Pensar nos (novos) rumos da esquerda e da direita latino-americanas em um mundo em crise
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Pensar nos (novos) rumos da esquerda e da direita latino-americanas em um mundo em crise

Prefácio escrito por Franck Gaudichaud e Éric Toussaint a pedido da revista cubana Temas para um livro coordenado por Julio César Guanche a ser publicado na Argentina com o título “Izquierdas y derechas en América latina”

Eric Toussaint e Franck Gaudichaud 30 set 2024, 10:44

Foto: VS/Reprodução

Via Viento Sur

Nos últimos anos, o mundo tem sido marcado por várias crises. Poderíamos falar de uma “policrise” global, interseccional e interconectada do capitalismo neoliberal: profunda turbulência política e econômica, guerras e violência armada, colapso acelerado dos ecossistemas e do clima, pandemias e extrativismo predatório, redefinições repentinas de equilíbrios geopolíticos e tensões interimperialistas etc. Mais uma vez, a humanidade está passando por grandes furacões e desafios em um momento histórico em que, claramente, sua própria sobrevivência como espécie e sua (in)capacidade de habitar este planeta de forma coletiva e pacífica já estão em jogo. A grande revolucionária alemã Rosa Luxemburgo declarou, na década de 1910, quando era meia-noite do século passado: socialismo ou barbárie! Esse lema ressoa hoje com grande força1, em um contexto em que os povos e os movimentos populares continuam resistindo, se mobilizando, debatendo, propondo, mas sem conseguir superar a fragmentação estrutural, nem vemos – por enquanto – forças políticas emancipatórias com capacidade real de acompanhar, consolidar essas resistências e co-construir um rumo de médio prazo para alternativas democráticas e ecossociais de “raizal” (seguindo o sociólogo colombiano Orlando Fals Borda).

No entanto, se olharmos para as Américas Latinas e o Caribe nas últimas duas décadas, as terras de Berta Cáceres, José Carlos Mariátegui e Marielle Francopar parecem estar buscando novos caminhos sociais e políticos, despertando esperanças na esquerda em escala global, além da queda do Muro de Berlim e de um neoliberalismo voraz. Virada à esquerda, onda progressista, fim do neoliberalismo, maré rosa: a inflexão sociopolítica vivida por muitos países da América do Sul e Central nos anos 2000 surpreendeu muitos observadores e até fascinou muitos outros, especialmente da Europa2. O desafio – especialmente para países como Bolívia, Venezuela e Equador, que haviam construído uma narrativa e uma promessa transformadora – era encontrar caminhos político-eleitorais e nacionais-populares em uma chave pós-neoliberal e anti-imperialista. Para alguns ativistas e movimentos, não se tratava apenas de democratizar a democracia, mas também de não permanecer preso a um novo modelo baseado no extrativismo de commodities, na sujeição ao mercado global e em várias formas de colonialismo interno e externo. Mais de 20 anos após o início desse ciclo, podemos ver até que ponto esse objetivo transformador não foi alcançado, embora em ritmos e realidades muito diferentes, dependendo dos cenários regionais e das realidades nacionais de Abya Yala3. Obstáculos e dificuldades, desencanto e desilusão se espalharam em vários países governados pela esquerda e pelo progressismo, sem que se perceba uma dinâmica homogênea. Paralelamente, as forças conservadoras e as novas forças de extrema direita conseguiram capitalizar esse contexto de múltiplas crises para impor novas narrativas políticas e culturais furiosamente antiprogressistas, apoiadas por grandes corporações de mídia e por oligarquias econômicas locais e imperiais, para, no final, se erguerem como alternativas populares: Javier Milei é o último elo dessa cadeia reacionária global4. E Nayib Bukele Ortez, reeleito como presidente de El Salvador em fevereiro de 2024, desenvolveu um estilo de governo que lembra a experiência da presidência de Rodrigo Duterte nas Filipinas entre 2016 e 2022, durante a qual milhares de execuções extrajudiciais contra setores populares lumpenizados foram realizadas pelas forças repressivas sob seu controle em nome da luta contra o tráfico de drogas. Daniel Noboa, eleito presidente do Equador em 2023, poderia tentar seguir nessa direção.

