As lágrimas furtivas pelo Afeganistão são mentira
Reprodução

As lágrimas furtivas pelo Afeganistão são mentira

A ocupação era uma estratégia condenada, a produção de droga aumentou, um exército gigante colapsou, nada parece fazer sentido no Afeganistão.

Francisco Louçã 31 ago 2021, 16:44

Não podia ser de outra forma: assim que o Presidente afegão voou do palácio, os responsáveis ocidentais começaram a apontar o dedo a todos os culpados possíveis. Anthony Blinken, que tutela a política externa dos EUA, queixou-se do despesão gasto em formar o regime (dois biliões de dólares) e armar 300 mil soldados afegãos, que debandaram sem um tiro. Jens Stoltenberg, o secretário-geral da NATO, acrescentou que os chefes de Cabul sabiam que o dia viria e fugiram, mas também criticou os aliados, lembrando que, assim que Washington assinou o acordo com os talibãs para o fim da ocupação, não houve nenhuma potência militar que se chegasse à frente para pagar e aguentar a ocupação (que, aliás, não seria possível). Nesta curiosa cacofonia, vai-se revelando como o desgaste da mais longa guerra norte-americana impôs a Trump e a Biden a realidade da política. E essa é que é a confirmação, mais do que a notícia: a Casa Branca não tem capacidade de impor o seu domínio militar em todos os lugares do mundo.

Uma ocupação é uma guerra perdida

Quando, em 2019, o “The Washington Post” revelou os segredos de um relatório oficial de duas mil páginas sobre a guerra do Afeganistão, baseado em entrevistas a generais norte-americanos, os “Afghan Papers” já não provocaram grande comoção. Adivinhava-se a dimensão da farsa. Mas não se podia antecipar a crueza das declarações dos comandantes no terreno. O general Douglas Lute, um dos responsáveis pela guerra afegã com Bush e Obama, disparou que “não compreendemos o fundamental do Afeganistão, não sabíamos o que estávamos a fazer. Não tínhamos a menor ideia do que estávamos a fazer. Se o povo americano soubesse da dimensão desta disfunção…”. Tariq Ali, uma das vozes mais reconhecidas da oposição paquistanesa e da luta contra a guerra, lembra que Donald Rumsfeld, o homem que levou Bush à ocupação do Iraque, confidenciou logo em 2003 que “não sei bem quem são os tipos bons no Afeganistão e no Iraque. Li todos os relatórios de inteligência e parece que sabem muito, mas, de facto, quando vamos ao fundo da questão, descobre-se que não têm nada que seja utilizável”.

Estas operações começaram mal, continuaram pior e acabaram como tinham que acabar. Colocando 775 mil soldados no Afeganistão desde 2001, os EUA não podiam vencer. Por isso, Trump assinou com os talibãs o acordo para a saída das tropas, em fevereiro de 2020, na presença da Índia, China e Paquistão.

Barões de droga e tiranos, os bons amigos

Um dos mistérios da ocupação é que, ao longo dos 20 anos, o Afeganistão reforçou a sua posição como o maior produtor de ópio (muito distante vem Myanmar, sob tutela militar), gerando 90% da colheita mundial. Com a exceção de um único ano, 2001, quando os talibãs impuseram uma proibição de plantio para aplacarem a pressão ocidental, essa produção foi sempre ampliada. Com a ocupação da NATO, tornou-se um sucesso, tendo mais do que triplicado a área utilizada para o ópio, como revela a BBC (gráfico baixo). Este negócio tem rendido por ano cerca de 200 milhões de dólares aos talibãs, que controlam parte da área cultivada, mas seria incompreensível sem a conivência do exército ocupante, cuja tecnologia permite destruir do ar um jipe em movimento.

A ocupação era uma estratégia condenada, a produção de droga aumentou, um exército gigante colapsou, nada parece fazer sentido no Afeganistão. Ora, nos anos 80, a colaboração de Washington com os chefes talibãs não teve só como objetivo desgastar a ocupação soviética. Tratava-se também de criar um polo aliado, e estas milícias foram requisitadas e transportadas para combater na Bósnia na década seguinte. A história é longa e foi assim que foram armados os mujahedin, entre os quais Bin Laden. Voltaram agora ao poder. As “lágrimas furtivas” sobre a sua queda e ascensão são todas mentira.

Não há duas sem três

O abandono de Cabul, 46 anos depois da fuga de Saigão, marca a política internacional tanto quanto o efeito da primeira derrota do exército de Washington, no Vietname. Nesse momento, vivendo-se uma transição de poder com um presidente interino, Gerald Ford, a paralisia da força militar norte-americana e as suas dificuldades políticas abriram o terreno para ajustamentos no mapa das potências mundiais. Agora, com a segunda derrota militar da sua história, o dispositivo de forças dos EUA fica restringido, mesmo que detenha uma supremacia tecnológica incomparável. Só que se pode fazer tudo com as baionetas, menos sentar-se em cima delas, como lembrava Napoleão: no caso, os EUA podem ganhar uma guerra e terão a certeza de a perder a seguir. A derrota em Cabul acelera a disputa pela liderança do mundo.

Cultivo de ópio no Afeganistão – Fonte BBC

Artigo originalmente publicado em Expresso. Reprodução da versão disponibilizada pelo esquerda.net.


TV Movimento

Balanço e perspectivas da esquerda após as eleições de 2024

A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco debate o balanço e as perspectivas da esquerda após as eleições municipais, com a presidente da FLCMF, Luciana Genro, o professor de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, e o professor de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni

O Impasse Venezuelano

Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 12 nov 2024

A burguesia pressiona, o governo vacila. É hora de lutar!

Governo atrasa anúncio dos novos cortes enquanto cresce mobilização contra o ajuste fiscal e pelo fim da escala 6x1
A burguesia pressiona, o governo vacila. É hora de lutar!
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 54
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional

Autores

Pedro Micussi