O que explica o anti-intelectualismo de esquerda?
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O que explica o anti-intelectualismo de esquerda?

Uma análise sobre as formas de comunicação na sociedade do espetáculo e seus impactos nos debates da esquerda

Douglas Barros 14 nov 2024, 09:38

Imagem: Alienação (Flávio Gadêlha)

Via Blog da Boitempo

Uma das tragédias mais importantes de nosso tempo consiste na impaciência e na incapacidade propiciada pelo domínio da imagem, cuja causa repousa na realidade hiperconectada de nossos dias. A imagem, que passou a ter centralidade na vida de todo mundo, fez com que a reflexão laboriosa da palavra escrita fosse substituída pela instantaneidade dos vídeos.

Vivemos sob o império de um tipo de comunicação receptiva que busca emoções identificatórias que não despertem esforços por parte do receptor. Toda contradição, dificuldade ou negatividade ao receptor tem que ser tolhida para satisfazê-lo e orientar sua demanda de consumo. Com efeito, se na era da televisão a imagem já reinava soberana sobre a palavra, com a internet a imagem terá dimensões totalitárias, acentuando a repulsa pela meditação abstrata e a impaciência diante da palavra escrita, que será substituída pela comunicação publicitária.

Essa comunicação se baseia na ideia de que para ser clara é preciso antes saber da necessidade do receptor, contradizê-lo ou negá-lo provoca ruídos desnecessários, então é preciso se comunicar através da informação que se recebe dele. Eis como os toques no aplicativo e algoritmização da vida social organizam uma comunicação dirigida, que precisa ser eficaz através do trabalho com a informação do usuário. Assim, com o mundo da comunicação pela imagem — obtida pelo engajamento do próprio usuário — a argumentação lógica se torna um peso e precisa ser substituída por ritos catárticos de identificação, nos quais ele se veja representado na imagem de um produto — imagem que pode ser qualquer coisa; um livro, um coletivo, um partido, um político etc… Eis como a sociedade do espetáculo se apresenta: a imagem passa a ser a mediadora de toda vida social, adquirindo o status de realidade última e de prova real da verdade.1

Na totalitarização da imagem, organizada por uma escala planetária de conectividade virtual, a reflexão demorada e a crítica passam a ser vistas com desconfiança generalizada. O intelectual passa a ser visto como mais um dos técnicos. Se a capacidade crítica sempre se relacionou à possibilidade de tomar distância da realidade para analisá-la; se a reflexão sempre teve a ver com uma parada e o silêncio; o convite pseudocrítico para a comunicação clara que imponha respostas prontas para problemas “concretos” é mais uma faceta ideológica das transformações operadas pela gestão de crise do capitalismo pós-fordista, que atua sob o mandamento da eficácia e da satisfação. Comunique-se com eficácia para produzir satisfação no público alvo.

Eis, o ponto.

Nos últimos dias tenho sido constantemente atacado com o mesmo pressuposto: a dificuldade com que expresso a crítica que faço na relação entre identidade e identitarismo (como se ambos os conceitos estivessem disponíveis em vitrines). Os que me acusam dizem que sou prolixo, pedante e que deveria rebaixar meu discurso à língua do povo (sabe-se lá o que querem com isso dizer). Eu poderia me fazer de rogado e simplesmente ignorar essa crítica pífia, dúbia, desonesta e falaciosa, se não fosse ela própria mais um sinal da vida social sob neoliberalismo. Mas, insisto, isso é só mais uma das facetas desse modo de gestão.

Uma esquerda rendida ao espetáculo

Em nenhum momento da história humana a atenção subjetiva foi tão disputada, tendo se tornado, ela própria, uma mercadoria. A reboque está a aceleração da vida social, aquilo que Hartmut Rosa chamará de tardo-modernidade,2 que causou uma deficiência na possibilidade de concentração (o chamado déficit de atenção), gerando um verdadeiro e lucrativo mercado da saúde mental. Em dez anos, a importação e a produção de metilfenidato — mais conhecido como Ritalina — cresceram 373% no país. A maior disponibilidade do medicamento no mercado nacional impulsionou um aumento de 775% no consumo da droga, usada no tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH).

Eis aí uma pandemia da qual quase ninguém fala a respeito, e que parte hegemônica da esquerda simplesmente ignora. Um tipo de problema que poderia facilmente ser vinculado ao capital e à vida infernal que ele nos dá hoje. Sim, porque tudo isso tem a ver com a dinâmica de uma vida social depauperada e cada vez mais acelerada. Uma contínua aceleração do tempo social que tornou o espaço social um local indiferente ao indivíduo. Tornou-o um mero detalhe, um pano de fundo que sustenta a virtualidade das relações garantidas cada vez mais por dispositivos eletrônicos.

