(Neo)capitalismo e sofrimento psíquico

Aumento dos problemas mentais, estresse generalizado e mal-estar.

Manuel Desviat 23 dez 2019, 15:13

Confundimos liberdade com “livre mercado”. Assim desconhecíamos nossa implacável condenação como mercadorias. 

Francisco Pereña (Pereña, 2014)

Como anunciava Joaquín Estefanía em Estos años bárbaros (2015) a saída da Grande Recessão converteu em estrutural o que durante a gestão da crise financeira se vendia como sequelas transitórias: o aumento da desigualdade, a precariedade laboral, a desregulamentação dos mercados, a privatização dos bens públicos, arrasando com os outrora direitos constitucionais em educação, saúde, pensões, benefícios sociais. O neoliberalismo completa a revolução conservadora iniciada com Reagan e Thatcher nos anos oitenta do século passado com a conquista do Estado em benefício de alguns poucos. Para o fundamentalismo neoliberal, uma vez donos do mundo depois da queda do muro de Berlim, as leis sociais surgidas depois da crise de 1929 e a catástrofe da Segunda Guerra Mundial, são um obstáculo, um resíduo a suprimir, como o são as políticas sociais de alguns Estados latino-americanos (Brasil, Equador, Bolívia, Venezuela…) iniciadas a contracorrente.

Joga-se com o mito da melhor eficácia dos mercados e o necessário emagrecimento das contas públicas, quando a tomada dos governos nacionais pelo capital financeiro, por esse 1% da população mundial, não supõe o emagrecimento do gasto público, supõe a venda de hospitais, pensões e universidades do erário aos fundos abutres internacionais. Supõe a acumulação ilimitada do capital, como previu Marx, além da também ilimitada invasão da vida toda. A lógica do mercado configura subjetividades, coisifica as relações humanas, convertendo tudo em consumo, concorrência e, em definitivo, mercadoria. Estratégia totalizadora, que pretende ir além do controle da economia, buscando impor uma cultura e um pensamento único a nível mundial. Um pensamento que apague no imaginário coletivo os grandes relatos que configuraram o sujeito de ontem, o Iluminismo, o freudismo, o marxismo. Trata-se de forjar um sujeito neoliberal cuja ideologia esteja procurada pela publicidade e seu desejo copado pelo consumo. 

Os donos dos meios de comunicação seduzem a população com o ideal privatizador, convertendo a precarização do trabalho num atrativo empreendedor, individualismo competitivo do que depende a pessoa e a situa sempre em contínuo risco. Empresário de si mesmo, perde-se o vínculo social. O nós se torna um pronome perigoso, quando não se reduz a algumas poucas pessoas ou à comunhão dos estádios de futebol. A vida se transforma em uma competição na qual já estão definidos os ganhadores, os detentores do poder patrimonial e meritocrático e também os perdedores, os “ninguém”, os desejos pouco meritórios, os excluídos, o excedente social do sistema produtivo. Os determinantes sociais testemunham isso. Para citar alguns exemplos: a renda média dos estudantes da Universidade de Harvard corresponde à renda média de 2% dos estadunidenses mais ricos. Na França, as instituições educativas mais elitistas recrutam seus membros em grupos sociais apenas mais amplos (Piketty, 2015). Ou as desigualdades na expectativa de vida, entre uma classe social e outra; num bairro ou outro da mesma cidade em qualquer parte do mundo. Em Barcelona, a expectativa de vida em bairros como Torre Baró, em NouBarris, é 11 anos menor que em Pedralbes. No bairro de Calton, um bairro pobre da cidade de Glasgow, a população tem uma expectativa de vida de 54 anos, uma das menores do mundo; a poucos quilômetros, na rica zona de Lenzie, a expectativa de vida é de 82 anos, uma das mais altas de Europa (Maestro, 2017). Segundo um estudo recente (The Lancet Planetary Health, Usama Bilal e Ana Diez Roux), dependendo da zona de Santiago de Chile a diferença de expectativa de vida é de 18 anos. O Chile que agora explora nas ruas e que foi vendido como modelo de desenvolvimento pelo neocapitalismo durante as últimas décadas.

As consequências no sofrimento psíquico são o aumento dos problemas mentais e sobretudo um estresse generalizado que se traduz em mal-estar, em infantil desesperança, frustrado um desejo que nunca foi construído, que nunca teve o estofo necessário para perdurar. Enfermidades do vazio ou quebra da identidade na ausência de um útero social.

