Vitória da luta estudantil e popular… E agora o que segue?

Depois de vários anos de reação as tradições revolucionárias da época de luta contra a ditadura somocista voltaram a ressurgir.

Do dia 17 até o domingo, 22 de abril, Nicarágua viveu uma intensa jornada de luta, cuja vanguarda foram os estudantes universitários que se opunham às reformas inconsultas à seguridade social, aprovada unilateralmente pelo governo sandinista. As jornadas de luta concentraram a atenção da imprensa internacional. A esquecida Nicarágua voltou a ser notícia.

Renascem as tradições revolucionárias

Depois de vários anos de reação, impostos pela derrota da revolução em 1990, e especificamente pelo regime bonapartista de Daniel Ortega a partir do ano 2007, que proíbe qualquer tipo de mobilização ou manifestação independentes, as tradições revolucionárias da época de luta contra a ditadura somocista voltaram a ressurgir numa geração de jovens que nasceu e se desenvolveu no período posterior a 1990.

A luta contra as reformas na seguridade social começou com uma tentativa de manifestação de protesto por parte dos estudantes da Universidade Centro-americana (UCA), que foi brutalmente reprimida pelas forças de choque paramilitares da chamada Juventud Sandinista (JS-19). Imediatamente, gerou um onda de solidariedade e de mobilizações contra os agressores.

Devido ao fato que o governo sandinista sempre impediu as marchas de protesto e as lutas sociais, o direito a se manifestar se converteu rapidamente num enfrentamento violento nas ruas. Nesta briga, a nova vanguarda estudantil retomou os métodos de luta que o sandinismo utilizou na época de luta contra o somocismo. Com lenços e capuzes no rosto, pedras na mão, montando barricadas e utilizando morteiros, não só enfrentaram a investida dos grupos para militares do governo (chefeados pela JS-19 e os prefeitos de cada município), mas as tropas anti-motins da Polícia Nacional.

Uma das consignas que renasceu, e que vem da época heroica do FSLN, é aquela famosa pronunciada por Leonel Rugama em 1970 (“que se renda tua mãe”) ao morrer sozinho, em combate contra 300 guardas somocistas. Essa mesma consigna ressoava em todas as barricadas e recintos universitários. Voltaram-se a escutar canções e hinos revolucionários da época da luta contra o somocismo. Os estudantes e um setor importante das massas populares recuperaram a memória e as tradições que haviam sido sistematicamente apagadas depois de 1990. Os estudantes começam a discutir a necessidade de uma nova revolução.

Uma semi-insurreição popular

Ao não existir em Nicarágua os mecanismos por meio dos quais as massas podem expressar ou dissipar seu descontentamento, o resultado foi que se produziu uma explosão social – por um aspecto tão elementar contra o direito a marchar e protestar -, que teve como condução os jovens universitários.

Esta vanguarda estudantil não lutava sozinha, era apoiada pela população próxima aos diferentes recintos universitários. A luta começou na UCA, uma universidade privada, com estudantes provenientes da classe média, mas rapidamente se generalizou para as universidades públicas, com estudantes de origem plebeu e popular, que abarcou inclusive e também aquelas universidades privadas que recebem recursos de 6%, como é o caso da UPOLI.

A generalização da luta a quase todos os departamentos dispersou e debilitou às forças da Polícia Nacional, a qual concentrou seus ataques em pontos nevrálgicos como a Catedral de Managua, a Universidade Nacional de Engenharia (UNI), a Universidade Nacional Agrária (UNA) e a UPOLI. Nos fatos se produziu a paralisação quase total da administração pública. Muitos pequenos e medianos negócios fecharam suas portas por temor à insegurança nas ruas.

As mobilizações de solidariedade eclodiram em quase todas as capitais departamentais e até nos municípios mais afastados, refletindo uma eclosão das massas contra a repressão do governo sandinista.

Numa semana, a repressão seletiva da Polícia Nacional e de franco-tiradores do Exército Nacional (EN) produziu mais de 30 mortos. Os estudantes eram assassinados a tiros, quando a vanguarda estudantil somente estava armada de coragem e vontade de luta.

O governo bloqueou o sinal de cabo de quatro canais de televisão, mas os estudantes e a população se informavam pelas redes sociais, onde se podia ver as mobilizações, escutar os disparos e ver com dor e impotência o momento em que muitos companheiros morriam pelas balas assassinas.

