Sociedade civil da Nicarágua está criminalizada
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Sociedade civil da Nicarágua está criminalizada

Em Paris, o jornalista Carlos Chamorro recebeu um prêmio em nome de uma figura da oposição e denunciou clima de terror em seu país

Angeline Montoya 1 dez 2022, 14:00

O tom é grave. O público do anfiteatro principal da Sorbonne está atento. A emoção é palpável. 

“Em Manágua, a esta hora do dia, já passa das 10 da manhã e o sol brilha intensamente, mas a cela de Dora Maria Tellez, prisioneira política na prisão El Chipote, ainda está na escuridão”. 

Com estas palavras, o jornalista nicaraguense Carlos Fernando Chamorro, diretor do portal Confidencial, começou seu vibrante discurso na segunda-feira, 28 de novembro em, Paris, após receber o diploma de Doutor Honoris Causa da Sorbonne Nouvelle em nome da incansável militante dos direitos humanos. 

Uma ex-comandante do movimento guerrilheiro sandinista contra a ditadura do clã Somoza, que combateu ao lado de Daniel Ortega, feminista e historiadora, a senhora  Tellez, 67 anos, está presa há 535 dias, sem possibilidade de ler ou escrever, por se opor à deriva ditatorial do chefe de Estado. no poder entre 1979 e 1990 e desde 2007. Como 40 dos mais de 200 presos políticos, ela é mantida em solitária. 

Foi somente após 85 dias de detenção em total isolamento que essa “guerrilheira destemida e oponente que não se arrepende” – como Marie-Laure Geoffray, professora do Institut des Hautes Etudes de l’Amérique Latine, a descreveu em seu elogio – pode finalmente receber visitas familiares. 

“Por passar uma hora com ela, seu sobrinho foi impedido de sair da prisão e só foi libertado 48 horas depois, sem qualquer explicação”, declarou Carlos Chamorro, ele mesmo exilado na Costa Rica desde junho de 2021, ao diário Le Monde. 

Na Nicarágua, não há mais esperança. O pequeno país da América Central afundou-se em um regime de terror. 

“Há um ano, toda a sociedade civil vem sendo criminalizada”, observa Carlos Chamorro, que em 2021 ainda acreditava que uma luta era possível. Não mais: “Dar sua opinião agora é suficiente para ser jogado na prisão”. 

3 mil ONGs interditadas 

Daniel Ortega primeiro reprimiu no sangue as manifestações pacíficas que, em abril de 2018, exigiam sua saída, matando pelo menos 355 pessoas. Depois, ele aprovou leis liberticidas, punindo qualquer crítica com prisão e impedindo que os “traidores da pátria” se candidatem às eleições. Para completar a decapitação da dissidência, ele mandou prender sete potenciais candidatos à eleição presidencial do 7 de novembro de 2021, incluindo a irmã de Carlos Chamorro, Cristiana, que pensava ser capaz de unir a oposição e derrotar o autocrata. Esse último foi reeleito sem surpresa. 

Finalmente, depois de prender ou forçar o exílio, tudo que a Nicarágua tem de jornalistas independentes, defensores dos direitos humanos, líderes camponeses, estudantes comprometidos, acadêmicos e padres excessivamente críticos, Ortega também alvejou as famílias dos opositores. Como a esposa, Jeannine Horvilleur, e a filha, Ana Carolina, de Javier Alvarez – ambos franceses e primos da rabina Delphine Horvilleur -, que foram interpelados em 13 de setembro por serem parentes desse adversário. Desde então, os parentes dos detentos ficam escondidos. Ou eles também deixam o país. 

Os julgamentos, que são expeditivos, seguem uns aos outros, com pesadas penas de prisão. Dora Maria Tellez foi condenada em 10 de fevereiro a oito anos de prisão por “conspiração” e “atentado à integridade nacional”. 

“A repressão é profunda, radial e cruel, e isso inclui a imprensa: não é mais possível fornecer informações críticas à Nicarágua, sair às ruas e fazer reportagens”, disse Chamorro, cuja equipe editorial inteira se refugiou na Costa Rica. 

Um momento chave, diz o jornalista, foi a expulsão em julho das freiras da congregação das Missionárias da Caridade, criada por Madre Teresa, uma das cerca de três mil organizações não governamentais proibidas pelo regime desde janeiro. 

“No dia da expulsão, os jornalistas de La Prensa tiraram fotos do micro-ônibus escoltado pela polícia que as estava levando na fronteira”, conta Chamorro. “No dia seguinte, os motoristas do veículo dos jornalistas foram presos. Os jornalistas conseguiram escapar. Os motoristas ainda estão na prisão”. 

Esperando o pior 

Contra este pano de fundo, a emigração está se ampliando, e muito. De acordo com as autoridades estadunidenses, 164.600 nicaraguenses foram presos na fronteira entre outubro de 2021 e setembro de 2022, três vezes mais do que durante o mesmo período anterior. O dirigente Ortega argumenta que esta migração se deve às sanções econômicas que afetariam a economia do país. Entretanto, a grande maioria das medidas restritivas tomadas pelos EUA ou pela União Européia (UE) diz respeito a indivíduos, como a vice-presidente e esposa de Daniel Ortega, Rosario Murillo, e algumas instituições públicas ou privadas. 

“Se o objetivo é enfraquecer o regime ou forçá-lo a se abrir politicamente, ele falhou: Ortega está usando as sanções para se apresentar como um governo sob ataque, como se fosse vítima de um embargo”, diz Carlos Chamorro. 

Diante de um regime sem rumo, apoiado pela Rússia e, agora, pela China, os diplomatas ocidentais estão contemporizando, convencidos de que cortar os laços agora seria contraproducente. A UE reagiu à expulsão de sua embaixadora, em outubro, com uma simples medida de reciprocidade. 

O fato é que nem a sociedade civil nem a oposição política no exílio podem fazer nada. Tudo o que resta é esperar. Esperando o pior, ou seja, um colapso econômico do país, que ninguém quer. Ou a morte, um dia, de Daniel Ortega, 77, e Rosario Murillo, 71. 

“Posso dizer que a situação é insustentável, mas ela se mantém”, disse o jornalista, que na segunda-feira à noite na Sorbonne exortou “a esquerda democrática na América Latina a se definir em torno dos valores e práticas políticas simbolizados por Dora Maria Tellez e a abandonar o duplo padrão e o oportunismo pela assim chamada razão de estado”. 

Um claro recado para os governos da Argentina, México e Bolívia, que continuam a não condenar o regime orteguista, ao contrário de Gabriel Boric no Chile e Gustavo Petro na Colômbia. 

“Não se pode justificar uma ditadura em nome da esquerda”, insistiu ele. 

Isolada em sua prisão em El Chipote, Dora Maria Tellez dedicou seu doutorado honorário a todos os presos políticos da Nicarágua.

O texto foi originalmente publicado no Le Monde Diplomatique


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