Neste presente, ante estas circunstâncias, as interrogações se voltam para a assistência social e o sistema sanitário, coletores da miséria social, onde a pergunta de entrada, parafraseando o sociólogo Jesús Ibáñez, estaria em se é possível num sistema capitalista fazer uma política de governo não-capitalista (Ibáñez, 199, p. 223). Levada à assistência de saúde e social, a pergunta é: se é possível uma saúde universal e equitativa, uma saúde coletiva no contexto neoliberal? Sua viabilidade é a aposta (retórica) da social-democracia uma vez que aceitou o capitalismo como o menos pior dos sistemas. Em seu discurso: a volta a um Estado de bem-estar social atualizado pela gestão privada. Mas a questão é: qual é o preço desta atualização, que pelo que sabemos hoje desvirtua completamente os princípios comunitários e sanitaristas nos processos levados a cabo na Europa?(Desviat, 2016).

Em qualquer caso, nesta contradição se encontra a ambiguidade e a insuficiência dos Serviços Nacionais de Saúde, das próprias leis criadas em tempos do Estado de bem-estar social, deixando sempre a porta aberta à privatização dos serviços. Em realidade, ainda nos anos de maior proteção social, a saúde pública esteve sempre condicionada a um financiamento que privilegiava as grandes empresas farmacêuticas, tecnológicas e construtoras. Os governos conservadores, mas também os social-democratas mantiveram a saúde pública em seus programas, o que ademais lhes permitia diminuir custos e aproximar os recursos da população atendida com um claro benefício político eleitoral, mas ao mesmo tempo protegeram as infraestruturas de poder da medicina conservadora e empresarial. A reforma sanitária, e da saúde mental comunitária, em suas conquistas de maior cobertura e universalidade, se desenvolveu sempre a contracorrente do poder econômico, foram ministros conservadores ou socialistas.

De fato, as ajudas econômicas do Banco Mundial se acompanharam da exigência aos países da redução da participação do setor público na gestão de atividades comerciais e a diminuição dos serviços sociais, convertendo em objetivo prioritário a privatização da saúde e das pensões, ao estilo dos EUA. Algo que fica claro no informe de 1989 do Banco Mundial sobre financiamento dos serviços sanitários, onde se propõe introduzir as forças do mercado e trasladar aos usuários os gastos no uso das prestações (Akin, 1987). E na pronta adoção desta política pelos Estados, começando pelo Reino Unido, que foi durante algum tempo referência por seu fornecimento público universal, como pode se ver em documentos recentemente desclassificados do Gabinete de Margaret Thatcher, onde num informe do Banco Mundial se diz textualmente que se deverá colocar um fim à provisão de atendimento sanitário pelo Estado para a maioria da população, fazendo que os serviços sanitários sejam de titularidade e gestão privada, e que as pessoas que necessitem atendimento sanitário deverão pagar por isso. Aqueles que não tenham meios para pagar poderão receber uma ajuda do Estado através de algum sistema de reembolso (Lamata, Oñorbe, 2014).

A filosofia é transparente: a saúde é responsabilidade da pessoa, do cuidado ou não-cuidado que faça com sua vida, portanto devem pagar pelos serviços que consome. A saúde deixa de ser um bem público a que todas as pessoas têm, portanto, direito. A ideologia salubrista baseada no estilo de vida – cuide sua comida, seu hábitat, faça exercício, não corra riscos – ignora os determinantes sociais, as condições de vida e de trabalho, que a salubridade que propõe exige um certo status social ao que boa parte da população não tem acesso.

O fato é que a quebra da universalidade deixa fora do sistema sanitário a coletivos vulneráveis (desempregados de longa duração, imigrantes sem papéis, descapacitados, anciãos…), ao mesmo tempo que os cortes orçamentários deterioram os serviços assistenciais públicos, reduzem a cesta básica, introduzem o co-pagamento em medicamentos e suprimem prestações de apoio (transporte, aparatos ortopédicos…). O Estado desloca aos mercados a decisão de quem terá acesso a viver e a como mal-viver ou morrer. O paciente passa a ser um cliente que pode ser rentável ou não.

