.

Seria de esperar que o malogro da Conferência de Génova e da de Haia levassem a um endurecimento da posição das potências capitalistas em relação a Moscovo. Na realidade sucedeu o contrário. Não restam dúvidas de que o Governo soviético calculou bem. Os vários países capitalistas, cada qual por si, estimou que mais valia estabelecer acordos com Moscovo, já que o mercado russo oferecia um grande potencial, assim como os recursos naturais do país. Cada capital, sob pressão das empresas privadas locais, quis assinar acordos com Moscovo, a fim de impedir que as outras potências tirassem partido do mercado russo.

Em 1923-1924, apesar do malogro da Conferência de Génova, o Governo dos Sovietes foi reconhecido de jure pela Inglaterra, Itália, países escandinavos, França, Grécia, China e mais uns quantos países. Em 1925 juntou-se-lhes o Japão.

Paris reduziu fortemente as suas exigências. Em França, um decreto datado de 29/Julho/1920 já tinha criado uma comissão especial para liquidar os negócios russos, tendo por missão «liquidar e recuperar todos os fundos do antigo Estado russo, qualquer que seja a sua origem». Seis dias antes do reconhecimento do Governo dos Sovietes, a 24/Outubro/1924, o Governo francês dissolveu essa comissão. Uma verdadeira vitória para Moscovo.

Alguns meses antes, o Governo trabalhista britânico tinha assinado um acordo com a URSS, segundo o qual os Britânicos aceitavam as reclamações soviéticas relativas aos danos causados pela intervenção britânica na guerra civil entre 1918 e 1920. [49] No entanto Lloyd George tinha declarado em Génova que isso era impensável. O Governo britânico prometia ainda conceder, sob determinadas condições, garantias para a emissão de um empréstimo aos soviéticos no mercado financeiro de Londres.

Dois anos passados sobre o falhanço da Conferência de Génova, e ao mesmo tempo que a URSS mantinha o repúdio das dívidas, o Governo britânico prestava-se a dar a sua garantia para um empréstimo aos soviéticos! Daí que o dirigente soviético Kamenev tenha escrito no Pravda de 24/09/1924: «O tratado com a Inglaterra constitui uma base efectiva para o reconhecimento expresso da nossa nacionalização da terra e das empresas, para o repúdio das dívidas e todas as outras consequências da nossa revolução.» [50]

Por fim, quando os conservadores britânicos regressaram ao poder, daí a uns meses, recusaram ratificar esse tratado, mas apesar disso uma empresa britânica importante empenhou-se em investir nas minas de ouro, renunciando oficialmente a qualquer pedido de indemnização pela nacionalização que tinha sofrido em 1918.

A partir de 1926, apesar do repúdio das dívidas, os bancos privados europeus e os governos começaram a conceder empréstimos à URSS

A 26/06/1926 a URSS assinou um acordo de crédito com os bancos alemães. Em Março de 1927 foi a vez do banco Midland de Londres conceder um crédito de 10 milhões de libras.

Em Outubro de 1927 o município de Viena concedeu um crédito de 100 milhões de xelins. Em 1929 a Noruega cedeu um crédito de 20 milhões de coroas.

Os dirigentes republicanos dos EUA espumavam. O secretário de Estado Kellogg denunciou a atitude conciliadora dos Europeus, no seu discurso de 14/Abril/1928, perante a Comissão Nacional Republicana: «Nenhum Estado foi capaz de obter o pagamento das dívidas contraídas pela Rússia sob os governos precedentes, ou de ressarcir os seus cidadãos pelas propriedades confiscadas. Tudo leva a crer que o reconhecimento dos Sovietes e a abertura de negociações irão encorajar os actuais senhores da Rússia a prosseguir a política de repúdio e confisco …» [51]

Por fim, os EUA, em Novembro de 1933, sob a presidência de F. Roosevelt, reconheceram de jure a URSS. A 13/Fevereiro/1934, o Governo dos EUA criou o Export and Import Bank, a fim de financiar o comércio com a União Soviética. Alguns meses mais tarde, a França, para não se ver excluída do mercado soviético, propôs por sua própria iniciativa a concessão de crédito à URSS, para que esta pudesse comprar produtos franceses.