Como mostra este trabalho, é fundamental estabelecer um balanço crítico e argumentativo das últimas décadas, a partir das ciências sociais e com sua metodologia, aprofundando e debatendo ensaios e publicações que tentam decifrar a América Latina dos tempos atuais. O objetivo é analisar, em sua complexidade cambiante, o período iniciado nos anos 2000 (com a eleição de Hugo Chávez em 1999), produto das lutas sociais e plebeias contra a hegemonia neoliberal do período anterior. Um salto inicial seguido por uma multiplicidade de vitórias eleitorais que permitiram uma relativa era de ouro (entre 2005 e 2011) dos governos de esquerda e progressistas, com várias formas de Estado compensatório e redistributivo, uma notável queda na pobreza e novas formas de participação política, seguidas por um claro refluxo regional, uma queda no preço das matérias-primas e uma retomada conservadora (2011-2018), marcado – entre outros – pela profunda crise da revolução bolivariana, levando ao caótico momento pós-pandemia dos últimos anos (2019-2023), em que testemunhamos a vitória de Bolsonaro no Brasil, a confirmação da dinâmica de direita no Equador, mas também revoltas populares no Chile, Haiti, Colômbia, Peru e Equador. Ao mesmo tempo, uma terceira e claramente limitada (em comparação com o início do século) nova onda de esquerdismo institucional (ou “progressismo tardio”, de acordo com Massimo Modonesi) começou a tomar forma no Chile com a eleição de Gabriel Boric (2021), na Colômbia com a vitória de Gustavo Petro (2022), Honduras com a presidência de Xiomara Castro (2022), Guatemala com a eleição de Bernardo Arévalo em 2023, mas também – desde 2018 – com a eleição de Manuel López Obrador no México ou em 2020 com o retorno democrático do Movimento para o Socialismo (MAS) na Bolívia.

Compreender esses processos a partir de diferentes pontos de vista, geografias e sensibilidades é precisamente o que este livro coletivo, coordenado pelo pesquisador Julio César Guanche e publicado pela revista cubana Temas, nos convida a fazer. O principal interesse desta publicação é cobrir as realidades políticas e sociais de vários países: Argentina, Brasil, Chile, Equador, México, Peru e Cuba, a partir de um exame crítico das continuidades e dos novos fenômenos na região, especialmente as transformações sociais e culturais subterrâneas que estão por trás das mudanças políticas em curso. Assim, este livro pluralista trata dos processos de esquerda ou progressistas no poder, bem como dos conservadores e reacionários. Descreve as dimensões plebéias do populismo ou da extrema direita (no Equador, Brasil e Peru) e decifra as contradições dos progressistas no poder. E se os autores consideram aqui os aspectos partidários e institucionais (por exemplo, com relação à direita equatoriana ou à esquerda chilena e mexicana), não deixam de lado o amplo campo das mobilizações coletivas e da sociedade civil organizada: movimentos sociais afrodescendentes, lutas feministas e antifeministas, movimentos religiosos fundamentalistas e movimentos indígenas estão todos presentes nessa obra. Sem dúvida, a diversidade de enfoques e origens dos pesquisadores aqui incluídos, todos com uma longa história de trabalho e de vida em diferentes países da região, permite que o leitor tenha uma visão interessante, plural e contrastada do continente na atualidade.

