Chile: uma leitura inicial da vitória da extrema direita nas urnas
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Chile: uma leitura inicial da vitória da extrema direita nas urnas

Uma reflexão sobre a grande derrota sofrida pela esquerda nas recentes eleições constitucionais chilenas e o papel da gestão Boric nesse processo

Israel Dutra 10 maio 2023, 15:00

Foto: Natalia Espina / CNCA

Começamos uma leitura bastante inicial, voltada ao público brasileiro sobre a eleição que ocorreu no domingo no Chile. O resultado despertou interesse e certa surpresa, tanto na imprensa quanto nos círculos ativistas. Afinal de contas, como o Chile passou, em tão pouco tempo, de um vetor de esperança para uma vitória maiúscula da extrema-direita?

As alamedas tomadas por entusiasmo, no levante de outubro de 2019, quando centenas de milhares colocaram contra as cordas não apenas o governo conservador de Piñera, mas também a ordem vigente nos últimos 30 anos, parecem distantes do Chile do último domingo, 07 de maio, quando o Partido Republicano, saudoso do pinochetismo, venceu por ampla margem o processo eleitoral para a escolha de Conselho Constitucional que vai dar forma final à nova carta magna do país.

Vamos aos números: foram escolhidos 50 conselheiros eleitos, através dos partidos, que somados ao representante dos povos indígenas, compõe os 51 assentos do Conselho Constitucional. O PR, liderado pelo neofascista Kast, obteve 35, 48% dos votos (22 conselheiros); bastante atrás ficou a coalizão “Unidade para o Chile”, somando as forças do agrupamento “Aprovo Dignidade” (Frente Ampla, Partido Comunista, Revolução Democrática, Comuns, entre outros) com o Partido Socialista, com 27,45 % dos votos(17 conselheiros); por fim, a direita tradicional, nominada “Chile Seguro”(UDI, RN e Evopoli), obtendo 21, 14% dos votos(11 conselheiros).

Ficaram de fora do Conselho, por não atingirem o piso mínimo, “Todos pelo Chile”, conformado pela Democracia Cristã e as forças que eram parte da antiga “Concertação”, à exceção do PS; e o partido dos liberais, “Partido da Gente”, com cerca de 9 e 5%, respectivamente.

Outro dado relevante foi o altíssimo número, mais de dois milhões, de votos nulos. Se somarmos os votos em branco, chegamos a uma cifra que supera os 20%, na casa dos 2, 5 milhões de votos.

Essa foi a segunda grande derrota do governo Boric. A primeira foi o plebiscito para aprovação da nova constituinte foi marcado pelo “Rechaço” à proposta do governo. Então, o resultado, capitalizado pela direita e extrema direita foi de 62% para o “Rechaço” contra 38% para o “Aprovo”, num claro sinal de desgaste do governo.

Tivemos assim, o seguinte ciclo: a) o levante de outubro de 2019, abrindo um novo caminho social e político; b) o plebiscito votado com 80% para uma nova constituição, em 25 de outubro de 2020; c) a eleição dos representantes constituintes, em maio de 2021, com ampla vitória à esquerda, com presença cidadã e independente; d) a eleição, apertadíssima, de Boric sobre Kast, em segundo turno, em dezembro de 2021; e) a vitória do “Rechaço”, em setembro de 2022; f) o triunfo contundente de Kast e do Partido Republicano na eleição do último 07 de maio.

Ou seja, o governo Boric é uma expressão distorcida – e com mediações – do processo que começou com as lutas juvenis há mais de uma década e que teve seu auge no levante de outubro de 2019. E essa expressão é fruto de uma alta polarização política que vive e viveu a sociedade deste então, com Kast sendo o reverso, com um programa claramente contra-revolucionário. Definimos Boric como expressão distorcida, justamente pelo sentido de sua ação conciliadora ter primado já no acordo que terminou a mobilização de 2019, no chamado “pacto da cozinha”.

Como ler giro à direita de um setor do eleitorado? Como entender a dinâmica e mais do que isso, como atuar?

