Um diagnóstico do Future-se: o desmonte da Educação como projeto de poder

Projeto está inserido em plano de governo autoritário, reacionário e, sobretudo, neoliberal.

Gabriel de Bem e Stephanie Estrella 4 ago 2019, 20:10

O Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras (Future-se), apresentado pelo governo em 17 de julho com a suposta finalidade de “fortalecer a autonomia financeira/administrativa e captar recursos próprios para as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES)”, está inserido em um projeto maior de nação, próprio do governo Bolsonaro: autoritário, reacionário e, sobretudo, neoliberal, mirando privatizar serviços públicos essenciais. 

Pensado de forma unilateral pelo Ministério da Educação (MEC), o programa permite a entrega do orçamento e da gestão das universidades às Organizações Sociais (OSs, entidades de caráter privado que são assim qualificadas de forma discricionária pelo governo federal), além de inverter a lógica das IFES para que comecem a produzir conhecimento exclusivamente para os interesses do mercado, abrindo mão do interesse público.

Não é novidade que Bolsonaro elegeu a educação como sua inimiga número um. O Future-se, como projeto, é tecnicamente tosco e juridicamente inconsistente. Afronta, por exemplo, 16 leis vigentes no país, entre elas a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e o Plano de Carreiras e Cargos do Magistério Federal. E se mostra como uma espécie de sistematização de todos os ataques que o Governo Bolsonaro promoveu à educação em seis meses de mandato: (1) os cortes de 30% no orçamento das universidades federais; (2) a cruzada ideológica contra o suposto “marxismo cultural” no interior dos espaços universitários; (3) a perseguição aos estudantes que se mobilizam para defender seu futuro – chamando-os inclusive de “idiotas úteis”; (4) o ataque específico aos cursos de Filosofia e Sociologia; (5) os cortes nas bolsas de pesquisa; (6) o incentivo ao crescimento de cadeiras EADs nas universidades privadas; (7) o fortalecimento dos “tubarões da educação”, grandes corporações privada de ensino que se favorecem a mercantilização da educação e; (8) a militarização do ensino, colocando as escolas chamadas “cívico-militares” como eixo do projeto nacional de educação e incentivando que policiais da reserva atuem como tutores para garantir “disciplina” nas escolas – nada mais do que doutrinação pura e censura a qualquer pensamento crítico e divergente.

A crise orçamentária das universidades federais, induzida através dos cortes impostos em abril, faz parte de um projeto ainda maior: Weintraub e sua equipe de economistas, muitos deles com origens e interesses vinculados ao mercado financeiro, inclusive o próprio ministro, enxergaram na educação um novo balcão de negócios extremamente lucrativo, com uma oportunidade histórica para os setores da burguesia que sustentam o governo (especialmente banqueiros e agentes do setor financeiro) enriquecerem ainda mais.

Não por acaso a educação é o principal alvo de sucateamento e de medidas que caminham em direção à privatização. Atacam as universidades por saberem que nelas está a maior pedra no sapato do Governo Bolsonaro, o maior obstáculo para a concretização de seu projeto ultraliberal. E atacam a ciência e a produção de conhecimento porque percebem que os fatos contradizem as teorias mais alucinógenas da extrema-direita delirante. Por isso o INPE não pode mais divulgar dados sobre desmatamento, o IBGE não pode mais expor a chaga do desemprego galopante no país e a FIOCRUZ está proibida de demonstrar o fracasso da política de guerra às drogas. É o governo da autoverdade, como bem definiu a jornalista Eliane Brum.

Em setembro do ano passado, a juventude e o movimento de mulheres foram os primeiros a se mobilizar para tentar barrar a vitória eleitoral de Bolsonaro, com as amplas mobilizações que deram origem ao Movimento #EleNão. Nos dias 15 e 30 de maio deste ano, foram os estudantes que saíram às ruas para defender a educação. No dia 13 de agosto, temos uma nova jornada de luta marcada.

Esse texto é um esforço para armar o Movimento Estudantil e as categorias da educação no combate por um projeto de universidade e sociedade em que acreditamos, buscando enriquecer o debate para que sigamos na luta, aglutinando forças e ganhando maioria social para defender a educação e derrotar o governo.

