Relato sobre o massacre de Senkata

Assassinatos ocorreram no fim do ano passado na Bolívia.

Gloria Quisbert Ticona 5 nov 2020, 19:17

El Alto, La Paz, 19 de outubro de 2020.

Vou contar um pouco da história do que ocorreu em Senkata em novembro de 2019. Exatos onze meses atrás, perdemos dez de nossos entes queridos num massacre. Mães ficaram sem seus filhos, esposas ficaram sem seus maridos, filhos se tornaram órfãos. Até este momento, estamos em busca de justiça, porque aqui morreu gente inocente, gente que queria ajudar irmãos e irmãs que estavam sendo reprimidos com gás e violência. Trata-se de uma dor que carregamos até agora e não podemos deixar isso cair no esquecimento. Entre os 10 falecidos, estão Calixto Huanacu Aguilar. Milton Zenteno Gironda. Edwin Jumachi Paniagua (38). Ruddy Cristian Vásquez (23); Juan José Tenorio (23), Antonio Ronald Quispe (23), Pedro Quisbert Mamani (37), Clemente Mamani Santander, Devi Posto Cusi (31), José Colque Patty (22). É muito doloroso e lamentável contar esta história, mas mesmo assim não deixamos de recordá-la até hoje. Nós, enquanto vítimas de violações de direitos humanos que nos fizeram neste dia, nós não conhecemos o lugar exato onde eles faleceram, sabemos que estavam na Igreja de Senkata (Igreja de São Francisco de Assis – 25 de julho). Neste lugar, estavam três corpos, cujas fotografias começaram a circular pelas redes sociais. Por este meio, chegamos a saber o que tinha acontecido com nossos irmãos que deram a vida pela Pátria. Seus corpos estavam tapados com bandeiras whipala, não apenas feridos, mas já falecidos. Eram jovens que estavam na luta e deram sua vida pela vitória do povo. Entre eles, estava meu irmão, Pedro Quisbert… [interrupção emocionada]. Bem, nesse 19 de novembro, não houve nenhuma ajuda médica, nenhuma ambulância, o povo altenho teve que se defender sozinho dentro das suas possibilidades.

Já havia irmãos mortos e outras dezenas de feridos. Hoje, outubro de 2020, peço que isso tenha uma divulgação internacional e que, assim, nós possamos alcançar uma justiça que nunca tivemos. Trataram-nos como “terroristas”, “traidores”, “alcoólatras”, “bandoleiros”, “mal-intencionados”, “criminosos”, palavras que doem, pois os companheiros que faleceram não eram isso. Pelo contrário, eram esposos que deixaram viúvas e pais que deixaram órfãos. Nesse mesmo dia, houve três feridos – Clemente Eloy, Rudi Christian Vázquez, David Centeno – que foram ao hospital e não tiveram plena ajuda médica, porque os médicos discriminavam os “masistas” ou porque não tinham dinheiro para pagar o atendimento. Assim, alguns companheiros morreram, depois de esperar horas pelo atendimento que não veio. Outros companheiros se concentraram na Igreja durante a noite do dia 19, e quando o dia seguinte amanheceu, já se contabilizavam seis mortos no local. Era uma quarta-feira, e durante todo o dia era possível ouvir o grito do povo de El Alto exigindo justiça. Durante a autópsia, os legistas não queriam registrar as seis mortes “por bala”, outra violação grave a nossos direitos humanos. Os médicos forenses, sem nenhuma compaixão, queriam colocar outros motivos para a morte, mas graças à luta das mães e esposas tiveram que registrar “morte por arma de fogo” na certidão de óbito. Eu e outras pessoas acompanhamos o processo de autópsia, eu tive que ver o crânio arrebentado de meu irmão, atingido por uma bala.

Os companheiros assassinados tinham entre 23 e 30 anos de idade, ou seja, em sua maioria jovens estudantes. Hoje em dia, recordamos este momento com muita dor e emoção. Em 20 de novembro, depois da autópsia, os corpos saíram nos caixões até a Ponte de Senkata, onde se realizaram um cabildo (assembleia) e uma missa em memória dos caídos que deram sua vida. Depois nos dirigimos até Praça 25 de Julho com os corpos. Mesmo na noite do dia 20, seguia havendo muitos militares nas ruas e helicópteros nos céus de Senkata, enquanto chorávamos em cima dos caixões e pedíamos justiça. Em 21 de novembro, descemos até a cidade de La Paz em manifestação, ainda com os corpos nos caixões brancos. Embora estivéssemos arrasados emocionalmente, pudemos contar com o apoio moral do povo de El Alto. A manifestação em La Paz também foi reprimida pelas forças policias, com gás lacrimogêneo. Eles não respeitaram nem os corpos! Eu lembro que eu estive do lado do caixão do meu irmão o tempo todo, mas não pude resistir às bombas de gás jogadas em nosso rosto e tive que ser internada inconsciente no Hospital de Clínicas Geral. Lá, segundo alguns companheiros me contaram, os atendentes quiseram me fazer desaparecer e, às 8 da noite, meus companheiros me retiraram do hospital, ainda inconsciente.

