Trabalho em Saúde no Brasil: quem está por trás das máscaras?

Sobre as características do trabalho em saúde no sistema capitalista.

É consenso entre todos nós a necessidade urgente de defender os trabalhadores da saúde no contexto de pandemia e crise sanitária e sociopolítica em todo o mundo. São inúmeras as publicações que demonstram as dificuldades que esses trabalhadores têm encontrado para exercer o cuidado em saúde, seja pelas árduas jornadas com condições de trabalho precárias, ou seja pela ausência de equipamentos mínimos de proteção individual, internacionalmente. Mas é preciso ir além. Uma análise de princípios socialistas deve partir da compreensão das características do trabalho em saúde no sistema capitalista e da caracterização de quem são os atores desse processo no contexto brasileiro. As reflexões iniciais que se seguem pretendem contribuir com o tema, sem pretensão de esgotá-lo, de forma a refinar as elaborações de respostas às necessidades dos trabalhadores em saúde.

O trabalho em saúde no Brasil

Trabalho é dimensão fundante das práticas sociais sob qualquer análise marxista, considerando o trabalho humano como processo determinado sócio-historicamente que objetiva a satisfação de um carecimento a partir da transformação da natureza. O processo de trabalho em saúde, analisado a partir desse referencial por Mendes-Gonçalves, tem como objetivo responder a necessidades de saúde, que tampouco são naturais, mas são determinadas pela inserção dos sujeitos nas classes sociais. São, portanto, necessidades de reprodução social. E, ao mesmo tempo que o processo de trabalho em saúde identifica e responde necessidades, acaba por produzir e reproduzir necessidades em saúde, em um ciclo que se reproduz social e historicamente.

Esta é uma das grandes razões pelas quais consideramos que o trabalho em saúde possa ser tão estratégico para a luta revolucionária: a partir da identificação das necessidades em saúde dos grupos sociais é possível identificar suas necessidades de reprodução social. Saúde, da forma como compreendemos, muito mais do que a ausência de doenças trata-se justamente do reflexo das condições de vida e de trabalho das pessoas neste modo de produção, e fundamental à emancipação humana.

Ainda para Mendes-Gonçalves, o trabalho em saúde tem especificidades, tanto do ponto de vista de instrumentos, ou ações e técnicas, que mediam este trabalho, quanto do ponto de vista da divisão social e inserção social dos sujeitos na sociedade capitalista. Isso é garantido por princípios ideológicos como a valorização do trabalho “intelectual” em detrimento do trabalho “manual”, a valorização social de alguns trabalhos e trabalhadores a partir de posições de prestígio e acesso a poder e riqueza, e a reprodução de representações sociais dentro da esfera do trabalho em saúde.

Esses elementos são para nós fundamentais pois é a partir deles que se compreende como se constituiu o imaginário social de algumas das profissões em saúde como prestigiadas e por muitas vezes desvinculadas da própria ideia de trabalho (e de trabalhador), em detrimento de outras desvalorizadas e desveladamente exploradas. Considerar a divisão social e sexual do trabalho em saúde ao longo de sua história é também essencial para caracterizar as desigualdades de condições de trabalho em saúde, sobretudo no contexto brasileiro em que, além de questões relacionadas a classe social e gênero, há também questões de raça.

No Brasil a questão racial se coloca como central na medida em que o racismo estrutural pautou a profissionalização do cuidado no período colonial. O cuidado em saúde durante muito tempo na américa portuguesa era formado pelas “artes de curar”, que pautam até hoje a circularidade cultural brasileira, como coloca o historiador André Mota. A mescla entre conhecimentos advindos dos povos indígenas originários interceptados por jesuítas, de pobres barbeiros, sangradores e rezadeiras europeias, de médicos e parteiras africanas escravizados, sustentaram a saúde da população dessas terras. A necessidade da construção da identidade nacional brasileira e da apropriação do cuidado em saúde pela elite agrária nacional foi o que pautou, de forma tardia, a inauguração das primeiras escolas médicas e a profissionalização das práticas de cuidado. As concepções sanitárias determinaram e muito a construção da identidade nacional e a higiene sanitária suprimiu as práticas populares na medida em que usou o racismo e o machismo para inferiorizar as “artes de curar” em relação à medicina da elite. Rapidamente os primeiros egressos das escolas médicas passam a constituir burocratas em cargos públicos da nova república e a garantir o imaginário social brasileiro em torno dessa profissão liberal.

