“A ideia dos governos de peritos é ganhar tempo para estabilizar a situação, cansar as pessoas, convencê-las de que não estão preparadas para realmente definir elas mesmas o que fazer”

Entrevista com Éric Toussaint.

Éric Toussaint 5 dez 2019, 13:29

No final de agosto, Éric Toussaint, porta-voz internacional do Comité para a Abolição das Dívidas Ilegítimas (CADTM, cadtm.org), respondeu às nossas perguntas sobre as experiências dos processos constituintes que têm ocorrido no mundo nos últimos anos. Essas experiências, no contexto dos principais movimentos populares, sem alcançar os objetivos que estabelecemos para nós mesmos em termos de mudança social, fornecem lições importantes para o nosso movimento.

Entrevista com Kamel Aïssat


Você pode nos falar sobre a experiência da Assembleia Constituinte no Equador em 2007?

Éric Toussaint: Lutar pela convocação de um processo constituinte verdadeiramente democrático, soberano e popular é absolutamente fundamental em circunstâncias como as da luta a que assistimos hoje na Argélia. É interessante referir, não necessariamente para repetir ou copiar, mas refletir sobre outras experiências.

Pessoalmente participei da experiência da constituinte no Equador, em 2007. Tinha sido eleito um novo presidente que havia assumido quatro compromissos fundamentais: convocar um processo constituinte genuíno, desafiar o pagamento da dívida ilegítima, não assinar um acordo comercial com os Estados Unidos e encerrar uma base militar que os Estados Unidos tinham no território. Então um dos compromissos era sobre a Assembleia Constituinte.

A situação na Argélia é diferente, uma vez que há muito poucas probabilidades que um presidente queira convocar este processo. Será necessária uma pressão de baixo para cima e vocês do PST junto com outras forças sociais tem um papel fundamental para garantir que os artigos 7º e 8º da Constituição argelina sejam aplicados, que o povo exerça plenamente a sua soberania e adopte um processo constituinte para depois desenvolver o sistema político, ou seja, reconstruir o sistema político e toda uma série de instituições e estabelecer um quadro legal para a mudança fundamental que o povo deseja ver acontecer. Então temos dois cenários bem diferentes.

O que é muito interessante no Equador é que houve primeiro um referendo para determinar se o povo queria um verdadeiro processo constituinte. O referendo consistiu em fazer a seguinte pergunta: “Querem uma assembleia constituinte com deputados eleitos pelo sufrágio universal, com a função de reescrever completamente a Constituição? ». Todos os partidos dominantes, os meios de comunicação social e as empresas de sondagens prognosticavam a rejeição da convocação de um processo constituinte por 85% e, no dia da votação, foi exatamente o contrário que aconteceu, com 82% dos votos a favor do processo constituinte.

Imediatamente a seguir, foi convocada uma eleição no sufrágio universal, na qual todas as organizações que desejavam apresentar deputados o puderam fazer, e então correntes políticas completamente diferentes participaram da eleição para a assembleia constituinte.

A Assembléia Constituinte foi criada e a meta que os deputados estabeleceram para si mesmos foi de dar-se oito meses para ficar na escuta dos diversos componentes do povo equatoriano. Para evitar a repetição de um quadro tradicional, criaram do nada um edifício com uma sala para as sessões plenárias e muitas salas adjacentes, de modo a que os deputados permaneçam nolugar (situado fora da capital Quito) durante a maior parte do tempo com a função de ouvir os cadernos de reivindicações, as propostas dos diferentes sectores populares. Eles se dividiram em comissões temáticas e passaram centenas de horas ouvindo delegações de moradores de comunidades rurais, de bairros populares, de sindicatos, das coordenações de mulheres, de professores…Depois, sobre esses temas, começou a um trabalho de análise da antiga constituição e de como alterá-la.

Eu fazia parte de uma comissão de auditoria da dívida equatoriana com companheiros todos eles oriundos dos movimentos populares do Equador. Há uma grande população indígena no Equador, é a maioria da população, há também um importante movimento feminista. Fomos convidados pelo Comitê Temático de Finanças para apresentar os resultados de nossas reflexões sobre como evitar, por exemplo, que no futuro o Estado acumule dívidas ilegítimas para objetivos contrários aos interesses da população e assim, na Constituição equatoriana, foram incluídos elementos como a proibição do Estado de socializar as perdas do setor privado, a proibição do Estado de salvar banqueiros ou grandes empresas que vão à falência por má gestão e abusos e de salvá-los com dinheiro público aumentando a dívida pública.

Isso foi consagrado na Constituição equatoriana e os deputados da Assembléia Constituinte depois de 8 meses votaram sobre o conteúdo de uma nova Constituição e esse projeto majoritário foi submetido novamente a um referendo por sufrágio universal com a pergunta: «Vocês aprovam esse novo projeto de Constituição tal como foi elaborado pela maioria dos deputados da Assembléia Constituinte».

Esta é uma experiência que merece ser conhecida e que tem sido vivida pelo povo equatoriano como algo muito importante.

Lembrem-se que o povo equatoriano em dez anos se livrou de quatro presidentes seguidos, com grandes rebeliões contra presidentes corruptos, neoliberais, apoiando as grandes potências estrangeiras. O povo de lá e um povo consciente e mobilizado.


Como são eleitos os delegados e delegadas?

