‘O Panamá se tornou o epicentro de uma luta que está sendo travada pelos povos latino-americanos’ 
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‘O Panamá se tornou o epicentro de uma luta que está sendo travada pelos povos latino-americanos’ 

Em entrevista, o sociólogo panamenho José Cambra denuncia o desmonte neoliberal no país e explica por que o Panamá se tornou símbolo da resistência popular contra políticas de austeridade e autoritarismo

Antonio Neto 27 jun 2025, 15:09

Foto: Reprodução

Há mais de 50 dias, o Panamá vive uma das maiores greves de sua história recente. O estopim foi uma série de medidas neoliberais adotadas pelo recém-eleito presidente José Raúl Mulino, herdeiro político do ex-presidente Ricardo Martinelli – condenado por corrupção e atualmente asilado na Colômbia. 

Em entrevista exclusiva, o sociólogo e militante José Cambra detalha as origens e desdobramentos da mobilização, que começou com professores e se espalhou por diferentes setores da classe trabalhadora. Para ele, o que está em jogo vai além das fronteiras panamenhas: 

“O Panamá se tornou o epicentro de uma luta que está sendo travada pelos povos latino-americanos contra o capitalismo selvagem.”

Podemos começar pela seguinte questão: por que os panamenhos estão em greve há 54 dias?

José Cambra – Nos últimos meses, o Panamá se tornou o epicentro de uma luta que está sendo travada pelos povos latino-americanos contra o capitalismo selvagem, contra o neoliberalismo, e que se expressa por meio de greves – uma greve por tempo indeterminado, que começou em 23 de abril. Iniciou-se nesta data pelos professores de escolas primárias e secundárias do país e, depoi,s foi acompanhada em 28 de abril por greves por tempo indeterminado dos trabalhadores do setor bananeiro, em uma província chamada Bocas del Toro, que fica no Atlântico panamenho, perto da fronteira com a Costa Rica, e também dos trabalhadores da construção civil, liderados pelo Sindicato Único Nacional dos Trabalhadores da Indústria da Construção e Similares (Suntracs). 

Houve vários motivos para essa greve. É importante dizer que ela está ocorrendo um ano após a posse de um presidente com o sobrenome Mulino, que tem orientação semelhante a de Bolsonaro no Brasil, Milei, na Argentina, Duque,na Colômbia e Trump, nos Estados Unidos. Esse é um homem que ganhou as eleições com o capital político de um ex-presidente que havia sido julgado e condenado por atos de corrupção envolvendo a Odebrecht, razão pela qual ficou inelegível para a disputa presidencial. Estou me referindo a Ricardo Martinelli, que foi presidente do país há cerca de 12 anos e que, impossibilitado de concorrer à presidência, indicou Mulino como seu candidato. Gostaria de dizer que essa candidatura violou a Constituição panamenha e o Código Eleitoral porque, de acordo com a Constituição e o Código Eleitoral, todo candidato a presidente deve ser eleito em uma convenção de um partido ou de vários partidos e, nesse caso, ele não o foi. Ele foi nomeado a dedo, apresentou-se como candidato a presidente ao Tribunal Eleitoral sem nenhuma convenção prévia, obviamente devido à pressa das circunstâncias em que Marinelli havia perdido o direito de ser candidato.

Mas ele fez campanha dizendo que Martinelli é Mulino e Mulino é Martinelli, e apenas dizendo que traria muito bem-estar econômico aos panamenhos. Isso funcionou porque, no período de Ricardo Martinelli, dois mandatos presidenciais atrás, três indultos atrás, houve um período de grande prosperidade econômica no sentido de que havia muito emprego, haviam mega obras, em uma dessas mega obras também havia corrupção governamental pela qual Martinelli foi julgado, considerado culpado e acabou em asilo, protegido pelo governo de Daniel Ortega e Rosario Murillo na Embaixada da Nicarágua por cerca de um ano e, finalmente, o governo de Gustavo Petro o aceitou como asilado e, agora, ele está agora na Colômbia nessa condição. Mas no período eleitoral, no início de 2024, ele efetivamente usou o capital político de Martinelli e venceu as eleições.