Voltamos a uma interessante explicação de Pedro Fuentes e Bruno Magalhães, quando da derrota de setembro de 2022:

A proposta de nova Constituição nasceu então no “Pacto da Cozinha”, como ficou conhecido o acordo feito às escondidas das massas mobilizadas nos conselhos populares (cabildos) organizados por todo país(…)

Desde a formação de seu governo até o presente, sua política tem sido de conciliação com as classes dirigentes, sem confrontá-las com medidas concretas (que teriam que ser radicais) para resolver os problemas que o Chile está passando. O governo estava se desgastando em meio a uma inflação de 13% e um aumento no custo da cesta básica que despreza o valor dos salários. Como resultado, sua taxa de aprovação atual é inferior a 30%.

Consequentemente, sua política em relação à nova Constituição era contraditória, vacilante, e seu apoio era tímido. Coerente com sua política de conciliação, expressou suas reservas e, juntamente com os líderes da antiga Concertação, levantou a necessidade de que fossem feitas mudanças em seus regulamentos.

Há elementos adicionais, como a crise geral das condições de vida, que envolvem uma maior rejeição ao governo Boric (em março de 2023, era de apenas 35%). Como desdobramento da crise econômica e social, cresce a violência urbana, com a extrema direita dura construindo agitação por mais repressão e culpando a explosão da imigração- sobretudo de venezuelanos- pela insegurança social.

Boric responde com impotência política, cedendo à agenda mais conservadora e se distanciando das bases que o elegeram. Respondeu com mais criminalização como a lei do “gatilho fácil” e toda militarização da fronteira sul, território histórico do povo mapuche.

Portanto, há uma nova realidade. A vitória da extrema direita será acompanhada por um resgate da tradição pinochetista e da necessidade de Kast de alterar a correlação social de forças, impor uma derrota histórica e resolver o “impasse” do regime com um governo autoritário.

Vale pensar no caudal de votos nulos que representam também um mal-estar genérico contra o governo, mas não um cheque em branco para os neofascistas atuarem.

A extrema direita esteve em desvantagem no plebiscito e na constituinte, mas através de Kast, sistematicamente organizou os setores e franjas reacionárias, que sempre aparecem com força quando existem situações pré ou revolucionárias. Ao contrário, não apareceu uma organização ou ferramenta política que fosse a expressão direta do povo mobilizado nas ruas, nos conselhos e, posteriormente, na constituinte. Com a maioria, a organização popular foi incapaz de forjar uma ferramenta unitária. Em suas reivindicações, o movimento em prol da nova constituinte colocou mais ênfase nas reivindicações democráticas (que eram necessárias) e menos nas reivindicações de classe, como nos insistiram setores como o MVP de Cristian Cuevas. Quando falamos de reivindicações de classe, falamos não apenas do movimento de trabalhadores organizado, como a batalha pela previdência pública, mas para amplas camadas do povo, como no caso da regulamentação da moradia popular.

Uma ferramenta ampla e unitária deveria se unir não pelo programa acabado, mas um programa de ação imediata, para lutar.

Uma ferramenta política unitária que privilegiasse não um programa acabado, mas um programa de ação de luta. Há tempo e necessidade de construí-la, tendo como centro a luta contra o novo pinochetismo de Kast.

As forças populares e sociais têm como tarefa primeira vedar a extrema direita, mas precisam sair da defensiva, apresentando um projeto capaz de dialogar com setores amplos, mobilizar as bases, sobretudo juvenis, com fidelidade ao programa de outubro e retomar o entusiasmo da mudança.

Na Colômbia, o presidente Gustavo Petro, se apoia em mobilizações para impedir as travas das grandes corporações, na sociedade e no parlamento, para construir uma reforma a favor da saúde pública.

Exemplo de Petro e das reservas que a esquerda social e os movimentos populares têm no Chile, seja os setores que foram parte da “Lista do Povo”, dos movimentos sociais combativos, feministas, territoriais, indígenas, seja de setores dos partidos que hoje apoiam Boric, pode servir como ponto de apoio para uma inflexão à mobilização popular.

O sinuoso caminho do processo chileno impõe a urgência de um debate no conjunto da esquerda latino-americana. Retomar a agenda de Outubro, em toda sua potência e radicalidade é o caminho a seguir, apostando em “pisar nas ruas novamente” e nas “praças liberadas”, da Santiago da canção de Pablo Milanes.


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