Quem são os trabalhadores em saúde no Brasil

O prestígio social da medicina enquanto profissão, que, portanto, no Brasil tem origens político-econômicas, por muitas vezes reduz a ideia de profissional de saúde, sendo que mesmo após o advento de uma dezena de outras formações, a figura do doutor (no masculino) segue pautando de forma simbólica o imaginário da sociedade. Entretanto, a caracterização do trabalho em saúde e seus diversos atores no Brasil é muito mais complexa. A medicina segue sendo majoritariamente formada pela classe média e branca, perfil garantido pelo lugar supostamente inalcançável e pelo crivo meritocrático dos vestibulares, ainda que esse perfil esteja em transformação nos últimos anos com a conquista das cotas sociais e raciais e com os programas de financiamento de cursos privados a preços populares. Mas a maior parte dos trabalhadores em saúde no Brasil não são médicos.

Segundo pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil – Cofen/Fiocruz, de 2015, a categoria de Enfermagem era a segunda maior categoria trabalhista em nosso país, ficando atrás apenas dos metalúrgicos, além de ser a maior força de trabalho na saúde em todo o mundo. Atualmente, de acordo com o Conselho Federal de Enfermagem, estão cadastrados mais de dois milhões de profissionais (2.236.132, em 2020). A pesquisa traz outros dados interessantes à discussão: 85% da equipe de enfermagem (inclui-se enfermeiros e técnicos e auxiliares de enfermagem) são mulheres e 53% são pessoas negras; 14% trabalhavam mais de 60 horas semanais e 66% referiram dificuldade de encontrar emprego; considerando somente os trabalhadores do setor público, 3,5% ganhavam menos de um salário mínimo; 20% delas já haviam sofrido algum tipo de violência no trabalho.

O perfil majoritariamente formado por mulheres na enfermagem tem bases históricas e sociais. A divisão sexual do trabalho da medicina dá origem a enfermagem moderna, na transmissão das relações sociais domésticas ao mundo do trabalho científico em saúde. De forma vulgarizada, pode-se dizer que a parcela “mais intelectual” do cuidado, mais valorizada, era exercida pelos homens da medicina, enquanto que as ações de caráter “mais manual” e técnico-procedimental, desvalorizadas socialmente, pelas mulheres da enfermagem. Mas a base fundamental é compreender que se no âmbito doméstico o trabalho foi imposto às mulheres se utilizando da naturalização de características supostamente femininas ligadas ao cuidado e subserviência para garantir a reprodução social do capital, no âmbito do trabalho em saúde os atributos impostos às mulheres de sensibilidade e cuidado garantem a reprodução social do trabalho na saúde. A desvalorização social do trabalho da enfermagem e sua baixa remuneração está intrinsecamente ligada ao patriarcado como base de sustentação das relações capitalistas.

No Brasil, a subdivisão do trabalho de enfermagem em auxiliares e técnicas deu conta de uma nova fragmentação social e técnica do trabalho em saúde, considerando além das questões de gênero, questões de classe social e raça. O racismo estrutural que marca a sociedade brasileira e as características da precarização do trabalho técnico também são fundantes da exploração do trabalho de enfermagem e de sua desvalorização, em duplas e triplas jornadas de trabalho.

Os agentes comunitários de saúde, que já são em mais de 260 mil profissionais pelo país, também majoritariamente mulheres negras, segundo Sindicomunitário, complexifica ainda mais a característica do trabalho no Brasil, considerando que são esses os trabalhadores que fazem o elo entre os serviços de saúde da atenção básica e a comunidade e que muitas vezes trabalham sem condições adequadas de trabalho ou informações claras, sobretudo em um período de pandemia, exercendo tarefas exaustivas e por vezes mal definidas.