É necessário entender que durante todo este ano não houve geração de emprego, pelo contrário, o que houve foi uma lei de reforma da Previdência Social que dá os US$ 9 bilhões es em reservas do Fundo de Previdência Social para serem administrados por dois súditos desse presidente autoritário, um é o gerente do Banco Nacional do Panamá e o outro é o gerente da Caja de Ahorros de Panamá, ambos bancos estatais, e 90% desses US$ 9 bilhões e 10% são dados diretamente à iniciativa privada. Esses gerentes podem terceirizar para empresas privadas para que elas possam se beneficiar e até mesmo essa lei estabelece que é obrigatório comprar títulos das dívidas norte-americanas, em outras palavras, eles põem em perigo e colocam em risco as reservas do fundo de Seguridade Social, que no Panamá tem a ver com o atendimento médico de 90% dos residentes no Panamá, panamenhos e residentes estrangeiros, daqueles que pagam contribuições para o fundo de Seguridade Social e seus beneficiários, e também tem a ver com pensões, em outras palavras, é misto, é atendimento médico e aposentadoria. Essa lei também reduz de 60% para 30% a aposentadoria e estende a idade mínima. 

O cálculo dos economistas da Universidade do Panamá é que agora, em vez de se aposentar aos 62 anos para os homens e 57 para as mulheres, as pessoas terão de trabalhar até os 80 anos para ganhar 60% de seu salário, caso contrário, ficarão com 30% ou menos. Bem, isso disparou o alarme. A Alianza Pueblo Unido por la Vida e outras organizações populares denunciaram essa situação, participaram do convite do presidente para mesas de negociação, o que não resultou em nenhuma lei negociada porque o presidente se recusou. Ele apresentou essa lei, eles puderam debater na assembleia, onde houve um período de consulta de cerca de dois meses que foi transmitido pela televisão, na qual cerca de 500 pessoas, a maioria absoluta, era da opinião de que o que tinha de ser feito era restaurar completamente o sistema de solidariedade e tomar medidas contra a evasão das contribuições por parte dos empregadores, pela burguesia, e também garantir uma alta taxa de imposto. Isto é, aqueles que ganham mais, aqueles que têm mais lucros, são os que mais contribuem, porque o capital neste país é praticamente isento de impostos. Bem, mas  isso se somou algo que fez a situação explodir, que foi o fato de os Estados Unidos estarem propondo, a partir da posição de Trump, retomar o controle do canal que já havia sido entregue ao Panamá há 25 anos por meio de tratados internacionais. O governo Mulino, em vez de denunciar esse fato no Conselho de Segurança da ONU, por exemplo, onde temos um assento não-permanente, não o fez.

Em vez disso, ela assinou um memorando de entendimento com Pete Hegseth, o secretário de Defesa dos EUA, permitindo que se instalasse no Panamá três bases militares nos antigos locais onde eles tinham essas bases. Hegseth declara em um relatório para Trump que já tem mil soldados no Panamá. Além disso, eles acabaram de anunciar, na semana passada, a rotação desses soldados, ou seja, tem tropas dos EUA em violação ao Tratado Torrijos-Carter, em seu quinto artigo do Tratado de Neutralidade Permanente, que estabelece que somente o Panamá poderia ter forças militares ou bases militares após o ano 2000. Isso é visto pela população como uma rendição por parte do governo Mulino, como de fato é, ao que se acrescenta a intenção de reabrir a mina de First Quantum – empresa que lhe deu 48% de seus lucros planetários e que foi declarada inconstitucional novamente pela Suprema Corte de Justiça em 2023, após algumas mobilizações impressionantes.

Este é um país de 4.200.000 habitantes, e houve uma mega marcha com um quarto de milhão de pessoas. Houve um dia em que um milhão de pessoas se mobilizaram em todo o país. Em outras palavras, esse nível de mobilização forçou a Suprema Corte a declarar inconstitucional não apenas o acordo de mineração, mas também, devido a um problema ecológico de proteção do meio ambiente, a mineração a céu aberto. E uma lei proibindo a mineração a céu aberto foi aprovada.

