Ernesto Cardenal e sua voz profética

Em homenagem à vida e obra do escritor.

Sérgio Ramirez 2 mar 2020, 16:41

Ernesto Cardenal foi meu vizinho do outro lado da rua durante quarenta anos em Managua. Atravessava-a na hora do café da manhã para deixar-me o que havia escrito, ainda talvez nessa mesma manhã, e quando eu terminava um romance deixava-o com ele também, recém saído da impressora. É um dos meus professores da prosa, porque em sua poesia aprendi muito da arte narrativa e da cadência das palavras.

Conheci-o em 1960, quando recém voltava de Medellín onde havia se tornado sacerdote, e acabava de rezar sua primeira missa em Managua, ainda que desde antes sua poesia tivesse marcado não somente meu rumo literário, mas de toda a minha geração. Professor meu, companheiro de lutas na Nicarágua sempre convulsa, um irmão mais velho que sempre tive do meu lado.

Sua marca é muito profunda e visível na grande poesia latino-americana. Essa natureza narrativa de sua poesia que me marcou e me seduziu desde a adolescência, é o que foi batizado como exteriorismo, um termo que pode se prestar a confusões pois pareceria negar sua dimensão íntima.

A prosa que se destila em sua poesia foi-lhe um aprendizado tomado de Whitman e Sandburg, os quais lhe ensinaram uma lírica terrena e cotidiana, e a minha geração lhe deve a descoberta de T. S. Elliot e Ezra Pound, pois foi ele quem lhes traduziu. Assim fez com que a poesia nicaraguense seguisse sendo moderna, dando continuidade ao trabalho iniciado por Rubén Darío. 

Narrativa é a poesia de Hora 0, de 1957, um relato das ditaduras tropicais da América Central e das intervenções militares que longe de ter nada panfletário funciona como uma evocação pungente. E desde esse registro passará a Gethsemani Ky, de 1960, onde põe em contraponto com seus turbulentos anos de juventude em Managua com sua vida de noviço trapista em Kentucky, onde se encontrou com Thomas Merton, seu mestre de noviços.

Depois virão seus Epigramas, de 1961. Entre eles figuram alguns de seus poemas mais populares, os de tema amoroso, de engenhosa precisão, alimentados por suas leituras acadêmicas de Catulo e Marcial enquanto estudava humanidades en na Universidade Autônoma de México.

A morte de Marilyn Monroe em 1962, inspirou  sua elegia à garota que como toda vendedora de loja sonhou ser estrela de cinema, uma profunda reflexão sobre a fabricação dos ídolos do espetáculo às custas dos próprios seres humanos elevados aos altares da fama. É um de seus poemas mais difundidos e celebrados.

Em 1966 viria El estrecho dudoso. Apegando-se à letra das crônicas das Índias, revive episódios da conquista ao redor da obsessão pelo Estrecho Dudoso, a passagem para o mar do Sul buscado com bastante afã desde então, e que tem tanto a ver até hoje com a ambição pelo canal interoceânico, o último desses episódios protagonizado pelo aventureiro Wang Ying, que apesar do engano urdido, um canal que nunca será construído, segue sendo dono de uma concessão que lhe entrega por cem anos a soberania do país.

Ordenado sacerdote em 1965, Ernesto fundou no mesmo ano a comunidade cristã de Solentiname, no Grande Lago da Nicarágua; uma comunidade que primeiro ia ser contemplativa, idealizada com Merton, e onde se supunha que viria a viver ao lado de seu discípulo. A morte impediu esse plano e a comunicação voltou a ser camponesa. Ali floresceu uma escola de pintores e escultores primitivos que chegou a adquirir fama internacional. Em Solentiname o visitaria Julio Cortázar em 1976, do qual deixou memória em seu conto Apocalipsis de Solentiname.

Desse mesmo ano são os Salmos, surgidos de suas leituras dos do Antigo Testamento, porém levados à vida moderna: a opressão, os sistemas totalitários, o genocídio, os campos de concentração, as ameaças do cataclismo nuclear, a sociedade de consumo desbocada. Foi um livro de trascendental influência para os jovens alemães e de outros países europeus.

Depois do triunfo da revolução sandinista em 1979, foi nomeado Ministro de Cultura, um puesto que aceitou apesar de sua reticência frente à burocracia. Levou adiante um processo transformador rodeado de jovens cineastas, escritores, artistas plásticos, compositores e cantores. Ao mesmo tempo, seu irmão Fernando, sacerdote jesuíta, assumia o timão da Cruzada Nacional de Alfabetização.

Viveu circunstâncias amargas nesses anos, quando foi obrigado a renunciar seu cargo por intrigas da primeira-dama Rosario Murillo, que queria para ela todas as atribuições culturais, sem perceber que atropelava uma das figuras literárias fundamental da língua. Em seu livro de memórias La revolución perdida, publicado em 2004, pode-se ler seu juízo implacável sobre os que malversaram a revolução na qual ele se comprometeu a fundo desde sua fé cristã.

O Vaticano o suspendeu ad divinis, por sua adesão à Teologia da Libertação e por negar-se a renunciar a seu cargo de ministro, e quando João Paulo II visitou a Nicarágua em 1983, se fez célebre a fotografia do momento em que, com o dedo levantado repreende Ernesto, o qual se encontra de joelhos com sua boina basca na mão.

O Papa Francisco lhe fez chegar em fevereiro de 2019 uma carta na qual anulava essas sanções e restabelecia sua condição sacerdotal. Em sua cama do hospital em Managua o Núncio Apostólico lhe impôs a estola e ambos celebraramuma missa de glória.

Sua escrita deu um giro trascendental com o Cántico Cósmico, de 1989. Sua comunicação mística com a divindade se converte numa relação de pleno erotismo, a alma que se acopla com seu criador no mais exaltado dos gozos, tal como na poesia de São Juan de la Cruz e Santa Teresa.

A exploração dos céus nesse livro é também a das recordações de seu passado, a velha Granada de sua infância, as garotas que amou na adolescência, sua juventude de cantinas, festas banais e bordéis, como se voltasse o telescópio para dentro de si mesmo.

Um grande final de festa de sua obra e de sua vida onde se fundem os mistérios da criação e os da existência, dos buracos negros à célula, das galáxias perdidas aos prótons, e onde seu olhar místico busca no Criador a explicação do todo, amor, morte, poder, loucura, passado e futuro, formas da eternidade. 

Fora agora do hospital, local a que recorreu várias vezes nos últimos meses, reemprendeu a escrita, algo que se tornou consubstancial à sua vida. Seu ofício para sempre.

Fonte: https://nuso.org/articulo/ernesto-cardenal-sergio-ramirez-poesia-cristianismo-politica-revolucion/. Tradução de Charles Rosa para a Revista Movimento.

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