Se antes da pandemia os espaços careciam de laços cada vez mais, depois dela, com a avalanche das mudanças na relação do trabalho, que se tornou virtual, passamos a entender o deslocamento como um empecilho para aquilo que realmente queríamos fazer. “Ter que ir” e “ter que visitar” se tornaram tarefas “torturantes” uma vez que basta ligar a câmera do notebook. Espaços de intensa sociabilidade pública se tornaram fantasmagóricos e o isolamento se tornou mais do que comum: se tornou uma espécie de demanda.

Mesmo os locais que na modernidade clássica sustentavam o sentido de ação e orientavam as expectativas de milhares de pessoas, como universidades e escolas, indústrias e lojas, hospitais e hotéis, aparecem agora como lugares sem experiências, restando cada vez mais homogeneizados. Ter que lidar com o outro se tornou trabalhoso, frustrante, além de algo não satisfatório, já que muitas vezes o outro nega a nossa demanda egóica.

Paul Virilio, que foi de fato uma Cassandra, sabia que o excesso de informação seria fundamental para desestimular nossa observação e sensibilidade. A comunicação como algo límpido e direto, sem a necessidade da reflexão por parte do receptor, para ele, causaria uma infantilização na cognição em nome da satisfação: o receptor-consumidor tem sempre que estar satisfeito com o que recebe. Isso implica que a informação deva ser algo que ele espere e já saiba. Eis a infantilização da capacidade reflexiva ordenada pela ideia de que esse receptor é um consumidor e precisa imediatamente identificar a informação que recebe. Mas há outra volta no parafuso aí: não se trata só de informar, de comunicar, mas de criar a atenção consumista naquilo que é comunicado. Portanto, nada deve negá-lo.

E, assim, qualquer estrutura desafiadora de raciocínios detidos e de conceitos elaborados será vista como excesso de “elitismo deslocado da vida real”. (Não é exatamente do que me acusam?) Para parte da esquerda, com um discurso pseudo-radical e muito tacanho, o que importa é se tornar inteligível às “massas” imaginárias, que na realidade são consumidores em potencial de uma nova ideia que precisa estar “clara”. E, portanto, a forma suplanta o conteúdo de maneira integral: são as emoções, e a capacidade de despertá-las, que passam a organizar a finalidade do trabalho “intelectual”. Um fosso e um pesadelo.

O tempo morto da conexão

O tempo conectado é um tempo sem experiência, um tempo morto abrigado num arsenal de dispositivos on-line que canalizam a atenção através de imagens e engajam o indivíduo de maneira inconsciente a rolar com o dedo para a próxima cena. Vídeos de 30 a 60 segundos no TikTok e os cortes no Reels do Instagram tornaram antiquado o exercício do olhar contemplativo e da vida imaginativa. A captura do olhar, o automatismo que dirige esse olhar, mudou de maneira dramática nossa vivência temporal redefinindo uma sensibilidade cada vez mais insensível à experiência com a alteridade.3

Se já não temos uma vida profissional, mas especializações; se já não temos espaço para reflexão ante os locais que habitamos, mas uma observação orientada por algoritmos de afinidades eletivas, pode-se afirmar que a aceleração tecnológica nos levou aos grilhões da hiperconectividade, que sempre demanda nosso engajamento ativo capturando diuturnamente nossa atenção. E, assim, com a passagem à era da especialização, a ideia de “formação” se reduz à noção de estar apto à vida a partir de uma educação moldada às necessidades do estudante enquanto consumidor que precisa estar satisfeito.

Diante disso se perdem as contradições, as dificuldades e os desafios inerentes ao processo de formação. Aliás, aprender se correlaciona, nessa dinâmica narcisista, à satisfação: algo que de saída precisa excluir a dificuldade e o esforço do aprendizado. Aprender tem que ser divertido, e o professor deve se tornar um animador de palco: fazer palhaçadas que provisoriamente façam o usuário esquecer da sua dose de satisfação. Num importante artigo no Opera Mundi, Cian Barbosa demonstra como “a digitalização nos impõe o reflexo de uma versão reduzida de nós mesmos”. Quando a mediação dos conteúdos que visitamos passa pelas plataformas digitais, que automatizam nossas escolhas pela informação que fornecemos, nossa própria cognição, encerra Cian, permanece ensimesmada. Ou seja, há um processo da identificação de nossas demandas, organizadas por algoritmos, que nos dá o que se supõe que buscamos, enquanto aquilo que as nega e as contradiz sai do horizonte.