Contra isso, o presidente da República declara que vai reabrir a mina e diz a First Quantum para levar milhões de dólares em cobre que eles tinham armazenado na mina. Além disso, um carregamento de carvão acaba de chegar ao porto da mina para começar a usar novamente a produção de energia elétrica, o que é efetivamente visto como um passo para sua abertura. Essas coisas se chocam completamente com o espírito de 2023 e são as grandes demandas da mobilização que começou com os professores no dia 23, acompanhados pelos sindicatos que mencionei das fábricas de banana e dos sindicatos da construção, no dia 28.

Hoje, 54 dias depois da greve dos professores, os bananeiros haviam chegado a um acordo com a Câmara de Deputados para estabelecer uma lei que restabeleceria os direitos que tinham, afetados pela reforma da lei do Fundo de Serviço Social, a chamada Lei 462. Acontece que, ao mesmo tempo, como havia comunidades inteiras nesse local, essa província foi tomada: o poder na província estava nas mãos do sindicato e das comunidades. Há 24 fechamentos de estradas no caminho para a província e dentro dela. Portanto, o governo impôs como condição que fossem reabertas, mas não foram, porque a luta é pela revogação da lei que está em vigor em nível nacional e eles entendem que isso é uma armadilha, porque não pode haver duas leis que digam algo diferente.

Enquanto uma é uma lei especial, a outra é uma lei de nível mais alto do que a lei orgânica do Fundo de Serviço Social. Diante disso, o presidente deu ordem, na quinta-feira passada, para avançar militarmente contra a província. Na sexta-feira, começou a Operação Ômega, que significa Operação Conclusão, que entra na província, enfrenta as barricadas, enfrenta os grupos que estão lá, que são principalmente grupos dos povos originários, Noé, Bulé, Nazo e os trabalhadores bananeiros, que retomaram a luta, mas, contraditoriamente, levaram preso o líder mais importante, Francisco Espín, do sindicato Bananeras, e outros três. E, de fato, eles foram acusados de serem apologistas do crime.

E, como resultado, a luta está se intensificando. No momento, há confrontos em toda a província de Bocas del Toro. Confrontos contra a polícia, contra as forças antimotins, contra o Serviço Nacional de Fronteiras – que também violou a lei, porque o Serviço Nacional de Fronteiras deveria estar nas fronteiras e não operando, como tem operado em todo o país, como uma força ostensiva. E também os povos nativos de Noé, na rodovia Interamericana, a mais importante do país, fecharam a estrada e estão lutando com a polícia.

Isso também está acontecendo, aconteceu na semana passada em uma aldeia chamada Arimey, que pertence ao povo original Emberá, que está do outro lado da fronteira. Estamos falando da fronteira das províncias de Bocas del Toro e Chiriquí, províncias próximas à Costa Rica, e agora estamos falando da selva de Darín, da província de Darín, onde os Emberá vivem e onde estão lutando na estrada, e dois de seus cacicas foram presos e exibidos com algemas, com algemas nos punhos e nas pernas, como se fossem criminosos. Eles foram levados na última sexta-feira para o sistema penal acusatório e liberados, porque não havia como acusá-los.

O que quero dizer com isso é que há uma revolta indígena, porque os outros povos nativos, os Kuna, os Dule, declararam e removeram todas as autoridades governamentais de sua comarca e fecharam todas as escolas em apoio à greve dos professores. Nesse caso, o congresso geral Kuna e o congresso geral Embera estão fazendo o mesmo, ou seja, as autoridades tradicionais dos povos nativos estão lutando contra essa lei, mas também contra o extrativismo, ou seja, contra a intenção, porque sabem que se essa luta for perdida hoje, a mina será reaberta imediatamente, e também para que o acordo de entendimento, o memorando de entendimento com os Estados Unidos que permite bases militares, seja anulado. Quero dizer algo sobre isso.

Na constituição panamenha, tudo o que tem a ver com o canal ou suas áreas adjacentes deve ser submetido à Câmara de Deputados e, se aprovado, deve ser submetido a referendo. Em outras palavras, é vinculativo, é obrigatório. Bem, acontece que esse memorando de entendimento tem a ver com três locais, três bases militares localizadas nas áreas revertidas das antigas zonas do canal e, de acordo com a constituição, ele deve ser submetido à assembleia para referendo. O governo se recusa a fazer isso.