Contudo, há outro fenômeno que deve ser considerado ao nos referirmos ao sofrimento singular e coletivo. Outro fenômeno que deve ser enfrentado, à parte da falta de suporte social dos Estados e da hegemonia do discurso conservador, a substancial medicalização da sociedade. A exigência de um Estado privatizador, a ausência de uma doutrina de saúde e serviços sociais orientada ao bem comum, vai possibilitar o processo da mercantilização da medicina, convertida numa importante fonte de riqueza, e consequente medicalização e psiquiatrização da população. Um processo que tem três aspectos básicos, tal como enunciam Isabel del Cura e López García: um, referir como enfermidade qualquer situação da vida que comporte limitação, dor, pena, insatisfação ou frustração (o que poderíamos definir como enfermidades inventadas); outra, a equiparação de fator de risco com enfermidade; e, por último, a ampliação das margens de enfermidades (que sim o são) aumentando assim sua prevalência. Tudo isso origina intervenções diagnósticas e/ou terapêuticas de duvidosa eficácia e eficiência (del Cura, Isabel; López García Franco, 2008). Fazer medicamentos para pessoas sadias era um velho desejo dos laboratórios farmacêuticos, agora o complexo médico-técnico-farmacêutico, aliado com os meios de comunicação e com o poder político vai além, com a fabricação de enfermidades. Agora a estratégia funciona vendendo não só as excelências do fármaco mas, sobretudo, vendendo a enfermidade. A depressão é um bom exemplo, convertida numa pandemia mundial graças aos antidepressivos. A coisa é simples, buscamos ou criamos um mal-estar (o sintoma), lhe outorgamos um diagnóstico (precoce) e comercializamos um medicamento ou uma nova indicação para um medicamento já em uso (um antidepressivo para a timidez ou um ansiolítico para circunstâncias adversas) ou custosas provas de alta tecnologia completamente desnecessárias. Robert Whitaker, um estudioso do fenômeno do aumento de consumo dos psicofármacos nos EUA, descreve rigorosamente em seu livro Anatomia de uma epidemia a implicação das instituições sanitárias, profissionais e de usuários na elaboração do relato que lhes converteu no tratamento psiquiátrico dominante tanto de transtornos mentais graves como de sintomas comuns de mal-estar psíquico, quando não serviram para a criação de falsas enfermidades. Perguntando-se, e esse é o origem da investigação que dá lugar ao livro, como é possível que os problemas mentais venham crescendo desde os anos 90 do século passado, quando precisamente por essas datas aparecem o que se propaga por associações científicas e autoridades sanitárias como o melhor, mas único, remédio para atendê-los: os novos, supostamente mais eficientes e muito mais caros, antidepressivos, antipsicóticos, estabilizadores do ânimo, estimulantes e muito mais caros, antidepressivos, antipsicóticos, estabilizadores do ânimo, estimulantes e ansiolíticos? (Whitaker, 2015)(Desviat, 2017).

A introdução de novos medicamentos, não necessariamente melhores, mas se muito mais caros nos anos oitenta do século passado, colonizam o discurso psiquiátrico. O fármaco, respaldado pelas Classificações e Protocolos Internacionais das Associações Científicas (infetadas pelo financiamento das empresas farmacêuticas), se converte na bala de prata, na panaceia dos tratamentos do mal-estar, um atalho em conformidade com a cultura da época, pragmática, supérflua e apressada. A psiquiatria se introduz na gestão biopolítica pela vida pelo resquício da insatisfação, do vazio, a vida líquida que descreve Bauman, ofertando soluções aos problemas da existência: do amor, o ódio, o medo, a tristeza, a timidez, a culpa.

Medicaliza-se o sofrimento social – desalojamentos, desemprego, pobreza – e se psiquiatriza o mal; assim quando lemos na imprensa um caso criminoso, vândalo, e se atribuem seus atos a um transtorno mental, experimentamos certa tranquilidade ao imputar como uma questão médica o que é um mal social. Convertido numa questão genética ou de anômala personalidade, não existe a responsabilidade da sociedade na qual convivemos de uma maneira ou outra, sustentamos. Ao fim e ao cabo, não faz tanto que se vinculava cientificamente a criminalidade à degeneração orgânica, hereditária e inscrita no corpo e na mente.