Se algo caracterizou as recentes jornadas de luta foi a dispersão nas propostas e demandas, assim como a descentralização organizativa. Como era de se esperar, os centros de luta estavam descoordenados uns dos outros. A luta num departamento não tinha conexão com os outros. O único que mantinha certo grau de unidade e centralização era a informação e contrainformação que circulava pelas redes sociais, as quais se tornaram num cenário de luta midiática entre o governo sandinista e as massas em luta.

Incêndios, violência de massas e saques

Ao não ter espaço para os protestos pacíficos, o descontentamento acumulado gerou, de igual maneira, uma resposta violenta contra aqueles que agrediam e disparavam contra os estudantes em luta. A resposta irada das massas nas ruas se centrou contra as “árvores da vida”, uma espantosa estrutura metálica, adornada com luzes-led, que estão semeados em Manágua, e que se tornaram em símbolos da nova ideologia imperante (paz, amor, bom governo cristão, socialista e solidário, etc), cuja máxima exponente teórica é Rosario Murillo.

Muitas “árvores da vida” foram queimadas e derrubadas. O descontentamento das massas também se centrou certas prefeituras, porque os prefeitos eram os que chefiavam as forças de choque, que agrediam e disparavam contra os manifestantes. Houve começo de incêndio na prefeitura de Granada, foi queimada a sede do Centro Universitário da Universidade Nacional (CUUN) em León, em outros casos os incêndios foram abortados.

Em seu discurso do domingo 22 de abril, Daniel Ortega responsabilizou as gangues pelas mortes e violência, mas esta afirmação se contradiz com discursos anteriores onde afirmava que “na Nicarágua não existem quadrilhas ou gangues, porque é o país mais seguro da América Central”. Sem sombra de dúvidas, dentro da mobilização de estudantes e populares se mesclaram elementos lúmpens, que querem tirar proveito da crise.

Em termos gerais, na luta prevaleceu a ordem e o respeito entre os membros das comunidades. Os saques começaram o dia, domingo 22 de abril pela manhã, quando a Polícia Nacional se retirou de certos lugares. Tudo indica que eram setores orientados pelo sandinismo, com o objetivo de desacreditar os protestos e de atemorizar a classe média que se rebelava contra o governo sandinista. A ameaça de saques generalizados obrigou a comerciantes do Mercado Oriental e Mercado de Mayoreo a montar grupos de vigilância armada, para evitar a destruição de seus negócios. Inclusive, se chegou ao extremo que os mesmos populares detinham os saqueadores, requisitavam as mercadorias e as devolviam aos supermercados e negócios.

Um “golpe brando” do imperialismo?

Alguns meios de comunicação nas mãos do FSLN, qualificaram, entre dentes, em conjunto com partidos chavistas como o PSUV da Venezuela e outros corifeus, que as heroicas jornadas de luta estudantil e popular na Nicarágua foram uma intentona de “golpe brando”, organizado pelo imperialismo norte-americano e a direita local.

Estes tipos de afirmações subliminares confirmam que a direção sandinista se afastou do povo e não compreende a origem da rebelião popular. Em público, se dão golpes no peito e fingem reconhecer erros, mas em realidade mantêm a mesma posição de aplastar qualquer tentativa de mobilização independente. É uma reafirmação do reiterado desprezo ao descontentamento das massas populares.

Na Nicarágua, a cúpula militar e policial está conformada por quadros sandinistas que são, pelo momento, fiéis ao presidente Daniel Ortega e sua esposa Rosario Murillo.

O Departamento de Estado dos Estados Unidos, em 22 de abril passado, através de um comunicado, refletiu uma posição cautelosa por parte da administração de Trump, ao afirmar:“(…) Condenamos a violência e o uso excessivo da força pela Polícia eoutros contra civis que exercitam seu direito constitucional à liberdade de expressão e deassembleia (…) Estados Unidos chama a um diálogo amplo que envolve a todos os setores da sociedade para resolver o conflito atual, restaurar o respeito aos direitos humanos e conseguir um melhor futuro mais democrático para todos os nicaraguenses”.

Posteriormente, se restavam dúvidas sobre qual é a política dos Estados Unidos para a Nicarágua, a porta-voz da Casa Branca, Sarah Huckabee Sanders, declarou que Trump “condena a violência e a repressão propagada pelo governo da Nicarágua”, disse a Casa Branca (…) e se soma aos chamados da comunidade internacional a favor de um diálogo amplo e apoia ao povo de Nicarágua, que aspira à liberdade de expressãopolítica e verdadeiras reformas democráticas que tanto merece”.