Esse governo se transformou em um governo de democracia representativa burguesa, em um governo que passa por cima da constituição e das leis, típico da ultradireita e de governos que são ditaduras civis. Portanto, estamos enfrentando uma luta em que a questão da defesa do estado de direito e das liberdades democráticas está em primeiro plano. É por isso que temos o secretário-geral do Suntracs que foi forçado, por uma decisão tomada pelo sindicato, a buscar refúgio na Embaixada da Bolívia.

Por quê? Porque eles iam prendê-lo, iam colocá-lo na prisão mais perigosa do país, para ver se algum preso, a mando do governo, iria esfaqueá-lo e matá-lo. Assim como os líderes dos povos nativos de Arimay, em Berán, que estão na Mega Yoia (Prisão de segurança máxima do Panamá) , estão em perigo, assim como Jaime Caballero, que também é líder da Suntracs, que está na Mega Yoia. Em outras palavras, eles estão judicializando os protestos, até mesmo os de estudantes universitários.

Neste país, há mobilizações todos os dias, de segunda a sábado, porque os educadores, juntamente com os trabalhadores da construção civil se mobilizam, e outros setores sindicais se mobilizam todos os dias e percorrem as comunidades. A greve é muito mais forte no interior do país do que na Cidade do Panamá, porque a Cidade do Panamá tem 2 milhões de habitantes, é uma extensão geográfica muito grande e, portanto, é difícil se mobilizar na cidade. As mobilizações são muito grandes na cidade, assim como são muito grandes no interior, mas quando acontece no interior, toda a população se junta aos professores e às marchas.

Essa é a situação que temos. Houve casos em que os professores tiveram seus salários confiscados ilegalmente, porque eles teriam que fazer isso por meio da lei orgânica que estabelece que cada diretor de escola ou faculdade tem que abrir um processo com evidências, tem que passar o processo para cada educador individual. Esse educador tem cinco dias para responder às acusações, em seguida, o diretor tem de decidir e, depois, vem a reconsideração e o recurso. Nada disso foi feito. Os salários de 20 mil professores foram suspensos. Muitos outros estão em greve.

Na América Latina, principalmente na América do Sul, nós estamos vivendo uma onda de governos autoritários de extrema direita, salvo o Brasil, Colômbia, México e Chile, cujos governos estão no campo democrático. Estes governos de extrema direita vem implementando toda uma agenda de reformas, de contrarreformas neoliberais, de ataques aos direitos do povo, e no Panamá surgiu uma situação diferente, porque mesmo com governos que respondem ao Banco Mundial, ao Fundo Monetário, ao governo dos Estados Unidos, desde 2019, os governos de lá não conseguiram implementar sua agenda como um todo. A impressão que temos é que no Panamá há uma resistência popular muito forte, sem representação política no governo, que impede o capitalismo de implementar sua agenda. Ou seja, é o elo mais fraco do capitalismo e, ao mesmo tempo, é onde a luta popular tem sua expressão mais forte, impondo derrotas ao capitalismo e ao governo desde 2019 – como no caso da First Quantum, transnacional derrotada pelo povo nas ruas. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre essa impressão que tenho. 