Nos dias seguintes, os corpos dos falecidos foram finalmente enterrados em distintos cemitérios de La Paz. É uma dor imensa a que carregamos até hoje [interrupção emocionada]. Lembro-me das dezenas de familiares levando flores aos túmulos, das viúvas com os órfãos nos braços… Rebaixaram toda a nossa auto-estima. A partir dali, tivemos que passar o Natal, o dia dos pais e todas as outras datas festivas sem a presença de nossos entes queridos. Duas das viúvas estavam grávidas de 5 e 7 meses, ou seja, seus filhos já nasceram em 2020 sem conhecer os pais. Quando estes anjinhos crescerem no futuro, eles entenderão como boa parte de sua vida foi destroçada no massacre. Outras pessoas que vêm sofrendo bastante são os pais que criaram seus filhos, os  colocando na luta pelos seus direitos, e agora choram suas perdas. São várias as dores de criar um filho sem pai, de recordar o martírio de nossos companheiros! Mesmo assim, desde o dia do massacres, buscamos seguir a vida, sem esquecê-los. Em 5 de março, fizemos uma homenagem em Senkata, uma missa em rememoração aos caídos de Senkata. Novamente fomos reprimidos neste dia com bombas de gás pela polícia. Não podemos viver um dia com tranquilidade nem caminhar livremente. Inclusive nos proibiram pisar na Plaza Murillo em La Paz. Em 18 de setembro, exatos dez meses depois do massacre, nossa companheira, viúva e vice-presidente da entidade dos familiares dos desaparecidos, e representantes dos Direitos Humanos foram detidos pela polícia. A repressão neste dia foi muito forte em El Alto, familiares foram golpeados e levados ao chão pelos agentes policiais. Não é fácil esquecer esta dor, pois eles mesmos fazem questão de tempos em tempos nos fazer lembrar desta dor. Os militares se recusam a admitir sua responsabilidade no assassinato de nossos irmãos. Cinicamente, eles dizem que nós mesmos os matamos, e isso não é verdade. Nós, como povo humilde, só podemos nos defender com nossos poucos recursos, talvez com unhas, paus e pedras, mas não temos armas, nem nada letal, ao contrário do que eles nos acusam. Eles, sim, têm armas, mas jamais dirão a verdade, jamais admitirão que mataram nossos companheiros. Nas comissões de inquérito, eles nos incriminam, eles denunciam que a gente queria queimar a fábrica de Senkata, atentado contra centenas de vidas, e isso também não é verdade. Em 19 de novembro, nas horas que eles nos acusam de tramar contra a planta de Senkata, já havia dezenas de feridos e até mortos. Dói muito no coração ouvir que só morreu quem queria depredar a fábrica. Isso é uma grande mentira! O único companheiro morto na manhã de 19 de novembro estava voltando de seu trabalho e foi baleado um pouco antes do meio-dia. Os nove falecidos restantes morreram todos à tarde e à noite, a partir das 16h até a madrugada do dia seguinte, quando  seguia o cerco militar. Este pesar em cada um de nossos corações não passa. Outro fato doloroso de recordar é os feridos por disparos durante o massacre, ao irem ao hospital, tiveram que escutar dos plantões médicos: “vocês receberam grana para protestar, agora aguenta a dor ou procure o papito Evo para se curar”. Todos os nossos direitos básicos foram desrespeitados, os doutores tinham a obrigação de nos atender dignamente, independentemente da coloração política do paciente. Inclusive gente que estava simplesmente de passagem, saindo de seu expediente de trabalho, foi atingida pela repressão. Há o caso, por exemplo, de Clemente Santander, um senhor que estava levando sua esposa gestante ao controle pré-natal e foi assassinado na frente dela. Outro rapaz (Pedro Quisberg) estava numa esquina, comprando pãezinhos, depois de sair da fábrica Polar, às 16:54, e também foi morto pelos militares, deixando três filhos órfãos e outro em estado de gestação. Pessoas que estavam no lugar sem saber o que estava, de fato, acontecendo. Há também mulheres fortemente feridas por disparos nas pernas, nos peitos, nos braços. Há, inclusive, jovens que até hoje convive com balas alojadas no corpo desde o dia do massacre. Um caso bem conhecido é de um rapaz que não tinha dinheiro para fazer a cirurgia de remoção da bala na perna, e só depois de muita comoção e exigência dos familiares o Ministério da Saúde autorizou a retirada. Durante dez meses, ele teve que suportar a dor, durante dez meses eles se recusaram a tê-lo como prioridade, durante dez meses a bala ficou na sua perna… E há outros feridos que seguem com muita dor e cicatrizes de balas. Mesmo assim, todos nós continuamos a batalha e seguiremos adiante, porque eles dispararam contra os nossos familiares e contra a gente em Senkata e na Zona Sul, outro lugar onde houve dois falecidos e dezenas de feridos pela repressão brutal da polícia.

Como eu já disse, é muito dolorosa a situação em que vivem tanto a Associação de Familiares dos Falecidos, Feridos e Feridas em 19 de Novembro quanto os feridos pela repressão de 11 de novembro em Sierra del Alto. Os militares dispararam contra gente de seu mesmo sangue, de sua mesma raça, porém eles jamais vão admitir por conta própria que eles fizeram isso. Assim, o nosso pedido internacional é que vocês nos ajudem a pedir justiça pelos caídos. Isso não pode ficar no esquecimento! Nós e vocês somos irmãos de sangue, somos a mesma gente de luta. Hoje isso nos tocou, amanhã talvez pode acontecer com vocês. Não podemos seguir permitindo novos massacres, como em outubro de 2003 e agora em outubro/novembro de 2019. Isso não pode voltar a acontecer, esse medo que nos deixaram e essa dor que deixaram no coração dos familiares e feridos/as, com sequelas dentro do peito. A única certeza que temos é que não esqueceremos jamais esta dor que já dura onze meses. Ni olvido, ni perdón para o que aconteceu em novembro de 2019.


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