Para além das categorias profissionais mais tradicionais, é fundamental que se reconheça enquanto trabalhadores da área da saúde àqueles responsáveis pela manutenção e higiene dos serviços, pela segurança e vigilância, pelo transporte e pelas tarefas administrativas e de recepção. São também esses trabalhadores que realizam cargas horárias excessivas e mal remuneradas, com vínculos de trabalho precários e muitas vezes terceirizados, e com grande exposição a riscos e desgastes, inclusive agentes biológicos, muitas vezes sem a devida proteção.

A precarização e terceirização do trabalho na saúde tem inclusive se ampliado para as categorias profissionais com curso superior em saúde, sendo cada vez mais frequentes os contratos via pessoa jurídica ou via empresas terceirizadas para médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, assistentes sociais, dentistas, psicólogos, farmacêuticos, terapeutas ocupacionais, gerontólogos, entre outros profissionais de saúde. A maior parte dessas profissões também se originou, cada qual com sua especificidade, da divisão social e sexual do trabalho médico no período mais recente da história, carregando uma série de contradições.

Exploração do trabalho e sucateamento dos serviços de saúde: faces da mesma moeda

A precarização do trabalho em saúde, seja em seus contratos de trabalho flexíveis ou pelas sucateadas condições materiais de exercê-lo, é, além da expropriação do capital, também a própria precarização dos sistemas de saúde. Há no mundo sistemas de saúde sustentados por profissionais extenuados e mal remunerados, com presença cada vez maior da lógica do capital e do gerencialismo na gestão dos serviços e do trabalho.

No Brasil, o sucateamento do SUS enquanto sistema público e universal de saúde concomitantemente com o fortalecimento do setor privado e do capital financeirizado na saúde garantem o projeto de precarização do cuidado ao povo, ou pelo menos, a parcela mais pobre dele. Para os trabalhadores, contratações via parcerias público-privadas ou empresas terceirizadas vem substituindo o funcionalismo público, em uma privatização camuflada dos serviços de saúde, dificultando sua identificação e organização coletiva com a fragmentação dos modelos de trabalho e adotando instrumentos de gestão e controle de produtividade baseados na lógica meritocrática do desempenho.

Mas a lógica culpabilizante da gestão por desempenho não é a única a levar a responsabilização do próprio trabalhador no âmbito do trabalho em saúde. Como traz Souza, 2016, “a tendência do trabalhador é de, sempre, prosseguir interiorizando a pressão, em um entendimento de que o direito da vida do paciente é muito maior do que o suposto direito de condições mínimas de trabalho”. Esse pensamento enraizado e introjetado no trabalhador de saúde é uma das grandes bases de sustentação da reprodução do trabalho em saúde, garantindo que o trabalhador se mantenha passivo e aceite mesmo as mais brutais jornadas de trabalho. Ainda para Souza, essa dinâmica laboral introduz inclusive um modo de vida já que o trabalhador incorpora o hábito de “fazer sempre tudo correndo”, o que muito se fortalece no modo neoliberal de se viver.

É exatamente nessa lógica que reside a falácia do “herói” ou do “anjo de branco”, na responsabilização e culpabilização do trabalhador por sua própria condição, material e/ou subjetiva. A pandemia intensifica o medo de ser um vetor de transmissão e infectar suas famílias, a culpa por adoecer e “desfalcar” a equipe, a auto-responsabilização sobre o controle do número de materiais e equipamentos de proteção individual, a ponto inclusive de se submeter a trabalhar durantes horas usando equipamentos fisicamente agressores sem sequer beber água ou ir ao banheiro para não “desperdiçar” materiais. A perversidade do capital está inclusive em transformar problemas de ordem estrutural fruto do desmonte dos sistemas de saúde em responsabilidade de mulheres trabalhadoras que mantém a reprodução social pelo cuidado da sociedade.