José Cambra – Acredito que há uma característica no Panamá que é o fato de que as lideranças reformistas do movimento de massas não têm a força que têm em outros países. Ou seja, o que você quer dizer com isso, que há lideranças que são a favor da luta, por exemplo, o sindicato da construção, ou a associação de profissões da república, ou os sindicatos de professores na frente da ação dos professores, e então isso se junta a outra coisa também, que é o fato de eu acreditar que o Panamá vem arrastando o que chamamos de crise de legitimidade, no sentido de que em 2019 houve eleições e alguns meses depois o governo tentou impor reformas constitucionais. Uma dessas reformas foi retirar o orçamento das universidades públicas, e a Universidade do Panamá realizou uma reunião de seu conselho, de seu órgão de governo mais importante, o CGU, e decidiu mobilizar a universidade para o dia seguinte, e saiu uma marcha de 10 mil estudantes universitários para ocupar a  Assembleia de Deputados. Eles tiram as cercas e entram na Assembleia – que volta atrás neste aspecto da reforma. Mas 10 dias depois, uma concentração de 4 mil jovens, entre eles movimentos LGBTQIAP+, sindicalistas e jovens da universidade, é reprimida pela polícia e dá início a um mês e pouco de mobilizações de jovens, em sua maioria mulheres, entre 17 e 35 anos, contra o parlamento e contra a reforma, porque entendem que o parlamento é um ninho de privilegiados, e há uma luta ali que faz e obriga o governo em 2019 a reverter toda a reforma constitucional. Os derrotam! Vem a pandemia em 2020. Ficamos presos em 2020-2021, mas em 2022 houve um aumento nos preços da gasolina que faz com que a população, após a greve dos professores e os fechamentos do sindicato da construção civil, comece a participar com fechamentos em todo o país contra o aumento dos preços dos combustíveis, o aumento dos preços dos alimentos, o alto custo dos medicamentos, a falta de medicamentos nos hospitais públicos e a falta de orçamento para a educação. Naquela época, a única coisa que se conseguiu foi aumentar o orçamento para a educação e parar e reduzir o aumento dos preços da gasolina, mas as questões pendentes permaneceram e um mês de greve dos professores terminou com um acordo de greve em que não havia nem mesmo cortes salariais naquele momento e, em 2023, explodiu porque as coisas anteriores não haviam sido alcançadas, ou seja, explodiu porque havia descontentamento, porque surgiu a questão da empresa de mineração e a empresa de mineração canalizou isso. No início, as mobilizações contra a mineradora eram de 50 a 100 pessoas e acabaram chegando a um quarto de milhão. Ou seja, há um problema no sentido de que as pessoas não aceitam, há um distanciamento dos políticos, dos políticos tradicionais, e efetivamente há um problema de legitimidade em que as pessoas dizem não, eu não vou sair, e como há lideranças que incentivam a luta, isso permite que a população participe.

Na realidade, desde a aliança da poeira, a ideia em toda essa luta tem sido a de que somos um fermento para que a população se expresse. Não somos nós, mesmo que sejamos organizações de massa lutando contra o governo, mas nós ajudando o restante da população a se manifestar, e foi isso que aconteceu em 2023. Agora que a repressão é tão forte, isso explica por que ainda não houve um estalido social generalizado, ou seja, que na Cidade do Panamá os bairros não fizeram o que fizeram no período anterior, porque havia repressão. Já ontem houve luta no leste da Cidade do Panamá. A população Ngäbe saiu na área de Pacora para fechar pontes e lutar com a polícia.

O que estou dizendo é que a política do governo é aplicar a repressão. Se há um bairro pedindo água ou denunciando problemas de moradia, eles aplicam a repressão. E isso causa medo, mas também vai acumulando descontentamento para um surto que ainda não aconteceu de forma generalizada.

Mas, de fato, apesar do fato de haver um governo de extrema direita, havia um governo neoliberal que era completamente corrupto, mas as pessoas reagem da mesma forma. Outra coisa diferente, por exemplo, Bolsonaro, no Brasil, de alguma forma capitalizou o descontentamento de uma parte da população, capitalizou e teve uma base de apoio social. No momento, esse governo de extrema direita não tem uma base social de apoio.

Além disso, agora Martinelli está sendo agredido quando lhe dizem que é por causa dele que temos o Mulino. Em outras palavras, aquele que tem uma base social de apoio e simpatia entre a população está começando a ter esse tipo de problema. Acho que é um problema de liderança. Existem lideranças que estão dispostas a lutar. E isso explica por que existe essa possibilidade de resposta. O movimento dos professores conta com uma vanguarda que está lá há 20 ou 25 anos lutando. Se você observar a idade da maioria dos professores, especialmente os do Ensino Médio, eles têm 50 anos ou mais. Portanto, é uma vanguarda que esteve em todas as lutas.

