Nova crise hídrica e a luta contra a mercantilização da água: presente e futuro em disputa
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Nova crise hídrica e a luta contra a mercantilização da água: presente e futuro em disputa

Uma abordagem ecossocialista.

Marcela Durante e Mônica Seixas 8 set 2021, 17:57

Enquanto Dubai estava produzindo tempestades artificiais para tentar amenizar a onda de calor que assola a região, os chineses viviam em julho a pior chuva dos últimos mil anos, segundo autoridades meteorológicas do país. Com centenas de carros submersos e pessoas encurraladas por inundações no metrô, o nível de precipitação esperado para um ano foi concentrado em apenas 4 dias, deixando um cenário dramático de ao menos 33 mortos com milhares de desaparecidos e desabrigados e mais de 1,2 milhão de pessoas afetadas até este momento. China e Taiwan ainda sentem os efeitos dessas fortes chuvas e ventos. Os transtornos causados pela emergência climática afetaram recentemente não só países da Ásia e África, mas também da Europa como Alemanha, Bélgica, Holanda, Suíça e França. Enquanto o Brasil enfrenta uma frente fria histórica, Canadá e noroeste dos EUA encontram-se em uma “Cúpula de Calor” que ultrapassou os 49ºC, levando a centenas de óbitos, afetando a vida marinha e colocando diversos ecossistemas em altíssima vulnerabilidade.

Não à toa a gestão das águas tem se tornado um tema prioritário na agenda internacional pela constatação de que a água é um recurso natural do qual as atividades econômicas e sociais dependem, assim como o equilíbrio das funções ecossistêmicas. A mercantilização da água já é uma realidade cada vez mais presente nos municípios Brasil afora, colocando esse bem comum como mais uma mercadoria a favor dos lucros da especulação do capital.

Exemplo desse processo histórico é que o Brasil vive desde maio deste ano a primeira Emergência Hídrica de sua história. Com 12% das reservas de água doce do mundo, o país vive risco de desabastecimento de água, prolongado e agravado por uma conjunção de fatores: falta de chuvas causadas pela emergência climática e desmatamento, inversão das prioridades na lógica de segurança hídrica, exploração predatória de ecossistemas, além do agravo com a ausência de um plano estratégico ecológico em todos os níveis. Em 2021, o governo federal emitiu pela primeira vez na história um alerta a nível nacional anunciando a crise hídrica e elétrica que está em curso. Isso no mesmo ano em que a ONU alertou que a seca pode ser a próxima pandemia, em uma escala que rivalizará com a pandemia de Covid-19.

Segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), aproximadamente dois terços da Terra estão cobertos de oceanos de água, no qual cerca de 97% do total no planeta é salgada e, portanto, imprópria para o consumo. Restam assim pouco menos de 3% sob a forma de água doce, mas destes mais de 2,5% estão congelados na Antártica, no Ártico e em geleiras, indisponíveis para uso imediato. Os números demonstram a dimensão e relevância do nosso papel no cenário internacional, assim como traz também a dimensão dos problemas socioambientais e políticos que enfrentaremos no próximo período, caso não haja uma ruptura com lógica predatória de exploração dos recursos a qualquer custo.

A floresta amazônica hoje é conhecida por emitir mais gases do efeito estufa do que capturá-los, uma completa inversão das funções ecológicas desse bioma. É sabido que o desmatamento desenfreado tem vários efeitos sobre  a chuva, desde seu regime até o escoamento da água pela paisagem, que dá origem às enchentes. Acontece que mesmo que freássemos todo o desmatamento da Amazônia hoje, ainda assim, sofreríamos graves consequências pelos danos e desequilíbrios causados até aqui. Assim, barrar Bolsonaro, João Doria e seus projetos privatistas e ecocidas é prioritário.

Os ecocidas devem ser responsabilizados pela crise. Os legados de Ricardo Salles e Bolsonaro aprofundaram a deterioração da Amazônia, Pantanal e Cerrado, bioma este que é berçário das águas e que passa por forte desmatamento com ressecamentos dos aquíferos que nutrem rios, planícies e demais biomas brasileiros. Na verdade, o Brasil é altamente vulnerável à emergência climática, especialmente em relação à adaptação aos extremos climáticos – secas e chuvas intensas – por ser extremamente dependente dos recursos hídricos para produção de energia elétrica, de alimentos e abastecimento urbano. Na Amazônia, uma pastagem limpa escoa a água da chuva, pela superfície e entre os igarapés, até vinte vezes mais que em florestas intactas ao lado. A frase “Sem Amazônia, Sem Água” nunca foi tão real e próxima da nossa atual realidade. Sem floresta, não há água, tampouco segurança hídrica.