A economia da atenção, portanto, reduz a cognição à fruição do tempo de tela. O resultado, sem dúvida, é a diminuição reflexiva para lidarmos com problemas complexos. Mesmo filmes se tornam insuportáveis por terem mais de uma hora de duração, livros são cada vez mais vistos como produtos museológicos e, desse modo, qualquer raciocínio mais denso é visto como uma ofensa. Algumas pessoas demonstram-se radicalmente afrontadas com qualquer trabalho do conceito, a ponto de xingar quem o faz.

Debord cantou a bola

Se há um crítico que permanece atual para entender nossa complexidade, ele é, sem dúvida, Guy Debord. Para o autor, o espetáculo não constituía apenas o conteúdo das mídias ou aquilo que se expõe na tela do cinema; suas garras são mais profundas porque se enraízam na estrutura da própria sociedade de classes. O espetáculo toma conta, por meio das imagens, da vida social A contemplação das imagens torna passivo seu espectador, retira dele a capacidade de determinar os acontecimentos ou de refletir sobre eles. Isso é possibilitado não pela forma das imagens em si, mas por aquilo que as estrutura e as organiza, ou seja, os modos de produção e reprodução da vida social.

Em imaginar que escreveu tudo isso nos anos 1960…

O exercício do espetáculo não se respalda em oferecer formas de ver o mundo, mas se traduz na própria visão de mundo administrada pela economia. É resultado do modo de produção existente no capitalismo, que não só constitui, como reforça o modelo da vida dominante. Sua força consiste em efetivar a dominação do horizonte social geral, dominando a totalidade da realidade a ponto de fazer parecer que a finalidade da vida é o próprio espetáculo. Assim, a imagem de si e do mundo precisa passar pelas formas de captura direcionada pelos dispositivos conectados. Acreditamos inconscientemente naquilo que a imagem de alguém expressa, e eis que somos capturados fazendo o mesmo: nos produzindo enquanto mercadorias vendáveis.

A manutenção das relações de submissão ao capital se dá pelo espetáculo. Ele precisa garantir que o processo de exploração ocorra por um engajamento ativo dos sujeitos. Então, toda a política se vê enquadrada cada vez mais nas tendências econômicas e nas manipulações do mercado, tornando-se não apenas uma simulação aberta organizada pela democracia liberal e seu mercado eleitoral como ainda uma forma de gestão técnica.

Por isso, o espetáculo transforma o mundo em aparência e representação. O império de sua ação se dá na positividade de seus conteúdos, que são aceitos passivamente. Na era da conectividade global, em que o tempo se torna um tempo real da conexão, o espetáculo guia a saída do ter para o parecer; não importa mais apenas o ter, mas o parecer ter. Ter a imagem de revolucionário é muito mais satisfatório do que ser um revolucionário de fato. As imagens tornam-se seres reais, motivações eficientes que traduzem um comportamento apaziguado e hipnótico. O imperativo de se fazer ver é um mandamento para direita e esquerda.

O imperativo de ver e produzir o que deve ser visto tornou-se a dinâmica da sociabilização. E então “não há mais uma necessidade de dominação coercitiva direta porque ela já está articulada na própria estrutura do processo de produção que governa o tempo”. São os engajados nesse processo que vão implorar por sua reprodução. A dominação imposta transforma-se no desejo de ser dominado, e qualquer um que questionar mais profundamente essa adesão será posto como inimigo. Com a imagem totalitária, a palavra escrita torna-se quase um acinte. Ai daqueles que dela fazem uso! E, assim, o tempo pseudocíclico do capitalismo tardio — aquele que oferece um eterno presente para a reposição do mesmo — se entranhou à experiência individual ordinária; ele cria o dia e a noite, o trabalho e o descanso, as férias e o lazer etc. Mas com uma diferença fundamental: impõe o engajamento ativo dos sujeitos, a despeito do espectro político. Trata-se sempre disso: um simulacro vulgarizado do ativismo reduzido à eleição. Trata-se sempre de pseudo-acontecimentos políticos mediados pela equipe de publicidade. Aqui, grande parte da esquerda, que ainda acredita existir campo para a ação no interior dos aparatos do Estado, é capturada, e mais: organiza ela própria a repressão e o policiamento.

Notas

  1. Douglas Rodrigues Barros, Guy Debord: antimanual de leitura (São Paulo, sobinfluencia, 2022), p. 52. ↩︎
  2. ROSA, H. Alienação e aceleração: por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna. Tradução de Fábio Roberto Lucas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022. ↩︎
  3. VIRILIO, P. A estética da desaparição. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. ↩︎

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