A desinformação como método de governo

O programa foi apresentado aos reitores das IFES no dia anterior à sua publicação, sem nenhuma abertura para o diálogo e impossibilitando qualquer debate acerca de seu conteúdo. Mais notória ainda foi sua apresentação pública à imprensa, que era diferente do texto submetido para consulta no site do MEC, especialmente no âmbito das atividades a serem desempenhadas pelas Organizações Sociais. Na apresentação da proposta, por exemplo, falou-se apenas em “autonomia financeira”, enquanto o texto cita também a autonomia administrativa e de gestão, deixando a entender  que as OSs poderão interferir não apenas nos recursos da universidade e suas formas de captação, mas também na forma de gestão e administração. 

O texto da proposta é superficial, medíocre e obscuro: não cita o Plano Nacional de Educação (PNE) e a situação de cortes nas verbas das universidades; traz incertezas acerca da operacionalização prática de suas propostas, deixando lacunas propositais; e, ainda, desconsidera por completo as políticas de ciência, tecnologia, ensino, pesquisa e extensão já vigentes. 

Esse método de confusão não é nenhuma novidade, uma vez que Bolsonaro trabalha desde o início com a desinformação para aprovar suas propostas que beneficiam somente o andar de cima do poder do país – o que inclui, além dos banqueiros e do capital financeiro, as grandes corporações privadas de educação. Não por acaso que, além de ter sido apresentado sem nenhuma antecedência aos maiores interessados, sua submissão à consulta pública foi pensada, inicialmente, para o período de apenas três semanas, posteriormente alterado para quatro, no momento em que todas as instituições federais estão de férias, impossibilitando o debate.

Em um governo minimamente democrático, um programa que transformará a lógica do ensino superior como conhecemos não poderia ter sido construído sem consulta e debate público, amplo e democrático, com a participação da comunidade acadêmica em geral: discentes, docentes, técnicos, terceirizados, entidades e organizações estudantis e as reitorias. 

  Autonomia universitária sob ataque

O primeiro eixo do programa, “Governança, Gestão e Empreendedorismo” traz o principal ataque à autonomia universitária, prevista constitucionalmente no art. 207 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), pois transforma a “autonomia da gestão financeira”, ou seja, a autonomia que as universidades têm para gerir seus próprios orçamentos, em “autonomia financeira”, uma autonomia para captar recursos. Isso retira a responsabilidade do financiamento das IFES do Estado e a transfere para as OSs. Um projeto conhecido pela população, que já a rejeitou em 1996, quando o Governo FHC tentou transformar as universidades em Organizações Sociais, por intermédio da PEC 370/96. 

Além da gestão financeira, também atribui às OSs a gestão e a administração das universidades. Na prática, o que realmente se pretende não é incrementar a atual forma de gestão, mas entregá-la de bandeja ao setor privado: sai a forma de deliberação colegiada, com representantes eleitos democraticamente, e entram os interesses diretos do mercado financeiro, tomando decisões que visam única e exclusivamente o lucro. 

 A essência da proposta é a inversão da lógica de produção de conhecimento e ciência, que não mais será regida pelo interesse público, mas sim pelo capital privado, sem considerar a função e papel social que as instituições de ensino devem cumprir. 

E os nossos professores

A proposta apresentada pelo MEC é, na verdade, o fim da carreira docente da forma que conhecemos: acaba com o regime de dedicação exclusiva e traz uma lógica meritocrática, competitiva e visando o empreendedorismo individual, transformando professores e pesquisadores em uma espécie de vendedores de produtos acadêmicos, inclusive ventilando a possibilidade desses profissionais serem cedidos às Organizações Sociais, sem deixar claro as consequências e razões de tal cedência. 

Retira, além disso, a responsabilidade de financiamento das pesquisas do âmbito do poder público, que passa a ser dos autores das pesquisas, fazendo com que tenham que buscar, por conta própria, recursos para seus projetos científicos. Essa previsão ataca o princípio da autonomia pedagógica, já que os docentes e pesquisadores terão suas linhas de pesquisa determinadas pelos interesses do mercado e não do conjunto da sociedade.

Vale ressaltar que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) já fornece bolsas de produtividade em pesquisa e inovação tecnológica para servidores com méritos acadêmicos, as quais não são reajustadas há anos. Fica mais evidente a tentativa de transferir a responsabilidade para o setor privado, visto que, se o interesse do governo fosse de fato empreender e modernizar a produção científica, poderia reajustar e fomentar tais bolsas, ao invés de vinculá-las ao setor privado.  