A precarização do trabalho também se dá pelo dimensionamento inadequado de número de trabalhadores na maior parte dos serviços, públicos e privados. A sobrecarga de trabalho se naturalizou em escalas sempre apertadas que sofrem com qualquer ausência decorrente de direito garantido ao trabalhador de se afastar, ainda mais em tempos de tantos afastamentos de profissionais (em um dos países do mundo com maior taxa de infecção por covid-19 em trabalhadores da saúde). Mas isso também não é sem motivo na lógica capitalista de produção, senão a garantia de um contingente de trabalhadores formados fora do mercado de trabalho que pressionam o sistema e aceitam se submeter a tais péssimas condições e remunerações. Como dito anteriormente, quase 70% dos mais de dois milhões de profissionais de Enfermagem referem dificuldade de encontrar empregos, mesmo com tanto subdimensionamento nas equipes. Essa é a mesma categoria que até hoje não tem piso salarial definido no Brasil e que tem trabalhadores ganhando menos de um salário mínimo para cuidar de gente com conhecimento técnico e científico. Salários tão desvalorizados obrigam também que essas trabalhadoras realizem múltiplas jornadas em diferentes locais, as exaurindo física e psicologicamente em plantões entrecortados por deslocamentos acelerados no transporte público.

Heroísmo e voluntarismo: cidadania da necropolítica

A crise do capital orienta há anos o sufocamento das medidas de proteção social. A agenda ultraliberal do governo neo-fascista de Bolsonaro representa a radicalidade dessa linha. É nesse contexto que se encontra o subfinanciamento crônico e o desfinanciamento atual do SUS. O sistema de saúde público e fortalecido neste momento é essencial para o estabelecimento de saídas dignas para esta crise. Contudo, aquilo que podemos observar caminha na contramão disso. Permanecem mantidas as política de desfinanciamento como a Emenda Constitucional 95 que congela os investimos públicos pelos próximos vinte anos; os modelos privatizadores da gestão estão sendo fortalecidos, como o que ocorre nos hospitais de campanha, onde mantemos a política de contratação de OSs; não vemos no horizonte contratações emergenciais ou chamamento de profissionais na lista de espera dos concursos públicos entre outras coisas.

Diante desse contexto não nos parece tão extrema a associação de que vivemos  cenários de guerra. A pandemia do Sars-Cov-2, expõe a nefasta relação do sistema capitalista com a vida das pessoas e com o meio ambiente. Na ordem do dia, certas vidas ameaçam a manutenção dos lucros e tão logo podem ser descartadas. Não são aleatórias as mortes pela infecção mais frequentes nas periferias. É a necropolítica, ou política de morte, que ganha contornos mais evidentes. Dessa forma, podemos afirmar que estamos sim em guerra, numa guerra que expõe de forma nítida os inimigos da maioria, aqueles que colocam o lucro acima das vidas. Por isso precisamos nos colocar como atuantes na tarefa fundamental de defesa radical da vida, sem condicionantes.

Nesta guerra, não podemos ver os profissionais da saúde como soldados colocados no fronte dispostos a se sacrificar. São vidas que precisam ser protegidas e valorizadas em seu exercício trabalho.

No início deste texto, elaboramos sobre os processos históricos que fizeram parte da formação das diversas categorias de trabalhadores do campo da saúde. Foi possível observar suas determinações próprias e suas profundas ligações com o patriarcado e o passado colonial. Concluímos que existe uma heterogeneidade importante entre os trabalhadores da saúde, que se revela na atualidade na valorização diferenciada em forma de remuneração ou até mesmo simbólica entre médicos, enfermeiros, psicólogos, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde etc. Além disso, para além daqueles mais comumente  considerados parte do grupo dos trabalhadores da saúde, temos aqueles que trabalham em serviços de saúde mas que não podem reivindicar facilmente esse lugar em parte por estarem longe do protagonismo do processo  de cuidado, apesar de sua fundamental importância. São eles os trabalhadores da limpeza, do administrativo, da segurança entre outros.

O imaginário popular do que seria o profissional da saúde é bastante diferente da realidade. A ideia do herói de máscara, o médico, branco, com seu jaleco se contrapõe a esmagadora maioria de trabalhadoras na linha de frente. São principalmente as técnicas de enfermagem, a maioria de origem periférica, que assumem o maior número de postos de trabalho disponíveis no combate ao Covid-19. Para elas a valorização enquanto heroínas não chega, muito pelo contrário, são empurradas para locais com condições de trabalho precarizados, baixa remuneração, carga horária excessiva, com rarefação de insumos e EPIs. No contexto da pandemia, com uma queda brusca de vagas formais de trabalho, essas trabalhadoras são muitas vezes forçadas a aumentar o número de plantões para contribuir com a renda familiar. Estão expostas a diversos riscos que se revelam no maior número de vítimas fatais entre os trabalhadores da saúde, mais uma face da necropolítica. As propostas de voluntariado para atuação em saúde no combate a pandemia, nesse sentido,  podem ser tratadas como um pedido ao sacrifício, inclusive da própria vida.

