Diante da crise política aberta em Itaipu, uma saída popular e internacionalista

Sobre a recente crise que envolve o acordo bilateral entre Brasil e Paraguai.

Israel Dutra e Luciano Iranzo 13 ago 2019, 12:38

Uma profunda crise

Os presidentes Bolsonaro e Mario Abdo Benitez assinaram, em 24 de Maio de 2019, uma ata bilateral que modificava por completo os termos do acordo de Itaipu. A revelação dos itens do acordo gerou uma profunda crise política no Paraguai. Os altos custos que deveriam ser pagos pelo Estado Paraguaio fizeram saltar uma ampla indignação popular e a acusação sobre o presidente, seu vice e seus negociadores de “traição à pátria”. 

A crise que colocou em xeque a própria manutenção do governo levou a anulação da ata e a demissão de todo corpo de funcionários e ministros envolvidos. Novas revelações sobre benefícios pessoais, sobre o papel do partido de Bolsonaro, o PSL, nas negociações e perspectiva de novo pedido de impeachment de Mario Abdo demonstram que não está encerrada a tempestade política que assola as negociações sobre Itaipu. Uma longa história que está longe de terminar.

Itaipu

Em Julho de 1965 a ditadura brasileira com Castelo Branco, a cabeça invade Puerto Renato um território que se encontrava em demarcação limítrofe desde o conflito da tripla aliança, há alguns anos o governo brasileiro começara a realizar estudos da potencialidade hidroelétrica de toda a região, a comissão de limites paraguaia da região foi detida, e entre os detidos se encontrava Conrado Papalardo, um homem muito próximo ao ditador colorado, Alfredo Stroessner.

Nesse marco, em junho de 1966, o então chanceler paraguaio Sapena Pastor e o chanceler brasileiro Juracy Magalhães assinam a ata de Foz de Iguaçu. Em abril de 1973, a assinatura do tratado de Itaipu, pode-se dizer que Itaipu é produto de uma invasão militar.

Itaipu é a maior produtora de energia limpa do mundo, com uma capacidade instalada de 14 000 MW, em 20 turbinas, encontra-se na fronteira compartilhada entre Paraguai e Brasil, tem um nível de eficiência altíssimo, uma obra de engenharia magnífica que responde aos interesses da burguesia brasileira e internacional, mas não aos interesses do povo paraguaio nem brasileiro.

Depois de assinar o tratado o governo paraguaio deixa de reclamar os territórios invadidos e esses territórios passarem a estar em condomínio, isso segue assim até hoje em dia, desde Salta do Guaira, todo o Rio Paraná, inclusive Itaipu se encontram em condomínio, que segundo o artigo 18 do corpo central do tratado lhe outorga a possibilidade de invasão a qualquer um dos estados, a fim de assegurar o cumprimento do tratado, não só da represa, mas de todos os territórios que se encontram em condomínio.

Entre a assinatura da ata e o tratado com o governo brasileiro, ocorreu a eliminação de uma palavra que alterou bastante a equação para o outro lado do Rio. No Artigo 13 do corpo central do tratado:

A energia produzida pelo aproveitamento hidrelétrico a que se refere ao Artigo I será dividido em partes iguais entre os dois países, sendo reconhecido a cada um deles o direito de aquisição, na forma estabelecida no Artigo XIV, da energia que não seja utilizada pelo outro país para seu próprio consumo.”

A ata inicial fala de direito preferencial de aquisição. Ao eliminar a palavra “preferencial”, o Paraguai fica impedido de dispor da energia que não utiliza, e segundo o Anexo C do tratado deve ceder a energia não-utilizada ao Brasil. A Cessão é realizada a um preço irrisório de 10 usd m/h quando no mercado oscila desde 55 usd m/h a 120 usd m/h. Se o Paraguai conseguisse vender a energia ao preço de mercado, poderíamos falar de 1,5 bilhão de dólares por ano numa cifra que representa 3% de seu PIB de 2018.

Só colocamos o Rio

No Paraguai nos querem fazer crer desde os setores poderosos que somente contribuímos com o rio. Se isso é verdade, por que seguimos pagando com nossas faturas de serviços elétricos, quase 50 anos depois uma dívida que submete todos os dias milhões de trabalhadores paraguaios e brasileiros, já que a tarifa de Itaipu quase em 65% corresponde ao pagamento da dívida. Uma dívida que segundo especialistas já foi paga muitas vezes, e que seu cronograma de pagamentos vence em 2022.

Dívida que no início era de 3,5 bilhões para o término da hidrelétrica e que, graças ao superfaturamento e outros fatores, cresceu 40 vezes em seu valor inicial. Embora o primeiro empréstimo tenha sido feito através da Eletrobrás, essa não quer dizer que o povo trabalhador não pague a dívida já que como foi denunciado muitas vezes os centros comerciais, indústrias, etc, recebem subsídios nas tarifas de serviços de eletricidade. Eletrobrás num período vendeu energia às indústrias brasileiras e estrangeiras instaladas no Brasil a um preço abaixo do produzido e este subsídio às grandes indústrias caía e cai nas costas dos trabalhadores.

Em 1994, graças a uma grande inflação, o Brasil decide mudar sua moeda de Cruzeiro para Real. Isso também foi absorvido pela dívida de Itaipu, algo em torno de 5 bilhões de dólares. Em 1997, Wasmosy e FHC assinam o acordo pelo qual se cobrariam juros sobre juros, uma dupla indexação.

Este acordo esteve vigente durante 10 anos e acredita-se que a dívida teve um salto grande nesse período. O montante final para 2022, segundo especialistas pode chegar a 80 bilhões que pagaremos todos os trabalhadores, os quais não somente contribuímos com o rio como também com centenas de mortos durante a construção da usina.