Então, a que “golpe brando” se referem os chavistas e reformistas de toda laia? Coincidência ou não, Daniel Ortega reafirmou sua posição de convocar a um diálogo amplo com os empresários do Conselho Superior da Empresa Privada (COSEP) e Igreja Católica, para discutir a crise do seguro social. Por acaso o “golpe brando” está sendo dado pelo próprio Daniel Ortega, aplicando a política do Departamento de Estado e da Casa Branca?

Uma importante vitória das massas

O anúncio de Daniel Ortega no domingo passado 22 de abril, de que o Conselho Diretivo do Instituto Nicaraguense de Seguridade Social (INSS) havia revertido a Resolução 1317, que deu origem ao Decreto Executivo No 03-2018, constituiu, sem lugar de dúvidas, um grande triunfo da luta estudantil e popular. Mas este triunfo teve uma alto custo: mais de 30 companheiros assassinados, 121 feridos, centenas de detidos que já foram liberados, pequenos negócios saqueados, etc.

Os grandes ausentes destas jornadas de luta foram os trabalhadores organizados, lutaram como indivíduos, não como classe organizada, o que representa uma enorme debilidade, e dá uma ampla margem manobra ao governo sandinista. Se os trabalhadores não avançam em sua organização sindical, e se os jovens universitários não criam novas e poderosas organizações estudantis democráticas, esta vitória pode ser revertida em qualquer momento, porque o regime bonapartista de Daniel Ortega, ainda que debilitado, ainda permanece intacto.

O diálogo que já está sendo convocado não é para discutir os problemas da seguridade social com os estudantes em luta, mas para negociar com os empresários, com a bendição da Igreja Católica. Com justa razão, um setor da vanguarda estudantil criticou a convocatória dessa mesa de negociações, auspiciada por Estados Unidos, a ONU, a OEA e a União Europeia.

Programa e consignas de luta

Inicialmente, a luta começou contra as reformas inconsultas à seguridade social e a solidariedade com os estudantes da UCA, mas ao calor do enfrentamento surgiram novas consignas, como o fim da repressão, o castigo aos responsáveis, e consignas mais políticas como a depuração do Conselho Supremo Eleitoral (CSE), pedindo inclusive a renúncia imediata de Daniel Ortega e sua esposa Rosario Murillo.

Depois do triunfo obtido, um beligerante setor converteu a consigna da renúncia do matrimônio presidencial na mais importante, inclusive por cima das reivindicações propriamente estudantis.

O COSEP e a Igreja Católica pescam em rio revolto

A marcha do dia 23 de abril, realizada em Managua, convocada pelo COSEP para chamar à paz e o diálogo, saiu da praça do Metrocentro e terminou frente a UPOLI, onde se encontrava um combativo setor de estudantes em pé de luta. Foi uma marcha de dezena de milhares de pessoas, muitos deles trabalhadores das empresas privadas que deram a tarde livre. O peso dirigente da classe média era notório, mas também muitos setores populares se somaram à convocatória. Os ausentes foram os estudantis em luta, os que estavam repelindo as agressões da Polícia Nacional.

As jornadas de luta se deram por fora a condução e incidência do COSEP. Estes oportunistas aproveitadores o que fizeram foi se montar no descontentamento popular, e utilizar o mesmo na mesa de negociações com o governo. Não devemos esquecer que, em torno ao tema da reforma à seguridade social, a posição do COSEP é muito mais dura que o plano que o governo sandinista pretendeu impor de maneira gradual e unilateral. O COSEP convocou mobilizações para deter os efeitos da reforma tributária que o Fundo Monetário Internacional (FMI) exige que se aplique e que implica o fim das isenções fiscais para um importante setor da burguesia parasitária.

A crise obrigou ao governo sandinista a se reconciliar com os bispos da Igreja Católica, a qual foi nomeada por Daniel Ortega como mediadora no futuro diálogo. O COSEP aceitou a Igreja Católica como “fiadora”.

Comissão de Investigação independente

A brutal repressão das forças de choque da JS-19 e das tropas anti-motins da Polícia Nacional e as tropas essenciais do Exército Nacional, assim como o assassinato de mais de 30 companheiros caídos por balas assassinas, deve ser investigado por uma Comissão de Investigação Independente formada por delegados das organizações de direitos humanos, sindicatos independentes, delegações dos estudantes em luta, assim como familiares dos afetados, com a finalidade de levantar um informe sobre a violação a direitos humanos.