Alexander Sack, opositor ao repúdio das dívidas e ferozmente anti-soviético, fecha o seu estudo sobre as reclamações diplomáticas contra os soviéticos com frases que indicam claramente que é possível repudiar dívidas sem ser votado ao isolamento e ao fracasso, antes pelo contrário:

«Por ocasião do vigésimo aniversário do regime soviético, as reclamações estrangeiras que lhe eram dirigidas mostram-se tristemente petrificadas, senão abandonadas. A União Soviética gaba-se de ser actualmente um dos países mais industrializados; apresenta uma balança comercial positiva; ocupa o segundo lugar na lista mundial de produtores de ouro. O seu Governo é hoje em dia universalmente reconhecido e são-lhe concedidos créditos comerciais, se assim o desejar. Apesar disso, a União não reconheceu nem pagou nenhuma das dívidas resultantes dos seus decretos de repúdio, de confisco e de nacionalização.» [52]


Conclusão

Este estudo centrou-se no repúdio das dívidas pelo Governo soviético. Nele se mostra que essa decisão remonta a um compromisso assumido aquando da revolução de 1905. Foi analisado o contexto internacional: os tratados de paz, a guerra civil, o bloqueio, a Conferência de Génova e os numerosos acordos de empréstimo que se seguiram, apesar de ser mantido o repúdio das dívidas passadas.

Por falta de espaço, não abordei a evolução do regime soviético: o estrangulamento progressivo da crítica, a degeneração burocrática e autoritária do regime, [53]
as políticas catastróficas no âmbito agrícola (nomeadamente a colectivização à força feita por Estaline) e no âmbito industrial, a imposição por Estaline, nos anos 1930, de um regime de terror. [54]

Esta evolução trágica mostra mais uma vez que não basta repudiar as dívidas odiosas para alcançar a solução dos múltiplos problemas sociais. Quanto a isso não restam dúvidas. Para que o repúdio das dívidas seja realmente útil, é necessário que faça parte de um conjunto coerente de medidas políticas, económicas, culturais e sociais que permitam fazer a transição para uma sociedade livre das diversas formas de opressão que sofre há milénios.

Reciprocamente, é muito difícil tentar começar tal transição e ao mesmo tempo querer pagar as dívidas odiosas herdadas do passado. Exemplos históricos não faltam. Veja-se o caso da Grécia: a submissão aos ditames dos credores desde 2010 e os efeitos terríveis da capitulação em Julho de 2015, consumada por um governo que pretendia prosseguir o reembolso da dívida a fim de obter a sua redução.


Epílogo

Em 1997, seis anos após a dissolução da URSS, Boris Yeltsin assinou um acordo com Paris para pôr termo ao contencioso sobre os títulos russos. Os 400 milhões de dólares pagos pela Federação da Rússia à França em 1997-2000 representam apenas cerca de 1 % dos montantes exigidos à Rússia Soviética pelos porta-vozes dos credores franceses representados pelo Estado. [55] Há ainda a sublinhar que o acordo entre a Rússia e o Reino Unido, de 15/Julho/1986, permitiu a indemnização dos portadores britânicos à razão de 1,6 % do valor actualizado dos títulos.

Estas taxas de indemnização são ridículas e mostram mais uma vez que um país pode repudiar a sua dívida.

Em Agosto de 1998, por causa da crise asiática e dos efeitos da restauração capitalista, a Rússia suspendeu unilateralmente o pagamento da dívida durante seis semanas. A dívida pública externa elevava-se a 95 mil milhões de dólares, devidos a bancos privados estrangeiros (30 mil milhões devidos aos bancos alemães e 7 mil milhões aos bancos franceses, entre os quais o Crédit Lyonnais) e o resto era devido sobretudo ao Clube de Paris e ao FMI. A suspensão total do pagamento, seguida duma suspensão parcial nos anos seguintes, levou os vários credores a aceitarem uma redução que oscilou entre os 30 e os 70 %, consoante os casos. A Rússia, que estava em recessão antes de decretar a suspensão do pagamento, teve a seguir uma taxa de crescimento anual na ordem dos 6 % (período de 1999-2005). Joseph Stiglitz, que entre 1997 e 2000 foi economista chefe do Banco Mundial, sublinha: «Empiricamente existem muito poucas provas a favor da ideia de que uma suspensão de pagamento implique um longo período de exclusão no acesso aos mercados financeiros. A Rússia conseguiu voltar a obter crédito nos mercados financeiros dois anos após a suspensão de pagamento (de 1998), que foi decretada unilateralmente, sem consulta prévia aos credores. […] Por isso, logo aí, a ameaça de ver fechar-se a torneira do crédito não é realista.» [56]

Resumindo em duas frases: é possível repudiar ou suspender unilateralmente o pagamento da dívida e relançar a economia. Não sendo uma condição suficiente para resolver todos os problemas, revela-se ao mesmo tempo indispensável e útil em certas circunstâncias.