O cientista político Noberto Bobbio, em seu já clássico livro Derecha e Izquierda. Razões e Significados de uma Distinção Política, sublinhou de forma convincente que distinguir os dois polos desse binômio pode ser um bom ponto de partida para pensar em um mapa político. Nessa distinção, Bobbio parte do eixo liberdade/igualdade para classificar as forças políticas: os direitistas reivindicando de forma privilegiada o conceito de “liberdade” (do mercado e/ou do indivíduo em particular) e os esquerdistas o de “igualdade” (e de emancipação social e coletiva). Trazendo essa reflexão para a América Latina e o Caribe, e rompendo com as visões eurocêntricas, seria necessário introduzir um conjunto de outros conceitos para pensar essa distinção, como a colonialidade do poder e as concepções nacionais/plurinacionais do Estado, as noções de soberania popular e anti-imperialismo, os direitos dos povos indígenas e as relações sociais raciais ou de gênero, os modelos de desenvolvimento e socioambientais etc. Além dessas caracterizações, são sobretudo as áreas cinzentas e os recantos dos atuais espaços sociopolíticos latino-americanos que este livro confirma, espaços que não podem ser resumidos em uma simples dicotomia esquerda/direita. Esta publicação oferece versões atualizadas de textos que apareceram em um dossiê na revista Temas em 2022. Em sua apresentação, os coordenadores observaram com razão:

A chegada de novos governos de esquerda e centro-esquerda identificados como a “maré rosa” na América Latina e no Caribe dificilmente se refere a um fenômeno eleitoral, cujo ambiente político é mais complexo. Nele coexistem diferenças estratégicas, cruzamentos de bases sociais entre zonas de esquerda e conservadoras, como o neo-evangelismo, rejeições ao autoritarismo por parte de alguns movimentos progressistas, críticas à justiça de gênero, racial e ambiental, demandas dos povos indígenas e outros temas da agenda política, como a transição energética, a perpetuação do extrativismo e sua correlação com um sistema de democracia popular, seja ele chamado de socialismo ou não. Embora tenham perdido assentos no governo, as correntes conservadoras ganharam uma base popular, o que se reflete não apenas em sua representação parlamentar, mas também no reforço do consenso neoliberal entre essas outras bases, sobre “liberdade” e “democracia” e contra o “populismo”. Essas correntes não deixaram de usar a repressão para manter um regime de desigualdade caracterizado por grande devastação social.5

Mais do que nunca, as realidades latino-americanas mostram a turbulência das sociedades e de todas as forças políticas: uma situação em que a extrema direita libertária e anarcocapitalista consegue varrer o eleitorado em setores populares precários, ao mesmo tempo em que as correntes políticas que emergem do seio da esquerda incorporam práticas autoritárias ou estão desconectadas dos movimentos sociais, feministas ou ecológicos. Isso é o que vários capítulos do livro confirmam e o que Daniel Kersffeld enfatiza, lembrando que o progressismo foi marcado nos últimos anos por várias formas de caudilhismo, corrupção, aceitação de um modelo desenvolvimentista extrativista ou a implementação de políticas de linha dura e militarização, que até recentemente pareciam ser o patrimônio político da direita. Em outro capítulo, a pesquisadora e ativista feminista antirracista Alina Herrera Fuentes enfatiza que o conservadorismo patriarcal não vem apenas das fileiras da direita:

os caminhos nacionais dos progressistas foram e são profundamente frágeis e descontínuos. Durante certos períodos e em certas questões, houve progresso, que foi interrompido em outros momentos. Por exemplo, embora a taxa geral de pobreza tenha diminuído, a feminização da pobreza aumentou durante esse período. Em outras palavras, houve uma redução geral da pobreza, mas as mulheres se beneficiaram menos do que os homens das políticas que garantiram esse fato (ONU Mulheres 2017). Mas, acima de tudo, foram as políticas que desafiam as normas tradicionais de família e sexualidade – como o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o reconhecimento da identidade de gênero e, em alguns casos, a violência de gênero – que foram mais prejudicadas pelo conservadorismo dos líderes ou diretamente pelas alianças entre os políticos no poder e o neoconservadorismo religioso em expansão. As evidências a esse respeito revertem a suposição de que, por definição, a política de esquerda desafia as crenças e hierarquias conservadoras, com uma base religiosa implícita ou explícita.