Eu estive no Panamá e pude ver, e agora mais ainda, que há muito apoio popular nos bairros, nas cidades, nas famílias, à greve dos professores. A comunidade está muito envolvida nessa mobilização. Além dos professores, dos operários da construção civil, dos bananeiros, dos indígenas, como sujeitos isolados, suas comunidades estão muito envolvidas na greve. Talvez nos bairros de classe média não se veja tanto apoio à mobilização. Como você disse, estão tirando o salário de muitos professores. Então, há campanhas de apoio comunitário, levando comida, levando dinheiro para apoiá-los em sua luta, certo?

José Cambra – Com certeza. Por volta da terceira semana da greve dos professores, iniciou-se uma onda de assembleias e reuniões de mães e pais. Digo, mães, porque a maioria dos pais de alunos do Ensino Fundamental e Médio são mulheres.

Então, as mães e pais se reuniram e declararam que sua escola apoiava os professores que estavam desempregados. E se houvesse professores que não estivessem em greve, os pais diziam que não mandariam seus filhos. Portanto, essa é uma greve que começou com talvez 60% dos professores em greve. Depois, na terceira semana, chegou a 80%. O movimento foi impulsionado pelo apoio dos pais. Mas há outro ator que começou a se manifestar na primeira semana de greve: os estudantes do Ensino Médio, de uniforme, que foram em massa às passeatas nas províncias.

Aqui em grupos, mas em muitas escolas. Em outras palavras, despertou um ator que foi reprimido durante a era Noriega. Aqui havia uma grande tradição de mobilização estudantil.

O papel que os educadores desempenham hoje já foi desempenhado por alunos do Ensino Médio. Eles tinham uma federação de estudantes que tinha associações em cada escola. Cada sala de aula tinha uma representação. Havia uma estrutura organizada e mobilizações em massa. Noriega pôs fim a isso em 1985. Ele expulsou os líderes e destruiu a organização.

Mas, nos últimos anos, em todas as lutas por demandas escolares ou nacionais, os alunos do Ensino Médio têm se expressado nas lutas pelas demandas de sua própria escola ou em algumas lutas nacionais, como foi o caso aqui. Portanto, temos atores que são as mães e os pais que os apoiam e os alunos. Na última semana, houve um retorno dos alunos à sala de aula.

Por quê? Porque há professores que estão exigindo que eles voltem para dar notas, porque o período já acabou. Mas o período acabou e você ainda tem que dar tudo de novo, porque pequenos grupos de alunos receberam nota, não todos. Mas esta semana é a semana de férias dos alunos. Portanto, na prática, todas as escolas estão fechadas. Isso significa que há um ator muito importante nas comunidades para replicar esse apoio, e é nesse ponto que queremos nos basear. É por isso que estamos dizendo que temos de ir às comunidades para angariar apoio junto aos pais a fim de garantir a continuidade da greve.

Eles estão considerando a possibilidade de voltar à greve até 2 de julho, quando a Assembleia retoma sua sessão, porque a assembleia não pode se reunir a menos que o presidente convoque sessões extraordinárias. Com relação ao ponto 462, como ele já disse que não vai negociar nada, terá de ser a própria Assembleia. É por isso que há um movimento em todo o país de piquetes nas casas dos deputados que votaram a favor da lei.

E há vários deputados que já temem seu futuro eleitoral e, por isso, estão dizendo estar dispostos a ver algumas mudanças, reformas na lei como tal. O movimento ainda não foi forte o suficiente para forçá-los a revogar a legislação, mas eles já estão falando sobre isso. Além disso, já sabemos que há de 5 a 7 artigos que podem ser revogados, alterados desta lei, e a lei cai como tal. Mas então é preciso fazer uma reviravolta para conseguir manter a greve de forma eficaz. 

Quanto tempo o movimento pode levar? Você acha que há espaço para exigir aos deputados que reformem a lei? Porque me parece que a Assembleia Nacional está um pouco de braços cruzados, não se expressou adequadamente em relação à lei. É uma tática, não é? Ir até julho para pressionar a Assembleia.