Um governo frágil em crise

Há tempos discutimos com os companheiros sobre a fragilidade do Partido Colorado, o qual passou de um partido que dirigia um grande setor da sociedade a um partido meramente eleitoral. A crise não se restringe ao Partido Colorado, mas alcança também o regime em sua totalidade.

A crise do governo de Mario Abdo nos leva ao mesmo debate, já que este tipo de acordo foi levado a cabo mais de uma vez na história e nunca o Partido Colorado acusou o golpe como desta vez.

Em maio deste ano foi assinado um acordo pelo qual o Paraguai já não podia comprar energia excedente, mas teria que comprar energia contratada que tem preço elevado em relação à energia excedente, já que a energia contratada tem custo aproximado de 41 usd M/H e a energia excedente tem um custo que oscila entre 30 a 35 usd M/H.

Pelo acordo assinado por Bolsonaro e Abdo, o Paraguai se comprometia a comprar mais energia contratada e ir baixando o consumo de energia excedente. Isso teria um impacto de 250 milhões de dólares neste ano e isso iria aumentar com o passar dos anos.

A assinatura da ata sai à luz pela renúncia de um dos diretores da ANDE, ente encarregado de administrar o serviço de energia no Paraguai. Uma vez conhecidos os motivos da renúncia de Fabian Caceres, ex-diretor da ANDE, a imprensa e o movimento de massas começa a questionar todo o governo. O governo acusa a imprensa de manipular os fatos, mas ata vem à luz e nela não há nenhum benefício para o povo paraguaio ou para o melhor preço de compra da energia. Ante tudo isso, Mario Abdo faz um discurso no qual se refere aos paraguaios como “ladrões” e “cobradores de pedágio” e o mal-estar só aumenta. Começam as primeiras manifestações. Vêm à tona áudios nos quais ficam muito expostos o embaixador paraguaio no Brasil e o chanceler, já que os técnicos da ANDE não conheciam o acordo que estavam por assinar. Estes técnicos se nega a assinar a ata e são convidados a sair da reunião na qual ficam os técnicos da Eletrobrás e diplomatas brasileiros e paraguaios. A ata é assinada dessa maneira.

No domingo à noite, o chanceler Castiglioni numa coletiva de imprensa expressa que foi uma manipulação da imprensa e uma operação midiática, e que vão recuar da assinatura da ata. No outro dia, renuncia não só o ministro de Relações Exteriores, Luis Castiglioni, mas também o embaixador paraguaio no Brasil, Hugo Saguier, e também o titular de Itaipu e amigo do presidente, Jose Alderete, além do novo titular da ANDE, Alcides Jimenez.

Na quinta-feira, 1 de agosto, acreditava-se ter o número suficiente para um juízo político de Mario Abdo e seu vice-presidente Velazques, já que foi este que manejou todas as negociações. Ao final não se apresenta o pedido, pois senadores de partidos pequenos como Hagamos, Patria Querida, Partido Democrata Progresista, sempre funcionais ao poder não apoiam o juízo político. Políticos e lideranças de centro-esquerda, como o ex-presidente Lugo, deposto por um golpe institucional anos atrás, não cumprem um papel ativo na denúncia e no chamado à mobilização, apostando no desgaste do clã dos Colorados para capitalizar no terreno eleitoral.

O papel do governo brasileiro

Além da destruição que Bolsonaro e seu clã organizam do patrimônio nacional, seus aliados próximos querem utilizar da força para seguir oprimindo povos vizinhos e fazendo valer seus negócios pessoais. A relação servil e subordinada que mantêm com Trump e os Estados Unidos é inversamente proporcional à política externa na América do Sul. Acossando países como a Venezuela e ampliando a extorsão sobre as riquezas do Paraguai, Bolsonaro quer fazer do Brasil um enclave trumpista no continente para melhor manejar seus próprios negócios.

A empresa que está à frente das negociações se chama LEROS e seu representante não é nada menos que o empresário Alexandre Giordano, suplente do Senador Olímpio, líder do PSL na Câmara Alta. Os partidos de oposição no parlamento paraguaio já protocolaram o pedido de uma CPI sobre o lugar de Giordano e da Leros nas negociações. O povo brasileiro em nada se beneficia, tendo que pagar altas tarifas de eletricidade enquanto as grandes indústrias paulistas tem benefícios e privilégios.

Uma saída popular e de integração democrática dos povos do Brasil e Paraguai

O problema de Itaipu não será resolvido com novas negociatas. Apenas uma campanha entre os movimentos sociais de ambos países pode gerar condições para outros marcos de relação. O governo de Bolsonaro não tem qualquer vocação democrática, apenas se movendo por seu ideário autoritário e ultraliberal. A crise econômica vai arrastar ambos países para um redemoinho de regressão social, miséria e espoliação.

O governo paraguaio segue ocultando os termos que pode negociar, deixando para tratados secretos e escusos, as cláusulas que definem a distribuição dos recursos energéticos. A ira popular pode desatar em novos conflitos, reativando a luta social e seguir colocando o governo de Mario Abdo na defensiva. 

Diante dos novos acontecimentos, cabe a esquerda social construir parâmetros internacionalistas para lutar contra a opressão histórica que o governo brasileiro impõe ao povo paraguaio. A começar por novas regras para Itaipu, o cancelamento da suposta dívida( a verdadeira dívida histórica é a do Brasil) e as condições livres para o Paraguai poder gerir sua política energética. A luta popular deve construir uma ponte entre a indignação dos dois lados da fronteira.


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Pedro Micussi