A nova morfologia do trabalho e o desafio revolucionário: entre algoritmos e enfrentamento
As novas formas de organização do trabalho exigem novas formas de luta
Foto: Trabalhador do Ifood. (Reprodução)
A classe trabalhadora do século XXI está imersa em transformações profundas e velozes. A urbanização acelerada, a plataformização das relações de trabalho, a intensificação do uso da inteligência artificial (IA) e o avanço das Big Techs na vida social e política têm reconfigurado radicalmente o cotidiano de milhões. O cenário que se apresenta é desafiador para a esquerda revolucionária, que precisa encarar a tarefa histórica de reorganizar a luta de classes diante de uma nova morfologia do trabalho e de novas formas de dominação.
A chamada “plataformização” do trabalho, que insere trabalhadores e trabalhadoras em aplicativos como Ifood, Uber e Rappi, inaugura uma nova forma de exploração baseada na flexibilização extrema e na individualização dos vínculos laborais. Como já analisa Ricardo Antunes (2018), a precarização contemporânea não é um acidente ou uma fase transitória, mas parte constitutiva da lógica do capital na sua fase mais destrutiva. O fetiche do “empreendedorismo de si”, alimentado pelas empresas de tecnologia, mascara a ausência de direitos, a insegurança e a solidão de uma classe trabalhadora cada vez mais fragmentada.
Os processos de plataformização e uberização do trabalho têm representado, para vastos setores da classe trabalhadora, sobretudo a juventude negra e periférica, uma nova forma de superexploração. Esses trabalhadores vivem em jornadas extensas, instáveis e sem garantias mínimas, sendo forçados a operar como “empresas de si mesmos”, ainda que sem nenhum controle real sobre o processo de trabalho, nem autonomia sobre sua produção. São os algoritmos que controlam as rotas, o ritmo e até mesmo a remuneração. E, quando ousam se organizar e reivindicar direitos, são tratados como “autônomos”, fora do alcance das leis trabalhistas tradicionais.
Ao mesmo tempo, são esses mesmos corpos precarizados que se tornam alvo da violência policial sistemática, um braço do Estado voltado para conter revoltas e manter a ordem urbana do capital. O genocídio da juventude preta é parte da engrenagem dessa nova lógica de produção e repressão.
No campo, o cenário também é dramático. A concentração de terras permanece como herança estrutural da colonização e do escravismo, e a reforma agrária continua sendo uma pauta urgente. Povos originários, comunidades quilombolas e ribeirinhas sofrem com perseguições, grilagens, avanço do agronegócio e ataques sistemáticos às suas formas de vida. O governo Lula, apesar do discurso progressista, tem se mostrado omisso ou cúmplice em várias dessas questões. Um exemplo gritante foi a autorização para exploração de petróleo na Foz do Amazonas, o que contraria totalmente o discurso ambiental e atinge populações tradicionais e ecossistemas sensíveis.
Além disso, a proposta de regulamentação das plataformas digitais apresentada pelo governo foi extremamente tímida e mal recebida até mesmo pelos próprios motoristas de aplicativo, que organizaram protestos e se contrapuseram ao projeto. Ao invés de enfrentar o poder econômico das Big Techs e garantir direitos plenos aos trabalhadores, o governo optou por uma proposta conciliadora, incapaz de romper com a lógica exploratória do capital de plataforma.
O poder das Big Techs não se limita ao trabalho. A concentração de dados e a capacidade de manipulação de informações têm influenciado processos eleitorais e decisões jurídicas em escala global. O uso de IA para disseminação de fake news, segmentação de propaganda e vigilância em massa representa um novo tipo de dominação ideológica e política. A esquerda precisa encarar esse cenário com seriedade e buscar alternativas organizativas e comunicacionais à altura desses desafios.
O PSOL tem um papel fundamental neste contexto. É preciso que o partido esteja preparado para as explosões sociais e revoltas que surgem de forma espontânea, como vimos no “breque dos apps”, quando trabalhadores pararam o país exigindo melhores condições. Naquele momento, a atuação da vereadora Luana Alves foi exemplar, e assim como ela, outros parlamentares do PSOL, especialmente os ligados ao Movimento Esquerda Socialista (MES), têm se colocado como linha de frente nas trincheiras parlamentares contra os retrocessos e ataques aos direitos da classe trabalhadora.
Mas não basta atuação institucional. Precisamos repensar as formas de organização da classe trabalhadora. Os sindicatos tradicionais enfrentam enormes dificuldades para dialogar com essa nova classe trabalhadora precarizada, fragmentada e urbana. É preciso ousar em formas novas de organização e solidariedade de classe, que passem pelas redes de apoio, pelas ocupações urbanas, pelos cursinhos populares, pelos coletivos de juventude e pelos territórios periféricos.
A crise climática também exige um enfrentamento radical. A volta da matriz energética poluidora, o avanço do negacionismo e o uso discriminatório das políticas ambientais demonstram que a pauta ecológica deve estar no centro da luta anticapitalista. A luta por transporte público, saneamento, alimentação e moradia digna é também uma luta ambiental. A juventude e os setores marginalizados pagarão — e já pagam — o preço mais alto da catástrofe ambiental em curso.
A ascensão da extrema-direita tem como um de seus principais objetivos conter as lutas que surgem espontaneamente, criminalizar os movimentos sociais e impor uma agenda autoritária. O bolsonarismo, com suas pautas de costumes, se articula como uma forma de controle ideológico e político das massas, enquanto retira direitos e destrói políticas públicas. Nos EUA, Donald Trump segue com uma retórica fascista contra imigrantes e contra o movimento LGBTQIAPN+, o que também vemos se repetir aqui, com ataques aos direitos civis e à diversidade.
Diante de tudo isso, é preciso construir alternativas de enfrentamento. O exemplo de trabalhadores em luta em diferentes partes do mundo, como as greves na França e os protestos no Chile, mostram que a classe trabalhadora não está morta. Mas é preciso politizar essas lutas, conectá-las com uma estratégia revolucionária e internacionalista. A construção de uma organização socialista, combativa, enraizada na classe e capaz de disputar hegemonia é urgente.
O desafio está posto. A nova morfologia do trabalho exige uma nova morfologia da luta. Como disse Trotsky, a crise da humanidade se reduz à crise de sua direção revolucionária.
Referências
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
SRNICEK, Nick. Capitalismo de plataforma. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
Professor de Geografia da rede pública da Prefeitura de São Paulo e da Prefeitura de Poá. Coordenador do Cursinho Popular Emancipa Poá e da Parada LGBTQIAPN+ de Poá. Militante do Movimento Esquerda Socialista (MES/PSOL), integrante da Associação dos Servidores Municipais de Poá e do Sindicato dos Servidores de São Paulo.