O escândalo do transtorno por déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) é ilustrativo da fabricação de uma enfermidade que multiplicou por centenas de milhares a venda de estimulantes em poucos anos para tratar, na imensa maioria dos casos, comportamentos habituais na infância e adolescência: distrair-se facilmente e esquecer coisas com frequência; mudar frequentemente de atividade; sonhar despertos/fantasiar demasiado, vaguear muito; tocar e brincar com tudo o que veem; dizer comentários inadequados, podem ser diagnosticados de TDH com o aval técnico Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIMH). Estimativas recolhidas por Sami Timimi (Timimi, 2015) sugerem que a aproximadamente 10% das crianças nas escolas dos Estados Unidos se lhes foi receitado ou têm receitado um estimulante. No Reino Unido, a prescrição aumentou de 6000 receitas no ano em 1994 até mais de 450 000 em 2004; um assombroso aumento de 7000% em somente uma década (Department of Health, 2005).

A medicina se converteu numa grande geradora de riqueza, enquanto a saúde e o corpo se convertem num objeto de consumo. Em mãos da publicidade, ou seja dos mercados, a medicina é uma ferramenta de normalização. Entendendo por normal aquilo que ditam os interesses do capital. O que comer, o que vestir, o que tomar, como ou quem nos juntar. As normas padronizadas se multiplicam ao mesmo tempo que avança o processo que Foucault denominou de “medicalização indefinida”. A medicina se impõe ao indivíduo, enfermo ou não, como ato de autoridade, e já não há aspecto da vida que fica fora de seu campo de atuação. O corpo se converte num espaço de intervenção política. Este tempo onde os poderes econômico-políticos se imiscuem e regulam cada âmbito de nossa vida, onde a vida é qualquer coisa menos algo espontâneo.

A atenção da Saúde Mental ao sofrimento psíquico

As mudanças nas formas de gestão e no pensar da época vão repercutir nas respostas técnicas da comunidade psi profissional. Há uma volta à enfermidade como contingência, que reduz ao biológico o mal-estar. O sujeito, sua biografia, fica fora. Protocolos e vade-mécuns substituem uma clínica da escuta, que se pergunte pelo porquê subjetivo, afetivo, social do sofrimento psíquico; uma clínica que busque nas próprias defesas da pessoa formas de superar o padecer. Ao mesmo tempo, a medicalização produz mudanças profundas na demanda de prestações, que não têm por que corresponder com as necessidades da população, mas aos interesses da classe hegemônica.

No esforço por reduzir a psiquiatria ao fato física, à medicina do signo, se estabelecem critérios diagnósticos com alguns signos-fatos-dados escolhidos por consenso ou por votação de alguns poucos que reduzem a complexidade da pessoa. Alguém já não delira com o relacionado com sua própria biografia. O conteúdo do delírio é o “ruído” produzido pela falha neuronal. Não há linguagem, sujeito nem desejo. Somente corpo, enxame químico neuronal. Mas, e eis aqui a insubstancialidade da proposta, é que os dados por si só, como bem sabem os próprios publicistas dos mercados, pouco valem, é preciso interpretá-los. 

A estratégia é óbvia, se trata de homogeneizar, em torno de alguns quantos critérios, uma propedêutica e um vade-mécum comum para diagnosticar e tratar as pessoas acometidas de problemas de saúde mental, em benefício das empresas farmacológicas e tecnológicas. Um único sentido para o mundo. O transtorno mental seria o mesmo na China que na Costa Rica, na Noruega que em Mali, o que facilitaria o mesmo tratamento. Algo tão disparatado, premeditadamente ignorante da antropologia, da idiossincrasia dos povos, que seria irrelevante senão fosse porque a credibilidade de um fato ou de uma visão determinada dos fatos está condicionada ao aval de universidades, centros de investigação e a publicações de grande impacto que costumem depender direta ou indiretamente do financiamento dos mercados.

Muito distanciadas, por outro lado, da realidade da prática assistencial. O que faz dizer a autores como Richard Smith e Ian Roberts: que “a forma em que as revistas médicas publicam os ensaios clínicos se converteu numa séria ameaça para a saúde pública” (Smith and Roberts, 2006).