Em um cenário estrutural de carecimentos, observamos uma política que coloca nos trabalhadores, ainda mais precarizados, responsabilidades enormes e tarefas impossíveis de serem realizadas com qualidade e satisfação mínima. Mesmos expostos a difíceis condições de trabalho, enfrentam o desafio de se colocarem politicamente e reivindicarem por melhores condições. Isso em função da própria carga horária extenuante e alienadora, das gestões muitas vezes autoritárias que produzem certo silenciamento e até mesmo das campanhas de voluntariado que incentivam o discurso de heroísmo voluntarioso, que na prática expõe esses profissionais e intimida as tentativas de reivindicação de direitos.

“O juramento foi para salvar vidas, não para morrer”, foi uma das falas de uma trabalhadora ao ser perguntada sobre uma colega que foi a óbito durante a pandemia. Que sociedade de “cidadãos” é essa que ao invés de lutar por seus trabalhadores terem condições para cuidar da saúde de todos apenas os aplaude da janela os chamando de mártires? A necropolítica é tão naturalizada que se pensa em sacrifício de algumas vidas com normalidade. Cabe a nós pensar em formas de valorização desses trabalhadores que modifiquem a dura realidade do cotidiano, que garantam direitos e proteção de suas vidas e de seus familiares.

 Saúde mental de quem cuida

Uma revisão na revista The Lancet, 2020, sobre os impactos psicológicos da quarentena apontou que trabalhadores de saúde em situações de pandemia apresentaram sintomas mais graves de estresse pós-traumático do que os membros do público em geral e também sentiram maior estigmatização. No metrô de São Paulo, por exemplo, alguns profissionais de enfermagem chegaram a ser expulsos de vagões de trens por estarem de uniforme de trabalho. Refletir sobre os impactos da pandemia e suas repercussões na saúde mental dos trabalhadores de saúde e como a sociedade vem lidando com a problemática se faz fundamental se queremos defendê-los. Neste exercício de reflexão tentaremos abordar aspectos mais gerais e destrinchar algumas particularidades que nos parecem mais caras.

Para pensar na saúde mental dos sujeitos que se oriente por uma análise materialista torna-se imprescindível a contextualização com a realidade. As incertezas geradas pela crise sejam em relação às informações sobre as características da doença, sua forma de distribuição e contágio e as terapêuticas possíveis ou, sejam em relação às incertezas materiais de um cotidiano radicalmente modificado, tudo isso afeta as pessoas  podendo promover angústias e sofrimento em maior ou menor grau. A realidade dos trabalhadores da saúde soma-se a esse contexto adicionando o elemento dos impactos gerados pelo cuidado direto com as pessoas enfermas em um cenário de diversas precariedades já expostas. O cuidado em saúde nesse momento crítico, expõe vivências junto aos pacientes e colegas dessa imprevisibilidade da doença, suas repercussões e seus desfechos positivos e muitas vezes negativos. Esses trabalhadores terão, muitas vezes, que lidar com a morte de pessoas com quem criaram vínculos, e ainda convivem com o medo em relação a sua própria integridade e pela vida dos seus familiares mais próximos.

Embora a realidade muitas vezes seja bastante comum entre os trabalhadores, existem diferenças importantes entre as categorias e os cenários de pŕatica. Em primeiro lugar, o mais relevante dessas diferenças está na remuneração. Enquanto, por exemplo, plantões médicos nos hospitais de campanha podem chegar a pagar cerca de 84 reais a hora, um técnico de enfermagem chega a ganhar pela hora um valor até cinco vezes menor. A diferença disso, se coloca nos diferentes lugares de moradia na cidade; nos deslocamentos para os locais de serviço geralmente mais próximos do centro; na necessidade de complementar renda com mais plantões; nas dificuldades de acesso a teste e terapêutica necessária caso apresente a Covid-19. Além disso, cabe sobretudo ao trabalho médico a maior valorização simbólica em detrimento do trabalho reprodutivo na saúde que passa despercebido, subvalorizado e portanto pouco representado.