Obviamente, essas observações não apagam o saldo positivo dos anos 2000-2010 em termos de luta contra a pobreza, o progresso das políticas públicas em educação, saúde ou construção de moradias, a conquista de processos constituintes originais (Bolívia, Equador, Venezuela), o impulso bolivariano para a integração regional independente dos Estados Unidos (UNASUL, CELAC, ALBA), o desenvolvimento de uma nova diplomacia Sul-Sul, em particular graças a Hugo Chávez, que tentou favorecer um eixo de esquerda anti-imperialista e, em certa medida, a Lula, que favoreceu o aumento da influência de seu país na região e no eixo BRICS. Com relação às políticas internacionais de Lula e Dilma Rousseff, seria útil levar em conta e atualizar a análise feita pelo autor marxista brasileiro Ruy Mauro Marini na década de 1960, quando ele caracterizou o Brasil como “subimperialista”. Como observa Claudio Katz:

Ruy Mauro Marini não se limitou a repetir antigas denúncias sobre o papel opressor dos Estados Unidos. Em vez disso, ele introduziu o conceito polêmico de “subimperialismo” para retratar a nova estratégia da classe dominante brasileira. Ele descreveu as tendências expansionistas das grandes corporações afetadas pela rigidez do mercado doméstico e percebeu sua promoção de políticas estatais agressivas para fazer incursões nas economias vizinhas.6

Enquanto Hugo Chávez apoiou ativamente o projeto ALBA com Cuba, com o apoio da Bolívia e do Equador em particular, e lançou as bases para um Banco do Sul, Lula priorizou o fortalecimento do papel regional e internacional do Brasil como uma potência regional, coordenando a intervenção militar no Haiti (o que foi muito bom para Washington) e participando ativamente do lançamento do BRICS em 2009 com a Rússia, a China e a Índia (ao qual a África do Sul foi adicionada em 2011). Hugo Chávez precisava da proteção do Brasil de Lula contra o perigo representado por Washington e tinha grandes esperanças em seu apoio à criação do Banco do Sul. Embora a Ata de Fundação do Banco tenha sido assinada em Buenos Aires – em dezembro de 2008 – pelo presidente brasileiro Lula, pelo presidente argentino Néstor Kirchner, pelo presidente boliviano Evo Morales, pelo presidente venezuelano Hugo Chávez, pelo presidente uruguaio Tabaré Vázquez e pelo presidente paraguaio Fernando Lugo, o Brasil efetivamente paralisou a implementação do Banco.7 O Banco do Sul nunca funcionou8 e nenhum crédito foi concedido nos quinze anos desde sua criação. Na verdade, Lula favoreceu o uso do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a política de crédito na região. Esse banco concede créditos a grandes empresas brasileiras, como Odebrecht, Vale do Rio Doce, Petrobras, etc., para que possam expandir e fortalecer suas atividades no exterior. Posteriormente, Lula apoiou o lançamento das atividades do Novo Banco de Desenvolvimento criado pelos BRICS, com sede em Xangai e presidido a partir de 2023 por Dilma Rousseff.9 Lula também favoreceu o Mercosul, que correspondia aos interesses do grande capital brasileiro. O aborto do Banco do Sul deve ser incluído na avaliação crítica da primeira onda de progressismo. Assim como o relativo isolamento do Equador em 2007-2009 em sua decisão de auditar sua dívida e suspender o pagamento de grande parte dela, declarando-a ilegítima. O Equador obteve uma vitória retumbante contra seus credores privados, mas seu exemplo não foi seguido pelos outros países da região, apesar das promessas feitas na reunião de chefes de Estado da região realizada na Venezuela em julho de 2008, e contra o desejo do Presidente Fernando Lugo (Paraguai) de seguir o exemplo equatoriano.10 Assim, quando se trata de fazer um balanço da situação na região, é importante lembrar que o Equador foi o primeiro país da região a seguir o exemplo do Equador.

