Eleições 2024: o mito do “identitarismo” e o engajamento dos radicais
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Eleições 2024: o mito do “identitarismo” e o engajamento dos radicais

A ideia de “identitarismo” e seu papel nas últimas eleições

Frederico Henriques 30 out 2024, 15:10

Imagem: Blue Abstract Art (Autlyx-Art)

Nos últimos dias, tem me incomodado a análise feita pela imprensa e por setores tanto da direita quanto da esquerda sobre as eleições municipais de 2024, especialmente em São Paulo, onde o candidato do PSOL, Guilherme Boulos, manteve a votação que havia conquistado em 2020. O centro das críticas, de modo geral, gira em torno da ideia de “identitarismo”.

De um lado, a direita e setores dominantes da imprensa tratam temas como encarceramento, direitos reprodutivos das mulheres, a causa Palestina e a legalização das drogas como “pautas identitárias”, associando-as a um “radicalismo” de Boulos que o afastaria do eleitorado de centro e de uma política mais “geral”. De outro lado, setores da esquerda tentam vender essas pautas como particulares e distantes de um ideal universal que atingiria a grande massa da população paulistana.

Neste breve texto, pretendo desconstruir esses argumentos que destacam essas pautas como responsáveis pela derrota de Boulos, e, ao contrário, mostrar que é exatamente o radicalismo desta vanguarda que pode fazer o projeto da esquerda romper com as bolhas impostas pela ordem vigente.

O uso do termo “identitarismo”

Aqui, não pretendo discutir o conceito de identitarismo, termo que ganhou peso tanto à direita quanto à esquerda nos debates públicos recentes, mas sim explorar os usos políticos e a apropriação desse termo no Brasil e fora dele.

O identitarismo europeu é uma ideologia recente, impulsionada especialmente pela extrema-direita em países como França, Alemanha e Áustria. Defensores dessa ideologia alegam que a “identidade cultural” europeia está ameaçada pela imigração, especialmente de regiões do Oriente Médio e da África. Sob o pretexto de proteger uma identidade exclusivamente branca e cristã, essa ideologia, chamada “etnopluralismo”, defende que cada cultura deve permanecer em seu território de origem, rejeitando a convivência multicultural.

Esse movimento encontra eco entre jovens europeus de classe média, que usam uma linguagem moderna e uma estética atrativa para recrutar novos membros por meio de redes sociais e fóruns online. A estratégia é reformular o chauvinismo europeu, tentando mascarar seu caráter excludente com uma roupagem “intelectual” e “culturalista”. Assim, o identitarismo europeu apresenta-se como um nacionalismo modernizado, que busca atrair jovens para defender a “identidade europeia” como uma forma de resistência cultural, mas de fato mascarando a estruturação do neofascismo.

No Brasil, o termo “identitarismo” foi usado de forma pejorativa para reduzir as conquistas de representatividade de setores subalternizados. Assim, o avanço das mulheres, da população negra e da comunidade LGBTQIA+ vem sendo classificado como pautas “particularistas”, mesmo quando tais grupos constituem a grande maioria da população brasileira. As mudanças que esses grupos demandam têm, na verdade, caráter universal: buscam uma sociedade mais justa e igualitária para todos.

Então por que esse termo tem sido usado de forma exacerbada nestas eleições como forma de desvalorizar essas pautas o tempo todo?

A contradição nas eleições

Nesta parte, pretendo mostrar como os três principais setores — bolsonarismo, esquerda e centrão — engajados nesta eleição armaram suas estratégias e como isso pode ser analisado sob o prisma do debate sobre identidades. Acredito que esta análise pode trazer algumas reflexões iniciais.

O bolsonarismo adotou uma estratégia que vem se consolidando nos últimos anos: engajar e fortalecer sua base, marcada por discursos relacionados à segurança pública e ao ódio a minorias sociais. Com isso, aproximaram setores conservadores das igrejas neopentecostais e políticos tradicionais que buscam seus próprios interesses de manutenção e reprodução de mandatos, cargos e emendas no Estado.