A medida vai ao encontro da lógica de buscar o lucro acima de tudo, posto que, sendo responsabilidade dos próprios pesquisadores buscarem recursos privados, as pesquisas sem contrapartida financeira a tais setores não serão financiadas e, portanto, não se concretizarão. Sob esse viés, ao contrário de realizar pesquisas e produções científicas que efetivamente melhorarão a vida da população e farão o país avançar tecnologicamente, cederemos a uma lógica de produção em massa de artigos científicos e patentes para empresas, restringindo o acesso da população ao conhecimento produzido dentro da academia e soterrando nossa soberania nacional, uma vez que multinacionais terão influência direta nas linhas de pesquisa e os resultados deste trabalho serão exportados para países desenvolvidos. 

Mercado financeiro no comando

Outro ponto do Future-se prevê a criação de um fundo de investimento e patrimonial, de natureza privada, para financiar as atividades das universidades. O fundo será composto de vendas de imóveis ociosos cedidos da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) para o MEC com a intenção de especular no mercado financeiro o valor dessas alienações. Mais um montante considerável virá de grandes incentivos fiscais para empresas privadas, vendas de nomes de campi, auditórios e estruturas das universidades, e outros fundos constitucionais.

A ameaça de cobrança de mensalidades na pós graduação stricto sensu também estava prevista como forma de arrecadação para o fundo, mas a proposta foi retirada diante da imensa repercussão negativa na comunidade acadêmica e na sociedade civil em geral. 

  O programa legitima um Comitê-Gestor (que ninguém sabe como e por quem será formado) que dá carta branca às entidades privadas para decidirem o destino das verbas do fundo.

Conhecimento para fora, precarização para dentro

    No terceiro eixo, o programa prevê a “internacionalização”. Entendemos como mais um passo em direção à mercantilização da educação, uma vez que propõe alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ao dizer que facilitará o processo para permitir que as universidades privadas validem títulos estrangeiros e forneçam disciplinas em plataformas estrangeiras através da Educação à Distância (EAD). 

 Reforça, também, o viés meritocrático, ao propor ações de premiação aos alunos com notas altas, que sejam considerados “destaques intelectuais” entre os colegas, e que não tenham conduta desabonada – sem, entretanto, explicar o que seria essa tal conduta, abrindo espaço para perseguição política e criminalização do movimento estudantil.

    O texto ainda cita a promoção de cursos de idiomas através de parcerias com instituições privadas. É mais uma medida que desvaloriza o caráter público das IFES, uma vez que opta por estreitar laços com entidades privadas ao invés de fortalecer programas já existentes. Propõe, ainda, a oferta de bolsas em instituições estrangeiras que contemplem estudantes com alto desempenho acadêmico e/ou atlético. Temos outra marca de Bolsonaro e sua base: enfraquecer a soberania nacional, entregando nossa produção científica e avanços tecnológicos de mãos beijadas a outros países, enfraquecendo políticas de valorização acadêmica dentro de seu próprio país.

Mobilizar para vencer

Diante da análise, fica evidente que o Future-se não é uma tentativa de resolver o problema de financiamentos e cortes das universidades, mas sim uma ação inescrupulosa do Governo Bolsonaro que pretende desfigurar o funcionamento e o sentido da existência da educação pública.

É urgente que toda a sociedade civil, apoiada no movimento de técnicos, docentes e estudantes se mobilize e se coloque contra a instauração do Programa. Não podemos ser a geração que permita a privatização da Educação Pública. Nós, estudantes universitários trabalhadores, acompanhamos de perto o processo de democratização do acesso às universidades nos últimos anos: muitos de nós fomos os primeiros das nossas famílias a ingressarem no ensino público superior e continuaremos lutando para que não sejamos os últimos. O projeto de Bolsonaro para a educação é o extremo oposto do que defendemos: universidade pública, gratuita, de qualidade e acessível para todas e todos. 

Para barrar mais esse ataque, apostamos na mobilização! Utilizaremos os mais radicais métodos de luta, confiando nas manifestações de rua, nas ocupações, nos piquetes, nas greves ao lado do movimento dos trabalhadores como uma forma de barrar não só o Future-se em si, mas essa lógica privatista e ultraliberal que está posta.

Desde já estamos construindo em todos os nossos locais de atuação o 3º grande dia de mobilizações em Defesa da Educação. Dia 13 de agosto será mais um teste para o movimento estudantil acumular e mostrar forças para combater o desgoverno de Bolsonaro. Só estamos começando.

Nas ruas, nas praças, quem disse que sumiu? Aqui está presente o Movimento Estudantil!


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Pedro Micussi