Que feminismo é esse que tá na boca do povo?

Sobre porque é tão importante homens lerem sobre feminismo, brancos lerem sobre negritude, héteros lerem sobre LGBTs.

Tatiane Ribeiro 5 dez 2018, 15:16

Eu e minha mãe estávamos no bar. Tinha muita coisa pra comemorar, várias realizações em uma família matriarcal que, apesar de vários privilégios, ainda está muito aquém da tradicional família brasileira de classe média. E estávamos nós felizes, apesar da chuva intensa que nos deixou ilhadas na parte de fora do bar, e conversando. Eis que chega um casal, e pela conversa era o primeiro encontro a partir de algum aplicativo desses de conhecer pessoas. Logo a gente nota uma disparidade bem grande: a gente nunca conseguia ouvir a voz dela. Já ele, tagarelava e falava sobre tudo. Fiquei sabendo até onde ele morava (de acordo com ele, no encontro entre São Miguel e Penha – que eu nem sabia que se encontravam). Eu e minha mãe seguimos conversando felizes até que chega o ponto: ele começa a falar sobre o quanto as feministas são contraditórias porque se os homens são tão ruins, elas deviam criar uma sociedade só de mulheres.

Entre os disparates, ele defendia que as mulheres se dividiam entre si e que nossa obrigação era ensinar os homens a serem menos machistas. “Eu, por exemplo”, ele explicava a ela, “sempre ouço o que minha amigas tem a dizer”. Sobre dividir o movimento, ele também tinha uma belíssima explicação: “eu tenho uma amiga que foi participar do movimento feminista da USP (sic). Cara, aí ela chegou numa atividade e foi falar e uma mina negra disse pra ela ‘quando uma negra fala, a branca escuta’. Que isso, elas mesmas se dividem só pra lacrar”.

Eu poderia aqui passar todo o texto apresentando mil argumentos para dizer que duvido que isso tenha acontecido com essas palavras. Ou mesmo para dizer que se aconteceu, não está necessariamente errado. Mas vamos supor que tenha acontecido exatamente assim, só para ficar mais fácil nosso raciocínio. Qual o grande incômodo de ouvir a negra? Qual o grande problema.

Vou pra outra situação que ilustra bem o tema. Nesse mesmo dia, chego em casa, abro o facebook e vejo a postagem de um companheiro compartilhando a notícia de uma ministra do Bolsonaro que acha que o lugar da mulher é em casa cuidando dos filhos e do marido, ou seja, mais uma conservadora falando porcaria. A postagem do companheiro dizia (vou parafrasear porque não lembro exatamente as palavras) que é por isso que o feminismo era tão necessário, porque existem mulheres reproduzindo o machismo. E não bastando isso, um dos comentários de uma mulher era de que era preciso reinventar o feminismo da mulher comum, porque esse negócio de feminismo negro e de mulheres trans afasta a mulher trabalhadora da luta.

Pois bem. É cansativo, sabe? É cansativo ter que dizer várias vezes, repetidas vezes porque estamos aqui. Porque nos dedicamos a dupla jornada militante, porque estamos na luta geral da classe e também na luta feminista. Porque a negritude não é um setor, e sim a maioria da população brasileira e falar de feminismo negro é falar do feminismo em sua totalidade. Porque o assassinato de mulheres negras (feminicídio) cresceu enquanto o de mulheres brancas diminuiu. Porque somos aquelas que recebem até dois terços a menos que o salário de um homem branco na mesma posição.

É cansativo e não deveria ser nosso trabalho. Não deveria ser a nossa tarefa ter que explicar. Nossa tarefa é lutar para que esses dados mudem. Mas homens, mulheres brancas, pessoas heterossexuais, vocês precisam ser aliados nessa luta. Leiam. Perguntem. Consultem. Mas não nos ensinem como fazer. Depois de quase 300 anos de escravidão, depois de muita luta para que as mulheres pudessem ter, pelo menos em teoria, os mesmo direitos políticos que os homens, ainda temos muita luta pela frente. Os tempos serão ainda mais difíceis e precisamos que vocês estejam ao nosso lado, lutando conosco, e não nos travando para retomar conceitos básicos.

Não estou aqui dizendo que a culpa dos problemas do mundo é de vocês. Ou nossa. Eu não sou uma mulher trans, mas tento sempre compreender o que significa fazer parte de uma população que vive em extrema vulnerabilidade, que precisa lutar todos os dias para continuar viva. Que tem o direito a sua identidade de gênero negada e que não tem emprego.

No fim, o que eu tenho a pedir nada mais é do que empatia. Empatia por aqueles que estão sempre na luta, mas que são muitas vezes esquecidos. Não compreender a importância do feminismo como ferramenta crucial para mudar a sociedade, não entender que a luta anticapitalista passa pelo fim do machismo e do racismo, é não os entender como estruturas cruéis do capital contra a classe trabalhadora.

Quero voltar no rapaz do primeiro encontro no bar. Com ele, o papo seria diferente, mas não senti que ele queria de fato dialogar. Ele é mais um alerta sobre a importância da nossa luta. O feminismo, e o feminismo negro, estão chegando cada vez mais longe. Esse rapaz se sente incomodado não porque acha que o feminismo é uma porcaria, mas porque é a primeira vez que não é sobre ele que estamos falando. Não é sobre vocês, sobre quem todos os dias está retratado na política, na TV, nos comerciais. Não é sobre quem sempre teve voz, quem sempre se sentiu à vontade para falar, seja sobre si, seja sobre os outros. O incômodo dele é não perceber que tudo bem não ser sobre ele. Ele não vai perder espaço. Lembro sempre dos machistas de plantão das redes sociais que reclamam que o politicamente correto está deixando tudo chato. A verdade é que enfim está começando a ficar divertido pra nós, porque enfim não aceitaremos mais ser o alvo da piada, queremos rir também.

Um mundo radicalmente diferente só será possível se a gente entender o que é a estrutura que hoje nos consome. Por isso, repito, leiam. Procurem se informar. Tem toda uma nova geração de teóricos negros, de mulheres escrevendo muita coisa bacana. Não peço que vistam a nossa pele, isso seria impossível. Mas entendam que vocês não vão a lugar algum sem nós.

PS: antes de fechar o texto, mandei para uma amiga, militante e mulher negra pra que ela desse seus pitacos (a gente é assim, não fomos formadas para ser grandes produtoras de textos e ficamos inseguras). Ela me pediu, e eu o fiz, para diminuir a parte do texto em que o falo do cara do bar. Olha aí: eu escrevendo o texto sobre como não é sobre os caras brancos e aí me pego gastando metade de um texto falando sobre ele. A gente ainda tem muito o que aprender mesmo.


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