Nas reflexões sobre a constituinte, uma questão é a base em que foram eleitos os deputados e deputadas para o eleitorado: simplesmente por circunscrição geográfica, ou se busca categorias da população terão representação garantida, e portanto, que os trabalhadores desses setores irão eleger seus deputados, por exemplo.


Podemos imaginar duas assembleias, por exemplo, uma representando as profissões, a outra o sufrágio universal?

Claro que é uma formula possível. E aí tem que ver em que proporção e como seriam eleitos os delegados da indústria petroquímica, ou do sector da saúde, da educação e do mundo rural, de acordo com que métodos. Deve ser realmente democrático, mas o que considero verdadeiramente fundamental é a necessidade de ter um processo totalmente aberto ao povo mobilizado, de evitar uma assembleia constituinte em que os representantes eleitos recorram a peritos estrangeiros constitucionalistas, americanos, franceses ou do pais e que os povos sejam sujeitos a modalidades impostas por peritos.

O mais importante não é o direito constitucional, claro é necessário que a Constituição talvez respeite determinadas normas jurídicas, mas é a substância que conta e a substância é, por exemplo, o que as pessoas não querem mais viver num regime que eles afrontam, que os diferentes sectores da população reflitam sobre como evitá-lo e, e em seguida que estrutura adoptar.

Por exemplo, uma coisa que é fundamental na constituição equatoriana é a revogabilidade de todos os mandatários, incluídos os governadores das províncias e prefeitos. Se 20% dos eleitores que elegeram um mandatário assinarem uma petição exigindo a convocação de um referendo revogatório, então as autoridades são obrigadas a convocar um referendo revogatório. E se o não obtiver uma maioria, este é revogado e uma nova eleição é realizada. Isto é extremamente importante porque todos os mandatários sabem que se não respeitarem os compromissos que assumiram para ganhar os votos dos eleitores, é provável que sejam revogados, o que é um mecanismo poderoso para garantir que apenas façam promessas que se sintam sinceramente capazes de cumprir e que durante o seu mandato façam o seu melhor para cumprir os compromissos que assumiram com os seus eleitores.


Que conclusões podemos tirar da experiência tunisina, onde a Assembleia Constituinte não alterou verdadeiramente a situação das massas populares?

Tenho a impressão de que a experiência tunisina foi induzida, calibrada para evitar um elemento fundamental, que os membros da Assembleia Constituinte devem absolutamente manter um contacto profundo com o resto da sociedade durante o processo constituinte. E que o povo como elemento fundamental da soberania – como aliás previsto na Constituição argelina – discute em permanência, que toda uma série de reuniões constituintes sejam transmitida pela televisão, nos cafés, nas casas, que possamos assistir e nos sentir parte e ver se estamos nos livrando da demagogia de sempre, dos grandes discursos, das grandes considerações retóricas que não correspondem em nada às condições de vida da população.

Precisamos de um processo vivo, acalorado, no sentido de uma dialética permanente de interação entre a sociedade de base, as pessoas de base e os representantes eleitos para lhes dizer: proponham-nos um projeto de Constituição, com, por exemplo, no meio do processo de elaboração, um primeiro esboço a ser discutido na sociedade, com debates em todos os sectores. A obrigação da assembleia constituinte de dar retorno ao resto da sociedade sobre os resultados preliminares do trabalho para debate e de considerar as reações discutidas nos bairros e em todo o tipo de assembleias.


No fundo, é uma forma de democracia direta que deve acompanhá-la?

Absolutamente, uma forma de democracia direta e participativa no sentido pleno da palavra. Não se trata apenas de ser vagamente consultado e informado, mas de intervir com propostas.

Não queremos que haja uma instituição, ou alguém acima da Assembleia, que decida por ela.

O que temos de obter é, através da pressão da luta, que seja convocado um referendo para que as pessoas possam dizer se querem ou não a abertura de um processo constituinte. A partir do momento em que o processo constituinte é aberto, com os membros do constituinte, é o constituinte que exerce o mandato por algum tempo. Se temos a dinâmica de uma constituinte que seja verdadeiramente apoiada pela população, ela vai ser a legitima emanação do povo para um governo provisório. E uma possibilidade.

Devemos evitar que um governo de especialistas, de pessoas apresentadas como integras, vem assumindo o controle do processo, porque a ideia de governos especialistas sempre e ganhar tempo para estabilizar a situação, cansar as pessoas, convencê-las de que é uma questão técnica e especializada, de que elas não estão preparadas para definir realmente o que fazer e de que devem confiar em pessoas honestas e tecnicamente preparadas para isso.

Tais propostas devem ser recusadas. Tem que buscar e é muito, muito claro uma grande assembleia constituinte composta por delegados que vêm realmente das bases e que dedicam tempo a pensar na forma de organizar o poder político, que se preocupem, inclusive em consultar outras constituições. Mas nunca deixar este processo nas mãos de especialistas

O processo na Argélia provoca um enorme entusiasmo fora da Argélia. Podemos ver que as pessoas estão realmente mobilizadas e não estão absolutamente satisfeitas com as concessões que foram feitas, que querem ir mais longe. Tem uma oportunidade histórica, que não deve ser desperdiçada, de mudar realmente o curso da história e o que poderá fazer o que o povo argelino vai fazer pode ser um elemento de sucesso para todos os povos do mundo. Desejo-lhe a máxima energia e coragem para fazer avançar esta luta um revolucionário da forma mais popular e democrática possível.

Artigo originalmente publicado no site do CADTM.

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