Entre a aceitação e a resistência

A acumulação irrefreável descrita por Marx se acelerou com o fim do capitalismo industrial e não se sabe qual vai ser o acontecimento que precipitará o choque final prognosticado pelo autor de O Capital, o momento no qual as forças produtivas entrariam em contradição com as relações de produção, nem se esse acontecimento terá lugar. A derrubada disruptiva do fracassado socialismo de Estado em 1989 pareceria ter esgotado, como diz Enzo Traverso(2019), a trajetória histórica do próprio socialismo, dos movimentos que lutaram por mudar o undo com o princípio da igualdade como programa ao reduzir a história toda do comunismo à bancarrota do totalitário regime soviético. Uma queda a qual se unia, além disso, as mudanças profundas nas formas de produção que estavam acabando com o capitalismo industrial, no qual a esquerda forjou sua identidade. As grandes fábricas que concentravam a classe operária onde surgiram os sindicatos e os partidos políticos de esquerda estavam sendo substituídas pelos novos modos de produção do neoliberalismo, a deslocalização, a precarização, a fragmentação e robotização da produção. O sistema de partidos políticos surgidos com a industrialização na confrontação operários-empresários perdeu sua essência política, convertendo-se em aparatos eleitorais. No caso da direita, os empresários, sobretudo a empresa familiar e localizada territorialmente, foram substituídos pelos lobbies financeiros, sem perder a essência de sua identidade: a defesa de seus interesses de classe. No caso da esquerda revolucionária, o resultado foi a perda de um cenário que constituía seu campo de batalha e sua conexão com a esquerda civil. Por outro lado, o fracasso do socialismo autoritário não supôs a construção de um socialismo democrático, como num princípio alguns imaginaram, mas que a queda da URSS supôs a rápida transição a regimes de um capitalismo selvagem, com o nacionalismo como identidade e em muitas ocasiões, infiltrado por criminosas máfias. Algumas das conquistas sociais do socialismo de Estado, como a saúde universal e o pleno emprego, foram derrubada, o que levou em poucos anos à redução da expectativa de vida e a precariedade ou a indigência para boa parte da população. Na outra orelha, um capitalismo sem travas, desalojadas as narrações e utopias do século que acabava, afiançava um presente que se queria sem passado e sem futuro. Não é o fim da história como preconizava Fukuyama, mas o fim da política. O mercado vai substituí-la, num presentismo, onde não cabe a utopia, e portanto, o futuro; nem cabe o passado, perdida a memória, numa história oca, vazia de sentido.

Propunha em Cohabitar la diferencia (Desviat, 2016) que a Reforma Psiquiátrica, cujo primeiro objetivo foi tirar os pacientes mentais dos hospitais psiquiátricos, dos manicômios, e situar serviços de atenção na comunidade, criou em seu devir novas situações, novos sujeitos, novos sujeitos de direitos. A loucura se fez visível e com ela a intolerância, o estigma, a exclusão da diferença. Fez ver que o processo desinstitucionalizador atravessava toda a formação social, desvelando prejuízos e representações sociais que iam muito além do transtorno psíquico, uma reordenação assistencial, e que situavam os alienados juntos com outros da exclusão social. Destapou a parte oculta em nossa sociedade pela ditadura da Razão, da podridão da razão em palavras de Antonin Artaud, na qual os loucos são as vítimas por excelência (Artaud, 1959), um imaginário coletivo povoado dos mitos, as lendas e os sonhos que nos constituem. Nos aproxima ao que em verdade tece o sintoma singular e social, pois o sintoma se forja na história coletiva, nos desejos e medos localizados nos fundos de nossa cultura. Um processo desinstitucionalizador que enfrenta a Reforma da Saúde Mental com a miséria social e subjetiva, num cenário no qual não se pode ser um simples observador, um impotente teórico da marginalização, a alienação e o sofrimento. Onde o fazer comunitário faz do profissional um militante da resistência à ordem social que institui alienação, na miséria, onde a ação terapêutica, necessariamente especializada nos emaranhados técnicos da terapia e o cuidado, se colore politicamente. 

Este estar no comum pelo que se define a saúde mental comunitária supõe considera a população não somente como potenciais usuárias dos serviços, implica adentrar-se nos desejos e frustrações de seus bairros, fazer-lhes cúmplices da gestão de seu mal-estar. O fracasso da medicina social é semelhante ao da política governante que padecemos, e a razão deste fracasso está na ausência de comunidade, dos interesses, aspirações, frustrações e devaneios, das populações que se atende ou se representa. É frequente a existência de políticos que não estiveram nunca nas circunscrições que representam mais além dos dias da campanha eleitoral e é igualmente frequente planejamentos, programas e atividade profissional de saúde mental feitos sem ter pisado o barro ou as calçadas dos bairros que comunitariamente se atende.

