Enchentes: o Brasil precisa parar de encontrar desculpas
Aumento das tragédias provocadas por chuvas torna urgente a implantação da Política Nacional sobre Mudança do Clima
Foto: Defesa Civil/RS
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), teve uma altercação ao vivo com o jornalista André Trigueiro, na Globo News, na última quarta-feira (6). Indagado sobre a dificuldade do Estado em prever o desastre causado pelas chuvas em 50 municípios gaúchos na semana passada, o tucano tentou se justificar, dizendo que os modelos matemáticos previram chuva de grande intensidade, mas o volume médio de 300mm (algo desmentido minutos depois pela MetSul).
Trigueiro rebateu dizendo que culpar as chuvas é artifício recorrente empregado pelos políticos a cada tragédia, o que vem se repetindo. Parentesis: o número de decretos de desastres é maior em sete anos no estado. De 2003 a 2021, foram 4.230 desastres naturais (inundações ou secas), uma média de 222 por ano, segundo dados do próprio governo gaúcho. Mas Leite se ofendeu, interrompeu o jornalista e queixou-se de “falta de empatia” com o Estado, e de novo levantou o escudo dos modelos matemáticos.
“E nem é justo aqui que se deposite em mim a ausência de ações de poder público ao longo da sua história. Estamos fazendo todo o esforço aqui. E a minha manifestação exaltada é porque nós estamos virando noites para poder atender [a população]. Eu estou sofrendo com o meu povo e não acho justo que se coloque a manifestação que você fez”, disse Leite.
O ato de vitimismo do governador é tão flagrante quanto o despreparo do Estado em lidar com tragédias naturais. Em Lajeado, no Vale do Taquari, um homem procura pela esposa e os dois filhos bebês que foram levados pela correnteza na terça-feira (5). De acordo com Miguel Bieleski, a família subiu para o telhado da casa invadida pelas águas por volta das 12h. Quando o socorro apareceu, cinco horas depois, a água já havia levado a casa e sua família, que ele se culpa por não ter conseguido segurar. O tempo de resposta do Estado é, de fato, questão de vida ou morte.
A bem da verdade, a maior parte do país praticamente não conta com nenhum tipo de preparo para prevenir ou agir com agilidade de modo a conter perdas. Assim como o Rio Grande do Sul, São Sebastião (SP), meses atrás, e Recife (PE), no ano passado, o Estado falhou. Quantos precisarão morrer para que esse trabalho seja feito? De acordo com um estudo do Banco Mundial, de 1991 a 2021, foram 4.374 mortes, 8,25 milhões de desabrigados e 98,57 milhões de afetados – a maioria no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e em Minas Gerais.
Em todo o país, a Defesa Civil convive com precariedade, tanto de equipamentos quanto de pessoal. A maioria das cidades sequer contam com equipes dedicadas exclusivamente a esse serviço, que é vital para enfrentar tragédias. Também é necessário investir em planos de gestão de risco norteando a ocupação do solo. Zonas de maior perigo não deveriam receber moradias e, caso haja, deve ser elaborado um projeto de reassentamento, gritam os especialistas, há décadas. Mais simples – e igualmente urgente e eficaz – é contar um sistema de alertas. E não basta distribuir mensagens por celular ou sirenes sem dar orientações prévias à população, que deve saber agir quando um alarme for disparado.
O gasto sempre vem depois
Um levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM) indica que o Brasil gasta mais recursos para lidar com danos de tragédias naturais do que para preveni-las. Nos últimos 10 anos, foram empregados R$ 401,3 bilhões para reparar prejuízos e apenas R$ 4,9 bilhões em gestão de riscos. É um dado importante de se observar levando em consideração que as mudanças climáticas têm provocado tragédias de forma recorrente.
“O aumento das intempéries é consequência direta do aquecimento global. Além de medidas de prevenção e de auxílio emergencial, é fundamental repensar a política climática global”, pontuou a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS), em visita a cidades gaúchas atingidas pela enchente.
Desde 2009, o Brasil conta com uma Política Nacional sobre Mudança do Clima. O documento orienta sobre a necessidade de agir na mitigação das causas do aquecimento global (como o combate às emissões de gases de efeito estufa) e adaptação, preparando o país para lidar com os efeitos dessas emissões. De lá para cá, quase nada foi feito para implementar essa política.
“Custa muito não se adaptar, custa muito não combater as mudanças do clima. Adaptação não é mais uma opção. Ela é absolutamente necessária. A emergência climática é uma realidade, e a gente tem de lidar com ela. Se a gente não tiver o olhar da justiça climática [nesse processo], a gente poderá condenar algumas comunidades a um estágio de pobreza eterno se a gente não tiver a perspectiva da justiça climática como um pilar da política climática”, diz a secretária nacional de Mudança do Clima, Ana Toni.
Até a manhã desta segunda-feira (11), o ciclone extratropical que atingiu o Rio Grande do Sul contabilizava 46 mortos e 46 desaparecidos. E vai voltar a chover.