“Grandes empresas dominam política”
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“Grandes empresas dominam política”

No dia de aniversário de morte do maior geógrafo brasileiro, relembramos entrevista por ele concedida sobre os rumos da globalização e a inserção brasileira nesse processo.

Milton Santos 24 jun 2021, 14:31

O geógrafo Milton Santos, 74 anos, é um dos poucos brasileiros cuja especialidade é pensar com inteligência. Pensar o Brasil e suas mazelas; pensar o brasileiro e suas carências. Ele agora faz parte de uma comissão que promove uma inovação na vida pública brasileira. Independente e sem compromisso com as idéias do governo, a comissão vai estudar os resultados até agora obtidos pela globalização e seu impacto em São Paulo. Quando tudo estiver pronto, a comissão entrega o trabalho para a prefeita Marta Suplicy.

Milton Santos está mais magro e, por conta de um tratamento de saúde, faz várias vezes ao dia o que os baianos, como ele, adoram fazer: merendar, panetone com suco, por exemplo.

E está cada vez mais perspicaz. A cabeça quase branca de Milton Santos, que viveu na França por muitos anos voluntária e involuntariamente, o leva à condição de um dos poucos negros intelectuais que o Brasil permitiu ascender. Na marra. Ele fez o primário em casa, com os pais, professores. Era bom aluno em matemática, mas foi demovido da idéia de estudar na Escola Politécnica por sua família, que sabia que os negros não eram bem recebidos na instituição.

Foi assim que o Brasil ganhou o geógrafo Milton Santos. O mesmo Brasil que, ele acredita, sorrateiramente começa a tomar consciência de que a convivência entre dois países dentro de um mesmo território é inviável. “A gente conversa com o tipo mais humilde, mais pobre, e toda a gente tem consciência de que a educação é essencial para seus filhos”, diz.

Milton Santos é o típico aposentado brasileiro. Continua trabalhando. Dá aulas nos cursos de mestrado e doutorado da Universidade de São Paulo e lidera um grupo de pesquisas que reúne 20 estudiosos. Nos próximos dias, lança o livro “O Brasil: território e sociedade no início do século 21”, da Editora Record, assinado com Maria Laura Silveira e vários de seus alunos.

Folha – O que a comissão vai estudar?

Milton Santos – Tem dois aspectos principais: a própria organização da cidade, como ela é, como é a situação, qual a sua relação com o processo de globalização e a outra é a relação da cidade com a federação. Somos um grupo de pessoas vindas de diferentes horizontes intelectuais. Mas ainda não há nada a falar. É um plano.

O que o senhor pensa sobre a inserção do Brasil no movimento de globalização?

A maneira como o país se deixou inserir nesse processo, de forma um pouco atabalhoada, conduz a uma grande desordem no meu modo de ver. Na verdade, sempre houve dois brasis. O que a globalização fez foi dar a esse fenômeno uma dimensão maior porque ela conduz à exclusão.

O que o senhor pensa sobre o mercado global?

Não existe isso. O que existe são empresas com vocação planetária, mas que jamais se realizam completamente. Não há um mercado global e é por isso também que não há uma regulação global. A prova disso é que as crises estouram umas atrás das outras, e aí se buscam explicações parciais, quando a explicação é o próprio sistema -a globalização, que é uma provedora permanente de crises.

E os avanços tecnológicos, a facilidade de comunicação?

A globalização é mais um momento da condução da história da humanidade e um momento muito importante porque é como se os sonhos que a humanidade acalentou durante séculos estivessem a ponto de se realizar. Nós alcançamos uma aceleração das técnicas, uma aceleração das relações interpessoais, uma aceleração na produção de conhecimento. É um momento que privilegia a nossa geração e que resulta, de um lado, nesse domínio sobre as forças naturais e, de outro, no uso político dos recursos técnicos disponíveis.

É aí que começam os problemas?

Exatamente. A política deixou de ser feita por institutos, instituições, governos e passou a ser feita por grandes empresas. É evidente que ainda há governos, é evidente que organismos internacionais buscam criar uma moralidade internacional, é evidente que a globalização permitiu que se criasse no mundo inteiro uma enorme possibilidade de movimentos independentes, que discutem e defendem amplas causas humanitárias.

Mas o poder sobre a produção, sobre o trabalho e a vida das pessoas é potencializado nas mãos de um número de empresas cada vez menor. Esse é que é o problema. E aí essa globalização que deveria ser democrática entre aspas, com uma produção da humanidade igualitária, acaba sendo exatamente contrário. Alguns países têm os meios de comandar e os outros ficam na periferia.

É o caso do Brasil, por exemplo?

A globalização, tal como ela se relacionou com o Brasil, criou uma seletividade maior ainda no uso dos recursos públicos que se tornaram muito mais orientados para a vida produtiva do que para a problemática social. A educação, por exemplo, é um dado da problemática social. É evidente que o ministro da Educação pode se vangloriar de haver aumentado o número de matrículas, mas a questão não é estatística e sim que tipo de educação se oferece e para quê? O que parece existir no Brasil é uma educação em duas ou três velocidades diferentes: segundo, o lugar que estou na sociedade posso receber uma educação qualitativamente boa ou qualitativamente ruim, e aí as minhas oportunidades no mundo do conhecimento são condicionadas por essa formação.

O que o senhor acha da ênfase ao estudo técnico?

Há um entendimento da coisa técnica que me parece equivocado no trabalho do ministério da Educação. É a valorização da técnica em si e não do fenômeno técnico. Isso conduz a dar ênfase ao treinamento, que não é educação. O treinamento consiste em preparar rapidamente a mão de obra para tarefas que às vezes deixam de ter razão de ser, enquanto que a educação é algo que instrumentaliza o homem para ser mais e melhor cidadão, para entender mais e melhor o mundo, para se tornar um ser humano na sua plenitude.