Tradução Rui Viana Pereira

Agradecimentos : O autor agradece a ajuda, a revisão e as sugestões de: Pierre Gottiniaux, Nathan Legrand, Brigitte Ponet e Claude Quémar. O autor é inteiramente responsável pelos eventuais erros contidos neste trabalho.
Notas :

[1] Este extracto do livro Ma vie está disponível on-line, em francês: https://www.marxists.org/francais/trotsky/livres/mavie/mv16.htm

[2] Trotski redigiu este texto em 1930.

[3] Este extracto do livro A Revolução de 1905 está disponível on-line, em francês: https://www.marxists.org/francais/trotsky/livres/1905/1905.pdf

[4] Em 1914, os carros eléctricos eram explorados por empresas belgas em 26 cidades russas. Segundo o ministro belga, Henri Jaspar, que recordou ao parlamento belga os interesses da Bélgica na Rússia antes da guerra: «o ferro fundido que fabricámos na Rússia representam 1/3 da produção total de ferro fundido da Rússia; vigas, laminados, barras, foram 42 % da produção total russa; produtos químicos fabricados pelos belgas na Rússia representam 75 % dos produtos químicos produzidos em toda a Rússia; as lentes representaram 50 % da produção russa, os copos de vidro 30 %». Segundo este ministro, 161 empresas belgas estavam presentes na Rússia antes da guerra. Fontes: Anais parlamentares, Câmara, 1921-1922, p. 883-884; sessão de 23 de Maio de 1922. Ver também Documentos parlamentares, Senado, 1928-1929, n° 88, «Rapport de la Commission des Affaires étrangères», p. 37-38. Estes documentos são citados por Jean Stengers, «Belgique et Russie, 1917-1924: gouvernement et opinion publique», Revue belge de philologie et d’histoire, Année 1988, Volume 66, Numéro 2, pp. 296-328, http://www.persee.fr/doc/rbph_0035-0818_1988_num_66_2_3628

[5] J. Longuet, Le mouvement socialiste international, Paris, 1931, p. 58.

[6] Os países mais afectados, além da Rússia, foram o Império Alemão (com 2 milhões de mortos entre os militares e 420 000 civis), a França (incluindo as colónias, 1,4 milhões de militares e 300 000 civis), a Áustria-Hungria (com 1,1 milhões de militares e 470 000 civis), o Reino Unido (incluindo as colónias, 885 000 militares e 110 000 civis), o Império Otomano (800 000 militares e 4,2 milhões de civis) e o Reino da Sérvia (1 250 000 vítimes, das quais 800 000 civis, ou seja, um terço da população). Fonte: https://fr.wikipedia.org/wiki/Pertes_humaines_de_la_Première_Guerre_mondiale

[7] Em 1917, a Rússia ainda utilizava o calendário juliano, que «atrasa» cerca de 13 dias em relação ao calendário gregoriano que foi adoptado em 1918 e que corresponde ao calendário ocidental. Assim a Revolução de Fevereiro de 1917 ocorreu durante a jornada internacional de luta pelos direitos das mulheres, 8 de Março no calendário actual. Da mesma forma, a Revolução de Outubro teve lugar a 7 de Novembro. Daqui para a frente este texto adopta o calendário actual (ou seja, o gregoriano).

[8] Ver Léon Trotsky. 1930. História da Revolução Russa, cap. 7. https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap07.htm

[9] Alexandre Fedorovitch Kerensky (1881-1970), advogado, trabalhista (do partido: Troudovik) foi chefe do Governo provisório em 1917.

[10] Dan, em Martov-Dan: Geschichte der russischen Sozialdemokratie, Berlin 1926, pp. 300-301. Citado por Ernest Mandel, Octobre 1917 : Coup d’État ou révolution sociale, IIRF, Cahiers d’étude et de recherche numéro 17/18, Amsterdam, 1992, p. 9. http://www.ernestmandel.org/fr/ecrits/txt/1992/octobre_1917.htm

[11] O Governo era composto por uma aliança entre o partido bolchevique e os Socialistas Revolucionários de Esquerda.

[12] Edward H. Carr. 1952. La révolution bolchevique, Tome 2. L’ordre économique, Édition de Minuit, Paris, 1974, cap. 16.