José Cambra – Essa também é a tática do governo para desgastar a categoria. Em outras palavras, o governo está jogando com a ameaça de desconto de salário, o que já foi feito, efetivamente, a cerca de 20 mil professores. Além disso, há províncias inteiras em que nem os diretores nem os supervisores das escolas foram pagos.

Veraguas, Bocas del Toro. Ninguém foi pago lá. Portanto, na verdade, alguns de nossos colegas já estão sem receber há três quinzenas, outros há duas quinzenas, outros há uma, mas na verdade o que o governo está fazendo agora é demitir em massa e substituí-los por educadores desempregados.

Isso tem sido enfrentado com a apresentação de liminares porque, como não seguiram o devido processo, são ilegais. Amparos de garantias foram apresentados à Suprema Corte e essa é a pressão que está sendo exercida sobre o tribunal. Se houver uma liminar que não seja acatada pelo tribunal, não que ela não seja acatada, mas que ele simplesmente a admita, e então uma medida colateral, que é forçar a devolução dos salários.

Eles contradizem o executivo por meio da Suprema Corte. E, portanto, isso é parte do incentivo para mantê-los em greve, que é o fato de o tribunal forçar a Suprema Corte a fazer com que isso aconteça, a devolver os salários. E esses são golpes contra o governo, porque o governo está desferindo golpes repressivos, judiciais e com a questão salarial, porque aqui no Panamá, historicamente, houve apenas duas vezes em que os educadores tiveram seus salários retirados durante uma greve. Eles nunca se atreveram a fazer isso antes. E estão fazendo isso porque o objetivo desse governo de extrema direita é destruir o Suntracs e destruir a organização dos professores. E ele acha que, ao destruir isso, ele destrói a liderança que está no caminho de seu plano.

E essa é a decisão do governo. Portanto, temos um confronto total, onde não há meio termo. Não há meio-termo porque o governo não quer negociar absolutamente nada.

E não tem força social para manter, para sustentar suas propostas. Se perder a lei previdenciária, perde todas as outras. Em outras palavras, não tem força para… o acordo com os Estados Unidos não tem pode impor a mineração, então eu acho que esse é o problema, não é? Parece-me que é um impasse. O governo não tem força suficiente para esmagar o movimento, e o movimento, ao deixar o governo, não tem força suficiente para… 

José Cambra – Não é forte o suficiente para derrotá-lo. É necessário um impulso maior das comunidades para derrotar o governo. E quero lhes dizer uma coisa. Se o governo for derrotado, será derrotado de tal maneira porque esse homem, Mulino, vendeu-se à oligarquia financeira como seu salvador. E a oligarquia financeira o adotou.

Mas essa já é uma situação de ingovernabilidade que também afeta seus lucros. Portanto, o consumo diminuiu. O fato de haver 20 mil educadores que não recebem seus salários significa empréstimos bancários, empréstimos hipotecários, que não são pagos aos bancos.

Portanto, isso cria uma situação na economia. O fato de que outras partes do país já estão começando a ficar presas também afeta a economia. Portanto, se isso se agravar, vamos apostar que a população, em algum momento, estará tão forte na possibilidade de participar que seria, de fato, uma derrota espetacular. Como a que eles querem nos infligir. 

Mas já existe um setor da burguesia pressionando o governo? O setor que atua na economia real, no turismo, nos mercados. O setor burguês da economia real já está pressionando o governo a recuar? 

José Cambra – Na semana passada, há 10 dias, ele se reuniu com eles, conversou com eles e pediu que esperassem, que lhes dessem alguns dias para terminar o movimento.

É por isso que o discurso do presidente sempre diz que não há problema aqui. Aqui o problema do 462 acabou, aqui só tem alguns pequenos. É claro que as pessoas dizem, meu Deus, há dois Panamás aqui, o do presidente e o que você vê na rua.

O que ainda não chegamos é a uma revolta nacional ao mesmo tempo. É a isso que não chegamos. E estou falando do ponto de vista até mesmo do direito da população de se manifestar.

Houve manifestações na mesma época que paralisaram o país, mas não em todos os lugares, como ocorreu em 2023. E é isso que o presidente diz. Não permitirei que o país seja fechado novamente.