Assim, quando se trata de fazer um balanço, vemos todas as nuances, retrocessos e limites desse ciclo inicial, dependente de equilíbrios frágeis e transitórios, que deixaram espaço para uma recomposição da direita e até mesmo de figuras fascistas (Bolsonaro, Kast, Milei, Añez, Bukele, etc.). De fato, se este livro fala de esquerda e direita, no plural, ele também explora a própria noção de progressismo. Mas o que significa o progressismo latino-americano hoje: a crise do processo bolivariano na Venezuela, as tímidas reformas do jovem presidente Boric no Chile, o populismo de esquerda de AMLO? Essa palavra é, por excelência, conceitualmente vasta e ambígua, tornando-se uma palavra elusiva e, ao mesmo tempo, onipresente. De fato, é interessante lembrar que

essa noção de progressivismo pertence à linguagem usada historicamente pela esquerda marxista para designar programas e forças sociais e políticas social-democratas, populistas ou nacionais-populares que buscavam transformar e reformar o capitalismo introduzindo doses de intervenção e regulamentação do Estado e redistribuição da riqueza: no caso latino-americano, com um claro acento anti-imperialista e desenvolvimentista. Esse último aspecto, agora apresentado como neodesenvolvimentismo, está ligado à noção de progresso e contribui para definir o horizonte e o caráter do projeto, bem como as críticas que, a partir de perspectivas ambientalistas, ecossocialistas ou pós-coloniais, questionam frontalmente a ideia de progresso e desenvolvimento, tanto em suas expressões nos séculos passados quanto em seu prolongamento no século XXI.11

Acreditamos que este livro mostra que ambiguidades e pontos de fuga também podem ser encontrados quando se trata de definir a direita atual, o conservadorismo ou até mesmo a nova extrema direita. No entanto, o que os casos do Equador, analisado por Franklin Ramírez Gallegos, do Brasil, apresentado por Luiz Bernardo Pericás, e do Peru (artigo de Damian A. Gonzales Escudero) destacam é que uma base comum para a consolidação e a radicalização da direita atual é o confronto frontal com o progressismo, seja em sua vertente nacional-popular ou de centro-esquerda. É o que se confirma em um país que hoje é o palco capital da reação continental: a Argentina, onde a construção da candidatura outsider de Milei se baseou no ódio de uma parte do eleitorado ao peronismo e ao kirchnerismo, em um contexto de colapso econômico, hiperinflação e rejeição ao governo de Alberto Fernández, que não cumpriu suas promessas de denunciar a dívida ilegítima e odiosa contraída por Mauricio Macri com o FMI em 2018. Outro país que seria interessante incluir nas reflexões é a Nicarágua de Daniel Ortega, pois oferece o exemplo dramático de um país governado por uma força política que surgiu inicialmente de uma revolução (1979-1989) e hoje incorpora a tutela de um clã familiar repressivo, que queria implementar um programa do FMI em 2018, provocando uma rebelião maciça da juventude e de outros setores populares, e decidiu reprimi-la brutalmente para permanecer no poder.12

E aqui é necessário reconhecer outro aspecto original deste livro: ele inclui uma reflexão sobre a situação em Cuba, uma reflexão crítica necessária quando Cuba e sua revolução têm sido um “farol” central dos imaginários da esquerda latino-americana e mundial ao longo do século XX13. Manuel R. Gómez retorna à história da direita cubana, como um instrumento útil – mas não decisivo – da política estatal e imperial dos Estados Unidos, tanto nos períodos de mão de ferro de Washington em relação à ilha caribenha quanto de relativa e tímida aproximação durante o mandato de Obama. Quanto a Wilder Pérez Varona, ele pergunta com razão: Em que sentido podemos falar de esquerda e direita em Cuba hoje, dadas as especificidades da história cubana desde 1959 e seu regime sociopolítico? Lá, o próprio termo revolução tornou-se pouco claro, pois

Durante décadas, o termo revolucionário mesclou relações muito diversas. Desde muito cedo, essa condição expulsou toda a oposição da comunidade política nacional e a classificou como contrarrevolucionária. O uso do termo “revolução” serviu para sintetizar uma epopeia excepcional, cujas conquistas e realizações resistiram à beligerância sistemática dos EUA. Seu uso muitas vezes evitou tanto uma análise das contradições do processo quanto de seus atores. A premissa da unidade em face do cerco externalizou o conflito político.