[13] Thomas Woodrow Wilson, nascido a 28-12-1856 em Stauton e falecido em Washington, D.C., a 3-02-1924, foi o 28º presidente dos EUA. Foi eleito para dois mandatos consecutivos: 1913 a 1921.

[14] Ver a declaração de W. Wilson de Fevereiro de 1918: «every territorial settlement in this war must be made in the interest and for the benefit of the population concerned, and not as part of any mere adjustment compromise of claims amongst rival states». Ver igualmente esta declaração de 1919, aquando da assinatura do pacto que criou a Sociedade das Nações: «The fundamental principle of this treaty is a principle never aknowledged before… that the countries of the world belong to the people who live in them». Estas duas citações provêm de Odette Lienau, Rethinking Sovereign Debt: Politics, Reputation, and Legitimacy in Modern Finance, Harvard University, 2014, p. 62-63. http://www.hup.harvard.edu/catalog.php?isbn=9780674725065

[15] Em Janeiro-Fevereiro de 1918, o presidente Wilson adoptou uma atitude pública aparentemente protectora da Rússia soviética. Ver nomeadamente o ponto 6 da sua declaração em 14 pontos apresentada ao Congresso dos EUA, a 8 de Janeiro de 1918, https://fr.wikipedia.org/wiki/Quatorze_points_de_Wilson

[16] Ver Edward H. Carr. 1952. La révolution bolchevique, Tome 3. La Russie soviétique et le monde, Edition de Minuit, Paris, 1974, cap. 22, p. 24 da edição francesa de 1974.

[17] Ver nomeadamente https://fr.wikipedia.org/wiki/Intervention_alliée_pendant_la_guerre_civile_russe

[18] Foi Lloyd George que relatou estas negociações nas suas memórias: Lloyd George, War Memoirs, IV, 1934, 2081-2107. Ver Edward H. Carr. 1952. La révolution bolchevique, Tome 3. La Russie soviétique et le monde, Edition de Minuit, Paris, 1974, cap. 22, p. 36 da edição francesa de 1974.

[19] Ver Edward H. Carr. 1952. La révolution bolchevique, Tome 3. La Russie soviétique et le monde, Edition de Minuit, Paris, 1974, cap. 28, p. 317 da edição francesa de 1974.

[20] Edward H. Carr. 1952. La révolution bolchevique, Tome 3. La Russie soviétique et le monde, Edition de Minuit, Paris, 1974, cap. 13, p. 136-137 da edição francesa de 1974.

[21] Citado por E. H. Carr, tomo 3, p. 122 da edição francesa de 1974.

[22] E. H. Carr, tomo 3, p. 316 da edição francesa de 1974.

[23] Citado por E. H. Carr, tomo 3, p. 139 da edição francesa de 1974.

[24] Sobre a guerra civil russa, ler Jean-Jacques Marie, La guerre civile russe (1917-1922), 2005.

[25] The New York Times, 2-04-1921, citado por Alexander N. Sack, «Les réclamations diplomatiques contre les soviets (1918-1938)», Revue de droit international et de législation comparée, p. 301. Versão inglesa: http://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.hoil/dipclsov0001&div=1

[26] Ver: Alexander N. Sack, «Les réclamations diplomatiques contre les soviets (1918-1938)», Revue de droit international et de législation comparée.

[27] Carr, t. 3, p. 311-312.

[28] Criado em 1863. O Crédit Lyonnais é conhecido sobretudo pelo escândalo do seu resgate às custas do Estado francês, em finais do século passado. Tendo estado à beira da falência na década de 1990, em consequência da crise imobiliária, o banco foi nacionalizado e recapitalizado; em 2003 passou a ser controlado pelo Crédit Agricole. O resgate custou à colectividade, ao todo, 14,7 mil milhões de euros.

[29] Banco de negócios criado em 1904; viria a fundir-se com o Crédit du Nord em 1973.

[30] Landon-Lane J., Oosterlinck K., (2006), «Hope springs eternal: French bondholders and the Soviet Repudiation (1915-1919)», Review of Finance, 10, 4, pp. 507-535.

[31] Quando a Conferência de Génova reuniu, ainda não tinha sido criada a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A URSS viria a ser criada em Dezembro de 1922 e foi dissolvida em Dezembro de 1991. na Conferência de Génova a delegação soviética representava oficialmente a República Socialista Federal dos Sovietes da Rússia. Para simplificar, usamos a expressão Rússia soviética.