A transversalidade do tema água é ampla e necessária, tendo suas implicações em outras áreas como saúde pública, planejamento urbano, energia, agricultura e segurança alimentar e nutricional, energia, educação, dentre outras. É importante ressaltar que a Emergência Hídrica está nos levando a uma grave crise energética. Essas crises, combinadas às ondas de privatização, vem afetando setores hídrico, energético, saneamento, mas também vários outros ramos que prestam serviços essenciais à sociedade. Detentora de 30% da geração e 45% da transmissão, a privatização da Eletrobrás também provoca o questionamento sobre a quem interessa entregar esse setor vital para a vida dos brasileiros. Isso resultaria na formação de mais oligopólios, que vão na contramão das reais necessidades dos brasileiros. Enquanto 22% provêm de termelétricas, 65% da energia produzida no Brasil é proveniente de usinas hidrelétricas, o que demonstra nossa enorme dependência da água, clima e regime de chuvas. No Brasil, quando tratamos de uma crise energética, tratamos necessariamente sobre a gestão das águas, onde carece de regulamentação e implementação de políticas públicas para o controle social pela população.

O baixo nível d’água reduziu a capacidade de geração de energia elétrica por meio hídrico, demandando um uso mais intensivo das demais fontes, como usinas termelétricas – que possuem um custo operacional mais alto, além de serem muito mais poluentes. Acontece que esse panorama já repercutiu no bolso da população, pois desde o início do mês de maio estamos sob a bandeira vermelha que representa um dos níveis mais elevados de tarifa de energia elétrica. Tarifa essa que só tende a subir ainda mais até o final do ano. O conhecimento de possíveis cenários futuros climático-hidrológicos e de suas incertezas vêm sendo explicitados por cientistas de diferentes áreas. Invertendo a lógica do lucro, isso permitiria estimar e atender às demandas hídricas futuras, definindo as políticas ambientais de uso, planejamento e gerenciamento hídrico com controle popular e democrático. É nítido que não há interesse por parte do capital e autoridades governamentais em implementar políticas públicas para lidar com a adaptação climática e segurança hídrica, tampouco inverter a lógica desse sistema.

Outro fator importante é que a Bacia do Paraná já se encontra em crise hídrica, situação que é reconhecida pela ANA. A Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) está, em boa parte, integrada à Bacia do Paraná. Portanto, tecnicamente, já estamos enfrentando uma crise hídrica na RMSP, cuja tendência é se estender até 2022 pelo menos, já que os prognósticos climáticos indicam que teremos uma primavera e um verão menos chuvosos. O crescimento populacional, a tendência estadual e nacional de mercantilização das águas e a emergência climática têm agravado essa situação e limitam a segurança hídrica de uma população de quase 21 milhões de habitantes. 

Fato é que a situação hídrica é preocupante em diversas regiões do país. Por exemplo, o Sistema Cantareira é o maior reservatório de água da região metropolitana e abastece cerca de 7,5 milhões de pessoas por dia, 46% da população da Grande São Paulo, segundo a ANA, órgão que regulamenta o setor. Este mesmo sistema, que antes da Crise Hídrica de 2014-2015 ainda atingia 100%, agora  pode terminar o ano com apenas 30% de sua capacidade. O Alto Tietê também teve déficit no volume de chuvas em relação à média histórica. Somados, Cantareira e Alto Tietê abastecem mais de 12 milhões de pessoas na RMSP. No entanto, a Sabesp nega risco de abastecimento neste momento, mas não fala sobre risco em 2022. Se esquiva do debate aberto com a população, mantendo a sete chaves seu diálogo com o governo do estado e demais interessados do setor privado. Mesmo negando, essa Companhia já está aumentando progressivamente o racionamento de água à medida que o reservatório vai baixando, o que mantém os acionistas da bolsa de valores ainda interessados nessa empresa que, por enquanto, é de capital misto. Evidenciando o racismo ambiental, os racionamentos são concentrados em regiões periféricas e entendidas pelo governo como de “difícil acesso”. Além disso, afirmam que o Sistema Cantareira está muito mais bem preparado para enfrentar a crise deste ano quando comparado ao período de 2014-2016. Fato é que os dados oficiais sobre abastecimento dos reservatórios não demonstram o mesmo otimismo no prognóstico.