Em saúde e mais concretamente em saúde mental falamos de participação, da necessidade de contar com os cidadãos, com as comunidades e os próprios usuários na hora do planejamento e da programação, mas, entretanto, a participação se reduz, se existe, a encontro a nível diretivo com sindicatos para temas laborais e o trabalho comunitário a situar centros de consulta fora dos hospitais. Logo pode nos estranhar que a população não defenda os modelos que mais poderiam lhes beneficiar, de confundir as necessidades reais em suas demandas, de se deixar levar por embustes eleitorais que propiciam a privatização como modelo sanitário, contra uma saúde coletiva que possam fazer sua.

Concluindo. O fato é que hoje, como nunca até agora na história parece que não há um afora do sistema neoliberal, onde o fascismo faz presente a colocação de George Kennan, num informe secreto, hoje acessível, quando aconselhava que tinha “que deixar de falar de objetivos vagos e irreais, como os direitos humanos, o aumento dos níveis de vida e a democratização, e operar com genuínos conceitos força que não estivessem entorpecidos por slogans idealistas sobre altruísmo e beneficiência universal, ainda que estes slogans soem bem, e de fato sejam obrigatórios, no discurso político” (Chomsky, 2000). Uma situação que pode nos conduzir ao “isto é o que há” e ao “vale tudo”. Um “isto é o que há” e nesta situação “tudo vale” ao que se soma a desmotivação por falta de perspectivas profissionais e cidadãos, a renúncia ou a aceitação da derrota. Um “é o que há” e “tudo vale” que nos leva a uma permanente insensibilidade, nos leva a eludir nossa parte de responsabilidade, nossa cega cumplicidade no transcurso dos fatos, nossa parte de culpa. Algo que segundo Cornelius Castoriadis, nos converteu em cínicos profissionais, social e politicamente, pois encerrados em um “nós”, num mudo pessoal privatizado, perdemos a capacidade de atuar criticamente (Castoriadis C, 2011). Talvez o mais frequente, como escrevia no livro antes citado (Desviat: p. 17) é o considerar que o que sucede é o natural da sociedade humana, que foi sempre, a iniquidade, a desigualdade, a competitividade canalha e a desatenção dos mais frágeis, assumindo as funções cosméticas e de controle social que impõe a ordem social; no melhor dos casos cobiçando a consciência profissional e cívica em preservar certas cotas de dignidade, qualidade e eficácia. Porém, resta outra postura, uma opção partisana, militante que trata de manter uma “clínica” da resistência, buscando aliados nos usuários, familiares e cidadãos para conseguir mudanças na assistência a contracorrente e aprofundar as rachaduras do sistema, em prol de um horizonte onde seja possível o cuidado da saúde mental, uma sociedade de bem estar.

O peso da alienação muda quando se é consciente dela. Nessa descoberta, quando o olhar do amo já não fulmina o colonizado, se introduz uma sacudida essencial no mundo, toda a nova e revolucionária segurança do colonizado deriva disso, escreve Fanon em Os condenados da Terra (p. 40).

Uma saúde diferente, uma atenção à saúde mental que se entenda desde o singular até o coletivo, não será plenamente possível, senão numa sociedade diferente. Não podemos saber o que nos reservará o futuro. O socialismo é tão possível como a queda na barbárie. Mas se estamos obrigados, se queremos uma saúde pública universal e equitativa, a desejar e batalhar por uma sociedade que parta da igualdade como eixo central de seu discurso e tarefa; uma igualdade que transcenda a exploração, sem hierarquias de classe nem de gênero, e onde se reconheçam e convivam todas as diferenças; onde todas as fronteiras sejam reconhecidas, respeitadas e franqueáveis. Sem falsas identidades societárias.

Imersos na distopia do neocapitalismo e o auge em seu seio de um novo capitalfascismo, pode parecer uma descomunal utopia, mas podemos nos consolar com o fato que as revoluções chegam quando ninguém as espera.

Artigo originalmente publicado em Viento Sur no dia 13 de dezembro. Tradução de Charles Rosa para a Revista Movimento.

Referências

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