Essa é a medida de hoje. Mas, na verdade, é fechar o país, de certa forma, não é? Até certo ponto, se houver movimento de transporte, etc., mas há um momento em que ele é efetivamente fechado. E há outra coisa, o Movimento de Solidariedade Internacional, quero dizer que estamos profundamente gratos a todos os companheiros no Brasil e em todos os outros países que realizaram a campanha internacional que começou antes do dia 9 de junho.

Houve manifestações, por exemplo, na OIT, no congresso da CSA em nível latino-americano, da CSI em nível mundial. Houve até mesmo uma coordenação com Marcelo Di Stéfano para reunir as ações que ocorreram em 9 de junho em diferentes lugares, tanto na América Latina quanto na Europa, e em outros lugares. Em outras palavras, houve efetivamente um movimento dos sindicatos de professores, das organizações políticas de esquerda, dos companheiros da Quarta Internacional, etc., que foi feito de forma geral com as centrais sindicais, etc.

No centro disso também está a solidariedade com a Suntracs, que é a organização mais atingida. Suas contas, suas contribuições sindicais, foram sequestradas por dois governos consecutivos desde 2023, desde 18 de novembro de 2023. Seu líder mais importante está na embaixada da Bolívia.

Há outro líder importante na prisão e outro que está dando US$ 10 mil dólares para localizá-lo. Há uma caçada em andamento. As instalações do sindicato foram invadidas. Em outras palavras, toda a questão da liberdade de associação e os acordos da OIT foram violados.

Em todas as tentativas do governo de esmagar o movimento, houve um que chegou mais perto? A tentativa de negociar com o sindicato dos bananeiros para reformar a lei previdenciária, o que eles não conseguiram fazer, certo? Houve umas duas tentativas. Uma delas foi um ministro do governo que se reuniu com eles em Boca del Toro e voltou sem um acordo. E agora houve uma nova tentativa que resultou na prisão do líder sindical. Em outras palavras, as tentativas do governo de dividir o movimento não funcionaram. Então, o que vai acontecer agora diante do impasse que isso está criando? 

José Cambra – A Assembleia de Deputados aprovou as reformas acordadas com o sindicato na Lei 45. Apesar disso, mantiveram os fechamentos em Changuinola, que é a área mais sindicalizada. Então o presidente decide enviar a polícia e as forças militarizadas para lá, a luta começa e os sindicalistas fecham Changuinola novamente. É como um bombeiro louco que, em vez de jogar água, joga gasolina. Então eles estão prestes a esmagar o movimento.

Mas como o movimento é muito forte, é muito difícil esmagá-lo. E qualquer deslize pode incendiar a pradaria. E estamos resistindo justamente para que a população possa participar e possamos derrotar o governo.

Derrotar o governo significa a derrota, como você bem disse, não apenas da lei de reforma da previdência social, mas também da mineração, de todas essas tentativas governamentais. Além disso, o próprio governo se coloca em perigo, porque este é um presidente que não tem vice-presidente. E houve a denúncia contra ele que apresentamos na Assembleia dos Deputados em cumprimento à Constituição, de que ele violou a personalidade internacional do Estado ao aprovar bases militares pertencentes aos Estados Unidos, o que é proibido porque o Panamá não pode ter exércitos, muito menos exércitos estrangeiros?

Ele violou a disposição da Constituição que estabelece que tais acordos devem ser submetidos à Assembleia e a um referendo, portanto, violou a personalidade internacional do Estado, que é a única razão para a destituição de um presidente. Se a correlação de forças mudar e surgir uma grande crise, então a possibilidade seria que, uma vez que a correlação interna de forças na sociedade tenha mudado, refletida na Assembleia, o presidente seja destituído do cargo e novas eleições sejam realizadas em cinco meses, conforme determina a Constituição. Em outras palavras, isso abre uma situação diferente.

Isso ainda não está em discussão. Não é uma possibilidade no momento, mas está aberta a uma derrota do governo. Porque isso já seria um instrumento que não seria eficiente para a burocracia, porque é um governo absolutamente derrotado.


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Autores

Camila Souza