Semanalmente chegam até nós, via mandato e militantes, relatos diversos que tratam da falta de abastecimento de água – ou sua má qualidade – em diferentes regiões, tanto na capital e RMSP quanto no interior do estado. Há denúncias de falta d’água em Itu – onde pessoas ainda ficam de 3 a 4 dias sem um pingo na torneira –, São Carlos, Araraquara, Bauru, Osasco e bairros periféricos de todas as zonas da capital de São Paulo. E quando chove, enchentes se alastram e destroem tudo no entorno. Isso preocupa quando pensamos na situação dos mananciais, vulnerabilidade socioambiental e abastecimento de água para as populações mais vulneráveis. Os rios e mananciais estão secando e a água chega barrenta na torneira dos trabalhadores e mães chefes de família, afetando a qualidade de vida especialmente de mulheres, negros, indígenas, caiçaras, quilombolas, periféricos e pessoas em situação de rua.Em momentos de crise, o racismo ambiental é escancarado e aprofundado.

Mas foi em 27 de maio deste ano que o Sistema Nacional de Meteorologia (SNM), coordenado pelo Instituto Nacional de Meteorologia (INMET, órgão ligado ao MAPA), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (CENSIPAM), com a participação de todos os órgãos federais ligados à meteorologia, ANA e o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (CEMADEN) emitiram um alerta de Emergência Hídrica associado à escassez de precipitação para a região hidrográfica da Bacia do Paraná que abrange os estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná para o período de Junho a Setembro de 2021.

A escassez hídrica na RMSP não é algo recente. Entre 1950 e 2014, foram ao menos sete episódios de escassez intensa, conforme apontam especialistas e cientistas da área. Contudo, é a primeira vez que um alerta nacional de Emergência Hídrica, com esse caráter, é emitido. Motivo que deve preocupar e muito as instituições governamentais, indústrias, mas principalmente as camadas mais vulneráveis da sociedade civil, que já sofrem as consequência de aumento nas tarifas de água e luz. No próximo período, enquanto as tarifas tendem a ficar mais caras, a insegurança hídrica tende a se instaurar, afetando ainda mais dramaticamente populações em alta vulnerabilidade socioambiental. Com a privatização das companhias de saneamento básico e da Eletrobras, corremos um grave risco de viver uma nova crise hídrica e uma onda de apagões, como ocorreu em 2001.

Mas se água é vida, precisamos cuidá-la e distribuí-la melhor. Devido à emergência climática em curso, reduções no volume anual de chuvas não são situações raras e devem ser prioritariamente consideradas no planejamento do sistema de abastecimento não só do município de São Paulo e RMSP, mas do estado como um todo, atendendo as pessoas em situação de alta vulnerabilidade nas áreas rurais e periféricas.  Em todas as esferas presentes no estado de São Paulo, falta transparência, responsabilidade e compromisso por parte do setor público em cobrar os verdadeiros culpados pela atual crise ecológica e hídrica: bilionários ligados às grandes indústrias do capitale a agropecuária.

Se, por um lado, o tempo vem se mostrando cada vez mais seco há muitos meses, por outro, há uma forte tendência à privatização das companhias de água e esgoto. Nesse contexto, a ALESP aprovou o PL 251/2021 que propõe – de forma autoritária, tecnicamente desqualificada e sem diálogo algum com a sociedade civil ou órgãos relacionados – a regionalização do saneamento básico utilizando estritamente o critério econômico, a fim de satisfazer as demandas das grandes empresas interessadas no setor. Sendo um passo decisivo para entregar o setor de saneamento à iniciativa privada, o governador João Doria sancionou o PL 251, promulgado como Lei 17.383/2021, afirmando que a medida garantirá a universalização do saneamento básico no estado, mesmo que sem citar como isso se dará na zona rural ou em áreas periféricas onde há ocupações irregulares. Qual interesse uma empresa privada teria em fornecer os serviços básicos em regiões distantes, periféricas ou sem infraestrutura? Nenhuma! Não haverá universalização do saneamento básico se entregarmos à iniciativa privada. Sem esquecer que foi aprovado nacionalmente no ano passado o já mencionado Novo Marco Legal do Saneamento. Uma sucessão de projetos privatistas muito bem articulados.