Não é aleatória a enorme quantidade de mortes de trabalhadores de enfermagem, que atinge números escandalosos no Brasil. Até 20 de maio, já são 133 trabalhadores de enfermagem mortos em decorrência de coronavírus no Brasil, segundo observatório do Cofen, o maior número do mundo, sem considerar os demais trabalhadores de saúde que perderam suas vidas. É importante entendermos que a desvalorização material e simbólica do trabalho desempenhado por essas profissionais e outros trabalhadores ainda mais desvalorizados como as agentes comunitárias de saúde, por exemplo, implica, até mesmo, numa menor oferta até mesmo de EPIs em um contexto de rateio dos insumos. Estar exposto a maiores cargas de trabalho, nessas condições são determinantes para o entendimento desses números de morte.

Sabendo dessas diferenças entre as categorias, entendemos os diferentes desgastes, incluindo as diferentes capacidades de organização para enfrentar as injustiças do momento. Muitos daqueles mais precarizados não possuem tempo, energia ou segurança no trabalho para protagonizarem lutas. Por isso a importância fundamental das lutas das trabalhadoras da enfermagem que têm protagonizado atos de enfrentamento ao fascismo e defesa dos trabalhadores no Brasil e nos EUA.

Nós, socialistas, que pensamos em uma forma mais ampla de luta precisamos estar atentos às dinâmicas dos profissionais da saúde nas nossas proposições para que sejam ferramenta de luta para todos esses sujeitos. Conforme predito, muitos profissionais de saúde estão apresentando estresse aguda, esgotamento, sintomas ansiosos e depressivos. Estudos mostram que o principal fator de proteção à saúde mental desses profissionais é, antes de tudo, oferecer boas condições de trabalho, remuneração justa, equipamentos de proteção individual (EPI), horários de descanso e lazer, alimentação e sono adequados, dentre outras garantias. Além da defesa inegociável dessas pautas, podemos também contribuir de modo a colocar a dimensão mais geral do problema para esses trabalhadores o que pode minimizar os sentimentos de culpa que podem surgir por um trabalho que não se consegue fazer em sua plenitude em função dos carecimentos.

Solidariedade ativa e a defesa urgente dos trabalhadores

Pensar numa luta ampla é entender os processos gerais que determinam as condições de trabalho e propor soluções tanto no sentido da política geral, quanto sendo solidários às reivindicações específicas da classe trabalhadora, sem dissociá-las.

Nessas últimas linhas, cabe ressaltar a potência que se encontra em pensar a saúde de modo não compartimentalizado. O grande avanço do movimento sanitarista brasileiro foi conseguir capitanear uma luta popular ainda em tempos de regime ditatorial, que entendia a luta por saúde como direito, que se vinculava à própria luta pela redemocratização e que  também apontava para as inequidades profundas que estruturam esse país. Saúde e doença se distribuem populacionalmente de acordo com classe, cor, gênero e território. Pensar em promover saúde a partir dessa chave é pensar em uma forma de luta para a emancipação humana. E essa reflexão não poderá ser tarefa apenas daqueles que se vinculam em sua trajetória profissional às categorias da saúde. Precisamos pensar política para saúde de forma totalizante e radical.

Isso passa por propor alternativas, das mais amplas àquelas mais específicas. Podemos citar: o Impeachment de Bolsonaro, ferramenta de aglutinação dos trabalhadores da saúde e setores mais amplos; o pedido pela revogação da Emenda constitucional 95, que congela gastos públicos pelos próximos 20 anos; às propostas de reconversão industrial que garantiriam insumos como ventiladores e EPIs com menor dependência do mercado internacional; às propostas de unificação de coordenação de leitos de UTIs, uma importante bandeira de garantia de maior equidade do acesso aos cuidados; criação de canais de denúncia para os profissionais e garantia de espaços de fala para exposição de suas experiências; entre outras coisas que já propomos e que ainda podemos construir.

REFERÊNCIAS

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Pedro Micussi