Nas condições atuais há uma insistência nesse aspecto instrumental da educação, em detrimento do aspecto propriamente formativo e isso se vê na proliferação de cursos noturnos, os cursos por correspondência, os telecursos, que são formas simplórias que podem enganar as pessoas durante algum tempo, mas não facilitam a incorporação a uma vida plena, que é o objetivo da educação.

Assim como a educação, a saúde, habitação…

Há uma certa anuência no sentido de que certos problemas somente podem ser enfocados em conjunto e a partir de uma idéia de futuro, um projeto de civilização. O Brasil nunca teve um cidadão brasileiro mesmo. Algumas pessoas recebem tratamentos privilegiados e as outras são coisas.

O senhor não viu essa perspectiva mais próxima quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a presidência?

Não porque nos anos anteriores ao processo de sua eleição eu não estava aqui, não estava contaminado pelas simpatias pessoais que o presidente inspira. Raras são as pessoas tão sedutoras quanto ele. Não tive nenhuma ilusão.

E agora, o senhor tem alguma esperança em relação a um projeto de civilização para o país?

Nós estamos retomando, com menor evidência, com menor força, o exercício de pensar porque esse exercício não é muito ajudado pela formas de institucionalização da vida intelectual. Essa formidável burocratização das universidades, essa idéia de que a universidade é uma instituição como qualquer outra, o que inclui até mesmo a sua associação com o mercado, tudo isso constitui uma atitude de dificuldade muito forte para a produção desse pensamento. Paralelamente, constitui um estímulo muito forte para quem decide resistir.

O senhor, por exemplo…

A impressão que eu tenho é de que há uma aceleração muito forte na produção de um ente político no Brasil. A consciência está em gestação. Creio que há uma espécie de revolução que nem sempre é silenciosa que se está dando e que nós não temos as antenas para captar porque nos acostumamos a um outro tipo de raciocínio sobre o que é fazer política. Há toda uma produção da política que é paralela às atividades dos partidos e vai confluir para alguma coisa que pode ser orientada no sentido de melhoria das condições gerais do país.

Orientada por quais lideranças?

Religiosos, políticos, intelectuais, sobretudo artistas, que são os grandes líderes hoje em dia. Compositores como Gilberto Gil, por exemplo. E há toda uma sociedade desorganizada que cada vez mais começa a descobrir o seu lugar. Quando eu falo políticos, estou incluindo as igrejas, que são cheias deles, os sindicatos e pessoas que se esmeram em purificar a sua vontade de ser consequente. A confluência não virá da mobilização, mas da possibilidade de conscientização; daí o papel da universidade pública. A universidade não é o lugar para mobilização, nós não somos nem agitadores e nem militantes; nosso trabalho é de pensar e exprimir com força esse pensamento. Creio que é esse elo que está se criando hoje no Brasil.

Quais seriam os políticos?

Uns que são iluminados e aqueles que se preocupam com visões fundadas nas análises concretos. Hoje há um certo nível de exigência ética do político que não se discute mais. A descoberta de certas formas de hipocrisia no comportamento político, apesar do mascaramento pelo marketing e pela mídia, já está se dando. Também por isso eu creio que há alguma coisa em plena gestão.

Perguntado certa vez pela revista “Caros Amigos” se teria medo de entrar num restaurante chique e ser olhado com desdém por ser negro, o senhor respondeu que sim. É isso mesmo em 2001?

Os negros têm medo sim. Não é só discriminação. Discriminação tem nos Estados Unidos, só que lá o negro iria quebrar o restaurante, o que seria considerado justo; aqui a polícia seria convocada para conter qualquer manifestação. Eu me lembro de duas pessoas importantes, o Florestan Fernandes e Celso Furtado, em duas ocasiões diferentes, uma em Nova York e outra em Paris, de onde ambos me disseram: daqui a alguns anos vamos ter no Brasil reações muito violentas da parte dos negros em relação à situação em que eles se encontram. Isso eles me disseram há vinte anos.

Mas não aconteceu.

Está perto de acontecer, espero que aconteça. Creio que inclusive processos como o da distribuição da educação vão ajudar porque os negros que conseguem estudar descobrem que não têm igual acesso às oportunidades e, sobretudo, eles sabem que raramente estarão em grandes escolas. Há algo que vai acelerar. São grupos poucos numerosos e alguns deles se deixam cooptar de uma forma ou de outra. Mas essa cooptação vai se tornar impossível daqui a algum tempo e daí o vaticínio de Florestan Fernandes e Celso Furtado vai se realizar.

O seu novo livro é uma discussão sobre o Brasil?

Uma das dificuldades de se discutir o Brasil é que não se fazem mais estudos de conjunto. Há uma especialização, uma pontualização que não permite um debate mais fecundo. A partir de um certo número de premissas, nós decidimos fazer uma análise do Brasil da globalização, seus efeitos no país e no território brasileiro, considerado o lugar da vida da sociedade.

A conclusão essencial é que um território reflete a dificuldade de se governar o país. São as grandes empresas que governam o território e os governos perdem a autonomia de decisão. Há uma forma de ingovernabilidade que nós vamos mostrar através dessa questão. Por exemplo, a geografia da publicidade, que repete a concentração de renda; a informação e como ela modela a vida nacional; as periferias urbanas. O Brasil, daí a pretensão do título.

Entrevista realizada por Célia Chaim para a Folha de S.Paulo em 8 de janeiro de 2001.


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Pedro Micussi