Os responsáveis destas violações devem ser processados e castigados, e os familiares das vítimas devem ser indenizados pelo governo sandinista. O anterior deve levar a uma depuração dos oficiais envolvidos em assassinatos e violação aos direitos humanos.

Que o povo decida sobre se Daniel Ortega termina seu período ou não

A demanda de um setor beligerante de estudantes que exigem a renúncia imediata de Daniel Ortega e sua esposa Rosario Murillo, é justa e compreensível. Contudo, o diário La Prensa aproveita a oportunidade para exigir o mesmo: “Pela primeira vez desde o triunfo da revolução sandinista de 1979, Daniel Ortega e a FSLN perderam o controle das ruas. Isso é um feito transcendental que modifica o rumo da história nacional. A partir daqui, Nicarágua já não poderá ser a mesma (…). Os empresários também devem convocar a uma paralisação nacional. Daniel Ortega já não tem capacidade política nem autoridade moral para seguir governando. Ortega tem que sair pacificamente do poder ou terá que se ir como se foi Somoza (…). No diálogo nacional, que deveria ser mediado e assegurado pela comunidade internacional, ao menos pela OEA, se tem que acordar a saída de Ortega, as garantias de uma transição ordenada e pacífica à democracia e, primordialmente, a convocatória a eleições livres e transparentes” (Editorial de La Prensa, 23/04/2018).

A saída que propõe La Prensa é profundamente antidemocrática, e reflete interesses diferentes à exigência sincera de um setor estudantil. Como no passado, um setor da burguesia clama por uma intervenção imperialista que os libere do regime bonapartista de Daniel Ortega, e novamente solicitam a intervenção da Organização de Estados Americanos (OEA), apesar de que janeiro do 2017 esta assinou com Daniel Ortega um acordo para democratizar gradualmente o regime político.

Inclusive, alguns setores já estão propondo adiantar as eleições como em 1990. Enquanto não se produza uma paralisação nacional ou uma rebelião massiva e generalizada capaz de derrubar o atual governo, qualquer saída à crise atual, deve ser democrática e sem ingerência do imperialismo norte-americano. A rebelião estudantil e popular mostra, efetivamente, uma deterioração política do governo sandinista, mas isso conserva ainda uma parte de sua base social. Uma saída democrática implicaria que o povo decida através de eleições democráticas, por meio de um plebiscito ou referendo, se Daniel Ortega e sua esposa Rosario Murillo permanecem o poder ou se têm que ir embora.

No entanto, para que o povo opine, sem risco de novos fraudes eleitorais, devem se reestruturar o CSE, e se deve aprovar ao imediato uma nova Lei Eleitoral, que assegure a participação de todas as forças políticas em igualdade de condições.

Por uma Coordenadora Nacional Estudantil

O Partido Socialista Centroamericano (PSOCA), que participou ombro a ombro com os milhares de estudantes em rebeldia contra o governo de Ortega, chama à vanguarda estudantil e dos setores populares, a aproveitar o recesso de luta, para iniciar um processo de discussão democrática, fazendo em balanço das jornadas de luta, discutindo no programa de luta que devemos hastear para democratizar a Nicarágua.

De maneira muito especial chamamos aos estudantes a construir uma coordenadora dos comitês e brigadas que participaram, para criar uma direção nacional que permita coordenar as futuras lutas, que inevitavelmente virão.

É hora de lutar por uma Assembleia Nacional Constituinte

A rebelião estudantil e popular se deveu, não a uma “conspiração imperialista”, mas aos constantes atropelamentos do regime bonapartista, ao fato que são a classe média e os setores populares os mais duramente golpeados pela política econômica neoliberal que aplica que o governo sandinista, em benefício de uma reduzida cúpula de empresários.

É hora de democratizar Nicarágua em benefícios dos mais pobres, e isso somente se pode conseguir através da decisão democrática e majoritária do povo, refletida na convocatória imediata de uma Assembleia Nacional Constituinte, que escolha um governo provisório e que redija uma nova Constituição.

América Central, 24 de abril de 2018.

Fonte: http://portaldelaizquierda.com/pt_br/2018/04/vitoria-da-luta-estudantil-e-popular-e-agora-o-que-segue/


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