Talvez o exemplo mais evidente desse fenômeno seja em São Paulo. Não apenas porque Marçal quase chegou ao segundo turno — algo visto também em outras capitais —, mas porque o engajamento da base bolsonarista resultou até em um distanciamento da própria figura de Bolsonaro. Essa base apoiou não o candidato do governador Tarcísio, mas um novo aspirante: Marçal.

Por sua vez, os candidatos de centro, de maneira geral, apoiaram-se no uso da máquina pública, como sempre fazem nos processos eleitorais, e em uma política conservadora, em virtude do alto nível de rejeição à esquerda, especialmente ao PT, nos últimos anos. As exceções a essa regra ocorreram nos estados onde o adversário no segundo turno era a extrema direita, como em Belém, onde setores de esquerda e do PT garantiram a vitória dos Barbalhos. Porém, é possível observar que o discurso de “não ir aos extremismos” e fazer política com a extrema direita ficou evidente na vitória de Nunes, que, na noite de domingo, declarou que governaria para todos. Por trás de um discurso abrangente, a prática política revela uma normalização da extrema direita e uma aceleração dos processos de privatização.

Por fim, vale ressaltar as escolhas da esquerda em geral. Houve um processo de adaptação, em que tentaram ocultar pautas históricas e normalizar a extrema direita, aceitando seu vocabulário e as políticas que propõem. Aceitar a sabatina de Marçal e incorporar debates como o empreendedorismo popular e a militarização da segurança pública foram características dessa eleição em São Paulo.

Com a justificativa de que setores mais à esquerda — assim como coletivos de negritude, mulheres e LGBTs — votariam de qualquer forma, a esquerda abandonou pautas caras a esses grupos radicais, como o debate sobre criminalização da pobreza, racismo, machismo e defesa da Palestina. Essa estratégia parecia visar um discurso ao centro; no entanto, não conseguiu atingir o centro, que já foi colonizado pela direita, e ainda provocou um processo de desengajamento nesses setores da vanguarda. Embora continuem a votar, esses setores já não o fazem com o mesmo entusiasmo. Essa diferença é visível entre as campanhas de Boulos em 2020 e 2024.

Portanto, o que deveria ser feito era exatamente o oposto. Assim como a extrema direita, a esquerda deveria se fortalecer junto a esses setores radicais — compostos por negritude, mulheres e LGBTs — e, a partir de suas pautas, empurrar o debate político à esquerda, buscando deslocar setores insatisfeitos com a condução da política cotidiana. Considerar esses setores como a vanguarda da esquerda e elementos fundamentais para mudar a agenda política do país é o primeiro passo para reverter essa situação. Um bom exemplo foi o PL 1904 deste ano, em que uma pauta difícil de debater, como o aborto, obteve um avanço significativo em favor da esquerda, graças à mobilização das mulheres.

Nos Estados Unidos, por outro lado, vemos que a juventude, ao se engajar na pauta da Palestina, não se mobiliza em torno das propostas concretas dos democratas para as eleições, mesmo com Kamala Harris alcançando a maior arrecadação da história do partido.

É fundamental entender que o centro político não é moldado por uma política abstrata, mas pelas condições concretas da vida do povo e pela luta política mais ampla. Assim, apoiar-se na vanguarda dos movimentos sociais com o objetivo de arrastar o centro para uma agenda política à esquerda deve ser a nossa tarefa central. Afinal, a extrema direita já faz isso com sua própria vanguarda; é na arena política que a esquerda deve construir uma nova correlação de forças no país para o próximo período.

Por fim, é importante entender por que vários setores insistem em desqualificar as pautas de mulheres, negritude e LGBTs como secundárias ou particularistas, enquanto a direita e os setores hegemônicos as rebaixam justamente por reconhecerem que essa vanguarda carrega ideias radicais de transformações estruturais na sociedade. Dessa forma, buscam mantê-los subjugados a uma esquerda “comportada”. Os setores de esquerda que desqualificam essas pautas temem o surgimento de novas lideranças e movimentos que possam desbancar sua posição de poder ou privilégio. Para ambos, o avanço desses setores não interessa; porém, para uma esquerda radical e combativa, esses setores devem ser a propulsão para transformações profundas na nossa sociedade.


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Camila Souza