[32] As tropas francesas tinham ocupado Düsseldorf, uma das principais cidades da Renânia, em Março de 1921 (ver Carr, T. 3., p. 345). De Janeiro de 1923 a Julho-Agosto de 1925, as tropas francesas e belgas ocuparam o vale do Reno e respectivos locais de produção industrial, a fim de se apropriarem das matérias-primas (carvão, minerais) e dos produtos industriais, à laia de indemnizações, que a Alemanha tardava em pagar Ver https://fr.wikipedia.org/wiki/Occupation_de_la_Ruhr

[33] O reconhecimento de um novo Estado ou é definitivo – dito reconhecimento de jure (de pleno direito) – ou é provisório e limitado – chamando-se nesse caso reconhecimento de facto. A Grã-Bretanha reconheceu de facto a Rússia soviética em 1921, e de jure em 1924.

[34] Les Documents de la Conférence de Gênes, Roma, 1922, 336 pp., p. IX.

[35] Op. cit.

[36] Op. cit.

[37] Op. cit., p. 13.

[38] Les Documents de la Conférence de Gênes, Roma, 1922 , p. 195.

[39] Op. Cit., p. 198.

[40] Op. Cit., p. 206.

[41] Op. Cit., p. 221-222.

[42] Citado por Alexander N. Sack, «Les réclamations diplomatiques contre les soviets (1918-1938)», Revue de droit international et de législation comparée, nota 152, p. 291. Ver versão inglesa aqui.

[43] Les Documents de la Conférence de Gênes, Roma, 1922, p. 118.

[44] Op. Cit., p. 140.

[45] Ver Carr, T. 3, p. 355.

[46] Génova, Op. Cit., p. 92.

[47] Carr, t. 3, p. 436-440.

[48] O artigo 9º do acordo anglo-russo reza assim: «O Governo britânico declara que não intentará nenhuma acção com o fim de arrestar ou tomar posse de todo e qualquer ouro, fundos, títulos ou mercadorias e qualquer outro artigo que não seja identificável como propriedade do Governo britânico, que seja exportado da Rússia em pagamento das importações ou como garantia de tais pagamentos, ou qualquer outra propriedade mobiliária ou imobiliária que tenha sido adquirida pelo Governo soviético russo em território do Reino Unido.» Citado por Sack, p. 301. Ver também a este propósito Carr, T. 3, p. 360.

[49] Sack, p. 306-307.

[50] Sack, nota 209, p. 307.

[51] Sack, p. 315.

[52] Sack, p. 321-322.

[53] Analiso tudo isso no estudo: Éric Toussaint, «Lénine et Trotsky face à la bureaucratie – Révolution russe et société de transition», publicado em 21/01/2017, http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article37007

[54] O destino dos membros da delegação que representou o Governo soviético em Génova ilustra bem a evolução dramática do regime e os efeitos da política encabeçada por Estaline. A delegação era composta por: Georges Tchitcherine, Adolph Joffé, Maxime Litvinov, Christian Rakovski, Leonid Krassine. Tirando o último, que faleceu de doença em 1926 em Londres, o que aconteceu aos restantes é significativo.

Georges Tchitcherine caiu em desgraça em 1927-1928.

Adolph Joffé suicidou-se em 16/11/1927, deixando uma carta de despedida a Trotsky que é um verdadeiro testamento político. O seu enterro é uma das últimas grandes manifestações públicas «autorizadas» da oposição anti-estalinista.

Maxime Litvinov, a 3/05/1939, foi demitido das suas funções em circunstâncias violentas: a GPU cercou o seu ministério, os seus assistentes foram espancados e interrogados. Litvinov era judeu e fervoroso partidário da segurança colectiva; a sua substituição por Molotov aumentou a margem de manobra de Estaline e facilitou as negociações com os Nazis. Destas resultaria o pacto germano-soviético, em Agosto de 1939, que teve consequências funestas. Após o ataque nazi de 1941 contra a URSS, Litvinov regressa ao serviço.

Christian Rakovski, camarada de Trotsky desde antes da Primeira Guerra Mundial e que se opunha à burocracia desde o início dos anos 1920, foi executado em 1941 pela GPU, por ordem de Estaline.

[55] Ver no sítio do senado francês: «Accords relatifs au règlement définitif des créances entre la France et la Russie antérieures au 9 mai 1945», http://www.senat.fr/seances/s199712/s19971210/sc19971210010.html

[56] Stiglitz in Barry Herman, José Antonio Ocampo, Shari Spiegel, Overcoming Developing Country Debt Crises, OUP Oxford, 2010, p. 49.


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