O critério ambiental como política de higienização e instrumento do racismo ambiental no caso do Beco do Morcazel na APA de Campinas

Sobre as ameaças de remoção da comunidade de Beco Morcazel (Campinas-SP).

Mariana Conti e Tiago Lira 7 jul 2021, 19:02

Nossa conjuntura quase ficcional, onde diversas crises se dão de forma simultâneas, impõe ao conjunto da sociedade que façamos profunda reflexão do nosso papel individual e coletivo na atuação da construção de medidas efetivas que enfrentem a crise sistêmica do modelo de exploração, de produção e de consumo.

A política de morte do governo Bolsonaro já causou a perda de mais de 500 mil vidas de brasileiras e brasileiros. Política está traduzida na “imunidade de rebanho”, sendo que o governo federal e o próprio presidente atuaram como principal elemento de disseminação do vírus, combinada com a recusa da aquisição de vacinas em 2020 e, já tardiamente em 2021, a tentativa de compra superfaturada no que tem se revelado um grande esquema de corrupção. Com esse pano de fundo, de mortes, se desenrola uma crise econômica sem precedentes com quase duas dezenas de milhões de brasileiros desempregados e uma considerável parcela da população vivendo abaixo da linha da miséria. Em Campinas, como em outras metrópoles do país, a especulação imobiliária e o déficit de moradia são estruturais e correspondem à duas faces da mesma moeda.

Nossa crise é uma crise civilizatória, de modelo de desenvolvimento e de acúmulo de riquezas.  Em meio a essa crise é importante e fundamental que a sociedade se lance na efetiva proteção do meio ambiente. Há anos algumas entidades e movimentos têm se colocado na linha de frente da defesa dos direitos dos rios e das águas, sempre com olhos voltados para a sadia qualidade de vida de todos!

É indiscutível que um setor da sociedade civil milita ferozmente na defesa intransigente da preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, esse mesmo setor tem sido crítico da leniência e lentidão dos órgãos de controle na atuação da defesa do meio ambiente, e é sobre a tutela destes órgãos de correição que grandes empreendimentos impactam de forma irreversível o equilíbrio ecológico.

Em Campinas, a sociedade civil organizada, anos após anos, tem denunciado uma política de desenvolvimento urbano que só interessa aos especuladores imobiliários e ao modal de transporte ultrapassado e altamente poluente. Campinas se desenvolve gentrificando, aqui o liberalismo tem sua face revelada, o interesse econômico sempre se sobressai ao interesse transgeracional. Sob os olhos e com o aval dos poderes – executivo (em todas as suas esferas), do legislativo e do judiciário – a defesa do meio ambiente em Campinas não goza de agilidade, falta publicidade nos atos e os poderes geralmente se colocam como intermediadores de negociações inegociáveis, em geral penalizando a sociedade como um todo para contemplar interesses de setores econômicos poderosos. Tudo isso acontece à revelia do controle social da participação popular. Nesses poderes, as exceções são raras e valiosas. Para confirmar essa tese basta tentar acessar os TAC’s (Termo de Ajuste de Conduta), quantos são? Foram cumpridos? Quantos destes firmados foram aditados? Poderíamos discorrer sobre vários casos emblemáticos em Campinas e região como os TAC do Shopping D. Pedro e os 13 aditamentos nos TAC do Aterro Mantovani que até hoje continua fazendo estrago para saúde pública e para o meio ambiente.  

O caso do Beco Morcazel em Sousas.

O Beco Morcazel é formado por uma comunidade pobre que vive nessa área desde meados dos anos 1980, a maior parte dos moradores são membros da mesma família, são cerca de 40 núcleos familiares. A pequena vila é ligada por estreitos corredores, um local acolhedor, organizado e uma vizinhança unida e respeitosa. O detalhe desta história é que esses indesejáveis moram a poucos metros do centro de Sousas, uma área altamente valorizada e desejada pela especulação imobiliária!

Por anos essa pequena comunidade tem sofrido com ameaças de remoção. A última tentativa ocorreu no mês passado, quando os moradores foram surpreendidos por máquinas apoiadas com um forte aparato policial pronto a executar a derruba das casas. O relato dos moradores aponta muita truculência por parte da prefeitura municipal de Campinas. O interessante é que não existe uma ordem judicial para remoção das famílias e sim um inquérito do ministério público exigindo da prefeitura de Campinas a remoção dos moradores. Esse inquérito foi aberto pela promotoria de justiça de meio ambiente com base em denúncia, e o argumento é que as famílias estão em uma área de inundação, e destruindo a área de preservação permanente.

Somos nós os ambientalistas que temos defendido a ampliação da proteção dos rios, na maior parte sem conseguir encontrar eco nas instituições. São poucos mandatos fazendo uma discussão sobre o direito do rio e o rio como sujeito de direito, são poucas promotorias no país fazendo o enfrentamento a favor da preservação dos rios e corpos d’água! Ora então parece que a PJ de meio ambiente radicalizou na defesa do rio incluindo uma área além da APP no critério de proteção e forçou a Prefeitura de Campinas a agir!

Devemos lembrar do contexto em que vivemos, nesse contexto pandêmico já existe uma decisão do supremo para não se efetuar desapropriações! Vale ressaltar o quão desumano é despejar crianças e idosos, ainda mais em meio a uma pandemia que já matou 500 mil brasileiros!

A crueldade do ato contra os moradores do Beco Morcazel vem fantasiada de defesa do interesse ambiental, no entanto uma análise superficial do local e do seu perímetro traz à tona a política higienista de gentrificação e o racismo ambiental.

Veja vocês que dura coincidência, a única comunidade perto do centro de Sousas é atacada há décadas com argumentos estapafúrdios e descabidos. Uma comunidade que se diferencia por sua condição de classe, por sua origem étnica e pela cor da sua pele!

Se fosse um problema de inundação e risco recorrente a vida, não se justificaria a urgência em meio à maior crise hidrológica da história da bacia do rio Paraná, bacia que o Rio Atibaia está incluído. Qual a urgência de despejar famílias que ocupam legitimamente uma área há quatro décadas? Qual a urgência ambiental que só atinge o beco do Morcazel e não atinge outras moradias na margem do rio Atibaia?

Qual o planejamento do Ministério Público e da Prefeitura Municipal em relação às grandes empresas que estão exatamente na mesma situação que os moradores do Beco do Morcazel? Concluímos que a ação tem caráter racista e antipopular e esperamos que o Ministério Público possa construir uma resposta à altura do desafio de se desvincular de uma ação arbitraria, injusta e racista!


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