As lágrimas furtivas pelo Afeganistão são mentira
A ocupação era uma estratégia condenada, a produção de droga aumentou, um exército gigante colapsou, nada parece fazer sentido no Afeganistão.
Não podia ser de outra forma: assim que o Presidente afegão voou do palácio, os responsáveis ocidentais começaram a apontar o dedo a todos os culpados possíveis. Anthony Blinken, que tutela a política externa dos EUA, queixou-se do despesão gasto em formar o regime (dois biliões de dólares) e armar 300 mil soldados afegãos, que debandaram sem um tiro. Jens Stoltenberg, o secretário-geral da NATO, acrescentou que os chefes de Cabul sabiam que o dia viria e fugiram, mas também criticou os aliados, lembrando que, assim que Washington assinou o acordo com os talibãs para o fim da ocupação, não houve nenhuma potência militar que se chegasse à frente para pagar e aguentar a ocupação (que, aliás, não seria possível). Nesta curiosa cacofonia, vai-se revelando como o desgaste da mais longa guerra norte-americana impôs a Trump e a Biden a realidade da política. E essa é que é a confirmação, mais do que a notícia: a Casa Branca não tem capacidade de impor o seu domínio militar em todos os lugares do mundo.
Uma ocupação é uma guerra perdida
Quando, em 2019, o “The Washington Post” revelou os segredos de um relatório oficial de duas mil páginas sobre a guerra do Afeganistão, baseado em entrevistas a generais norte-americanos, os “Afghan Papers” já não provocaram grande comoção. Adivinhava-se a dimensão da farsa. Mas não se podia antecipar a crueza das declarações dos comandantes no terreno. O general Douglas Lute, um dos responsáveis pela guerra afegã com Bush e Obama, disparou que “não compreendemos o fundamental do Afeganistão, não sabíamos o que estávamos a fazer. Não tínhamos a menor ideia do que estávamos a fazer. Se o povo americano soubesse da dimensão desta disfunção…”. Tariq Ali, uma das vozes mais reconhecidas da oposição paquistanesa e da luta contra a guerra, lembra que Donald Rumsfeld, o homem que levou Bush à ocupação do Iraque, confidenciou logo em 2003 que “não sei bem quem são os tipos bons no Afeganistão e no Iraque. Li todos os relatórios de inteligência e parece que sabem muito, mas, de facto, quando vamos ao fundo da questão, descobre-se que não têm nada que seja utilizável”.
Estas operações começaram mal, continuaram pior e acabaram como tinham que acabar. Colocando 775 mil soldados no Afeganistão desde 2001, os EUA não podiam vencer. Por isso, Trump assinou com os talibãs o acordo para a saída das tropas, em fevereiro de 2020, na presença da Índia, China e Paquistão.
Barões de droga e tiranos, os bons amigos
Um dos mistérios da ocupação é que, ao longo dos 20 anos, o Afeganistão reforçou a sua posição como o maior produtor de ópio (muito distante vem Myanmar, sob tutela militar), gerando 90% da colheita mundial. Com a exceção de um único ano, 2001, quando os talibãs impuseram uma proibição de plantio para aplacarem a pressão ocidental, essa produção foi sempre ampliada. Com a ocupação da NATO, tornou-se um sucesso, tendo mais do que triplicado a área utilizada para o ópio, como revela a BBC (gráfico baixo). Este negócio tem rendido por ano cerca de 200 milhões de dólares aos talibãs, que controlam parte da área cultivada, mas seria incompreensível sem a conivência do exército ocupante, cuja tecnologia permite destruir do ar um jipe em movimento.
A ocupação era uma estratégia condenada, a produção de droga aumentou, um exército gigante colapsou, nada parece fazer sentido no Afeganistão. Ora, nos anos 80, a colaboração de Washington com os chefes talibãs não teve só como objetivo desgastar a ocupação soviética. Tratava-se também de criar um polo aliado, e estas milícias foram requisitadas e transportadas para combater na Bósnia na década seguinte. A história é longa e foi assim que foram armados os mujahedin, entre os quais Bin Laden. Voltaram agora ao poder. As “lágrimas furtivas” sobre a sua queda e ascensão são todas mentira.
Não há duas sem três
O abandono de Cabul, 46 anos depois da fuga de Saigão, marca a política internacional tanto quanto o efeito da primeira derrota do exército de Washington, no Vietname. Nesse momento, vivendo-se uma transição de poder com um presidente interino, Gerald Ford, a paralisia da força militar norte-americana e as suas dificuldades políticas abriram o terreno para ajustamentos no mapa das potências mundiais. Agora, com a segunda derrota militar da sua história, o dispositivo de forças dos EUA fica restringido, mesmo que detenha uma supremacia tecnológica incomparável. Só que se pode fazer tudo com as baionetas, menos sentar-se em cima delas, como lembrava Napoleão: no caso, os EUA podem ganhar uma guerra e terão a certeza de a perder a seguir. A derrota em Cabul acelera a disputa pela liderança do mundo.
Artigo originalmente publicado em Expresso. Reprodução da versão disponibilizada pelo esquerda.net.