Vivemos uma onda de privatizações dos setores essenciais à sociedade brasileira e paulista. Enquanto o sudeste do país enfrenta a maior crise hidrológica dos últimos 91 anos, a imprensa vem mostrando que o governo de SP contratou uma empresa ligada ao Banco Mundial para analisar a privatização da Sabesp. Em entrevista ao Valor, o ex-ministro Henrique Meirelles, que hoje está à frente da Secretaria de Fazenda do governo João Doria (PSDB), disse que “muito provavelmente” o trabalho ficará a cargo do IFC (International Finance Corporation). Já Paulo Guedes comemorou recentemente o elevado consumo de energia elétrica, afirmou que está “bombando” e disse ter prognósticos muito otimistas para a economia ainda neste ano. Se a arrecadação e a economia encontram-se em um cenário tão positivo, por que ainda temos mais de 19 milhões de brasileiros passando fome? Por que o estado mais rico do país não consegue garantir a universalização do tratamento de esgoto e acesso à água? É hora de taxar grandes fortunas, enfrentar corporações e buscar alternativas populares para estas crises que se somam. Sem perspectiva alguma de fim, as crises só se aprofundam. Guedes, ministro da economia de Bolsonaro, prometeu também que a nova lei do saneamento promoverá a universalização do saneamento básico, garantindo a milhões de brasileiros acesso ao tratamento de água e esgoto.

No entanto, sabemos que essas novas legislações do saneamento aqui mencionadas são estimuladas e elogiadas prioritariamente por agentes ligados ao mercado financeiro, atraindo a iniciativa privada para o saneamento e gerando lucro aos empresários. A suposta solução de impor participação do setor privado na prestação de serviços é o caminho da precarização e aumento das tarifas dos serviços, processos historicamente conhecidos e que se repetem. Em geral, quando isso acontece é devido à restrição de acesso ao crédito por parte do prestador público e pressão externa relacionada a políticas econômicas e fiscais para ceder espaço para as concessionárias privadas. Nota-se que a Lei 17.383, da regionalização do saneamento em São Paulo, é a implementação do Novo Marco Legal do Saneamento a nível estadual, fazendo do estado mais rico do país um grande laboratório da mercantilização da água. Resta indagar novamente: quem ganha com a privatização?

No nosso mandato, tivemos a oportunidade de questionar o governador de SP e a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente (SIMA)  sobre qual a estratégia para frear a crise hídrica e elétrica que se aprofundará nos próximos meses. No entanto, o Governo do estado e a Sabesp afirmam que “estão tranquilos” quanto ao abastecimento de água das regiões metropolitanas, em especial a de São Paulo, embora estejam recomendando ações para conscientização da população para reduzir o consumo individual. Ao passo que o desafio cresce com as perspectivas de aumento da demanda de água em 40% até 2030, segundo dados da UNESCO.  É preciso aprimorar o sistema de gestão participativa e controle social das águas, visando inverter a sua lógica de lucro para garantir o atendimento à demanda crescente de um recurso limitado em quantidade nos territórios e, muitas vezes, impactado em qualidade por atividades antrópicas predatórias, frequentemente ligadas a grandes indústrias. É o caso do agronegócio: utilizam grande parcela da água doce nacional, envolvendo atividades poluidoras em larga escala como pulverizações aéreas, que comprometem nossos rios, a saúde coletiva de trabalhadores rurais e comunidades tradicionais.

Todas as previsões de climatologistas apontam para a continuidade da escassez de chuvas até o final do primeiro semestre de 2022, em função de dois fenômenos: o incontrolável embora previsível La Niña e a mudança do regime de chuvas no Sudeste brasileiro em razão do desmatamento amazônico que reduz as massas de água nos Rios Voadores. Entretanto, é uma completa irresponsabilidade por parte das autoridades governamentais não dar a devida transparência à crise e depender da iniciativa privada e do regime de chuvas – ou de São Pedro, como costumam invocar– para garantir a segurança hídrica da nossa população. O déficit de chuvas atual, segundo o comitê de órgãos do governo, é considerado severo. Se água se planta, a única forma de reverter esse cenário seria com implementação de políticas públicas de reflorestamento em massa, restauração de ecossistemas, com recuperação das nossas florestas e biomas em todos as escalas: local, regional, estadual e nacional.

Não é de hoje que o abastecimento humano de água conflita-se com os interesses do mercado. Dados de 2018 apontam que cerca de 844 milhões de seres humanos neste planeta não tinham acesso à água segura, conforme dados da WaterAid. Uma de suas causas é que múltiplos são os usos da água doce, competindo eles, portanto, entre si na lógica neoliberal capitalista. Entre os setores da economia, a agropecuária é o que possui maior demanda hídrica. Cerca de 70% da água doce retirada dos mananciais no mundo é destinada para ela, com destaque para as práticas da irrigação e manutenção de gado. No ranking global, é seguida pelas indústrias, que utilizam aproximadamente 20% da água doce disponível. E, por fim, somente 10% da água doce captada ou extraída é consumida pelo setor doméstico conforme apontam os dados da FAO para esse ano.