Falar hoje, em Cuba, em termos de esquerda/direita, na verdade, aponta para uma questão essencial: a da representação política ou, melhor dizendo, seu déficit, no contexto de uma sociedade cada vez mais desigual e diferenciada, a ampliação da dissidência e as crescentes demandas por mudanças nas esferas econômica e cultural, mas também por uma verdadeira democratização política.

Para concluir esta breve apresentação, voltemos à nossa observação inicial. A policrise global e a percepção de que estamos entrando em um período de forte turbulência que está sendo sentida em todo o continente. Assim, como afirmam Gabriel Vommaro e Gabriel Kessler, hoje “a polarização ideológica com componentes afetivos, o descontentamento generalizado e a polarização em torno de um líder emergente estão marcando a política latino-americana, cujos eleitorados, como em outras latitudes, estão cada vez mais voláteis e insatisfeitos”.14 Talvez tenhamos aqui uma lição essencial desse livro coletivo e das urgências que ele significa. Além dos regimes políticos, direita e esquerda, progressismo ou conservadorismo, a inquietação dos cidadãos e o descontentamento dos que estão na base estão aumentando. Mas também o desespero se não surgirem alternativas democráticas locais e globais, um desespero que pode abrir a porta para forças cada vez mais violentas e reacionárias, e até mesmo para a possibilidade do fascismo.15

Os autores deste livro contribuem para analisar esse momento agudo a partir do olho do furacão, compreendendo melhor o presente e delineando perspectivas futuras para a América Latina e o Caribe.

Notas

  1. Andreas Malm, Corona, Climate, Chronic Emergency: War Communism in the Twenty-First Century, Londres: Verso, 2020. ↩︎
  2. Ver, por exemplo: Tariq Ali, Piratas del Caribe. El eje de la esperanza, Madrid: Foca ediciones, 2008. ↩︎
  3. Maristella Svampa, Del cambio de época al fin de ciclo: gobiernos progresistas, extractivismo, y movimientos sociales en América Latina, Buenos Aires, Edhasa, 2017 y Massimo Modonesi, “La normalización de los progresismos latinoamericanos↩︎
  4. Pablo Stefanoni, ¿La rebeldía se volvió de derecha?, Buenos Aires: Siglo XXI, 2021. ↩︎
  5. https://temas.cult.cu/revista/revista_datos/3 ↩︎
  6. Claudio Katz, La teoría de la dependencia cincuenta años después, Argentina: Ed. Batalla de Ideas, 2018, p. 102 ↩︎
  7. Éric Toussaint, El Banco del Sur y la nueva crisis internacional, Barcelona: Viejo Topo, 2008. ↩︎
  8. Éric Toussaint, “El Banco del Sur podría ser una alternativa, no así la propuesta de los BRICS”,  25/08/2014 ↩︎
  9. Éric Toussaint, ¿Ofrecen los BRICS y su Nuevo Banco de Desarrollo alternativas al Banco Mundial, al FMI y a las políticas promovidas por las potencias imperialistas tradicionales?, CADTM, 22/04/2024. ↩︎
  10. Éric Toussaint y Benjamin Lemoine, En Ecuador, de las esperanzas frustradas al éxito. Los ejemplos de Sudáfrica, Brasil, Paraguay y Ecuador. ↩︎
  11. Franck Gaudichaud, Massimo Modonesi, Jeffery Webber, Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI. Ensayos de historia del tiempo presente (1994-2018), México: UNAM Ediciones, 2019. ↩︎
  12. Nathan Legrand, Éric Toussaint, Nicaragua, la otra revolución traicionada. ↩︎
  13. Tanya Harmer, Alberto Martín Álvarez (dir.), Toward a Global History of Latin America’s Revolutionary Left, Gainesville, University of Florida Press, 2021. ↩︎
  14. Dossier ¿Cómo se organiza el descontento en América Latina? Polarización, malestar y liderazgos divisivos ↩︎
  15. Dossier Ultraderechas, neofascismo o postfascismo ↩︎

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