Diante de uma crise social e ecológica sem precedentes causadas pela exploração da natureza baseada na lógica predatória intrínseca ao capitalismo, não se trata de uma crise com saídas simples ou individualizadas. É inadmissível a proposta do governo do estado de São Paulo de recomendar pequenas ações individuais da população (“banhos mais curtos”), enquanto vemos pouca ação por parte do poder público para agir e ter responsabilidade socioambiental diante da gravidade do cenário. Em tempos de mudanças ambientais globais, o conceito de “segurança hídrica” tem surgido como forma de orientar a gestão dos recursos hídricos a resultados efetivos em termos de garantia de disponibilidade de água para os usos múltiplos que atenda às expectativas da sociedade, além de protegê-la contra os efeitos negativos dos eventos hidrológicos extremos.

As relações econômicas e sociais deveriam ser pautadas com base nas relações ecológicas, e não ao contrário. O drama da enchente recorde na Amazônia e a seca no Centro-Sul brasileiro nos trazem lições valiosas que precisam ser apreendidas. Primeiramente, ambos os eventos são consistentes e pertinentes com as previsões para mudanças climáticas associadas à intensificação do aquecimento global. Além da necessidade de combater Bolsonaro e o Bolsonarismo, responsável pelas elevadas emissões que os sucessivos recordes de desmatamento vêm causando, a floresta precisa estar em pé para conseguir manter diversos outros serviços ambientais e bens comuns, inclusive a reciclagem de água.

Os representantes da burguesia nacional e estadual, com o intuito de aprofundar seus lucros num momento de convergência de crises que afetam tragicamente a maioria do povo, mostram-se mais uma vez como inimigos do povo.  Promovem o enriquecimento de poucos em troca da morte e miséria de tantos em plena pandemia, levando a desdobramentos com retrocessos socioambientais incalculáveis. Com essas medidas, o atual modelo não garante o mínimo da possível solução dada pelo capital – o chamado desenvolvimento sustentável – nem a segurança hídrica e energética da sociedade. Não há alternativas viáveis e nem esperanças neste sistema, é preciso subvertê-lo.

Enquanto ecossocialistas, nossa tarefa é expor as contradições do capital, denunciando a grave crise hídrica na qual nos encontramos e sua relação direta com a exploração predatória da natureza. Cobrar a devida responsabilidade dos verdadeiros culpados pela mercantilização das águas e devastação dos ecossistemas. Ricardo Salles e Jair Bolsonaro devem ser punidos pelos seus legados de sucessivos crimes ambientais desde o primeiro dia de governo. A lei do Novo Marco Legal do Saneamento Básico abriu, em 2020, as portas para a privatização da água e saneamento a nível nacional. A mando de João Doria, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) aprovou o PL 251/2021 em caráter de urgência – e não coincidentemente. Há pressa por parte dos governos em rifar os direitos da população. Não nos enganemos, sabemos que o projeto neoliberal e privatista de Doria é muito semelhante ao de Bolsonaro, embora ambos neguem. O mínimo que as autoridades deveriam promover é a criação de um comitê de crise efetivo no enfrentamento da emergência hídrica no estado de SP, mas também a nível nacional, com ampla participação democrática da sociedade civil, movimentos sociais, comitês de bacias, associações e especialistas. Mas por enquanto ainda se negam a assumir a gravidade e dimensão da crise.

É urgente a necessidade de uma (re)definição da relação do ser humano com a água no século XXI. Por agora, é fundamental escancarar os processos de privatização das companhias de saneamento básico e reivindicar a criação de um comitê de crise para lidar com a Emergência Hídrica, com transparência e construção democrática junto à sociedade civil, envolvendo comitês de bacias hidrográficas. Reestatizar ou remunicipalizar companhias de água e esgoto. Limpar os rios, universalizando o tratamento de esgoto, e almejar um saneamento máximo onde haja alta qualidade no abastecimento hídrico. Lutar por direitos da natureza e direito humano à água tem como objetivo combater a sobreposição da dimensão mercadológica em detrimento de suas dimensões social e principalmente ecológica. Fundamental também reivindicar a construção e implementação de um plano estratégico de contingência que seja construído participativamente (e não a quatro paredes como foi o PL 251), com etapas e graus de criticidade que poderiam começar a serem adotadas antes do esvaziamento de nosso reservatórios, nascentes e mananciais.

Se a luta contra a mercantilização da água está apenas começando, o presente e o futuro encontram-se em disputa. O mote “Ecossocialismo ou Extinção” vai tomando forma e constituindo-se enquanto realidade concreta. A batalha por um futuro digno passa necessariamente por uma alternativa ecossocialista radical, onde a luta coletiva em defesa da água e da vida é questão de sobrevivência.


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