ECA 30 anos: uma história de luta

30 anos depois da publicação do ECA, a sociedade e o Estado brasileiro ainda não assumiram sua responsabilidade por zelar e garantir os direitos das crianças e dos adolescentes de forma integral.

Pelo espelho vê entrar a mãe e solta a espada, que cai com o rumor de um canhão, e dá Juana tamanho pulo que toda a sua cara fica metida debaixo do chapéu de abas imensas.

– Não estou brincando – zanga ante o riso de sua mãe. Livra-se do chapéu e aparecem os bigodões de carvão. Mal navegam as perninhas de Juana nas enormes botas de couro; tropeça e cai no chão e chuta, humilhada, furiosa; a mãe não pára de rir.

– Não estou brincando! – protesta Juana, com água nos olhos. – Eu sou homem! Eu irei à universidade, porque sou homem!

A mãe acaricia sua cabeça: – Minha filha louca, minha bela Juana. Deveria açoitar-te por estas indecências.

Senta-se ao seu lado e docemente diz: “Mais te valia ter nascido tonta, minha pobre filha sabichona”, e a acaricia enquanto Juana empapa de lágrimas a enorme capa do avô. (Eduardo Galeano – 1997)

Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o sonho da pequena Juana, de que nos fala Eduardo Galeano, parecia ganhar vida e ficar mais próximo da menina.

O primeiro passo foi dado em 10 de 1979, com a promulgação do segundo Código de Menores, que trazia, em substituição à doutrina da situação irregular, a doutrina da proteção integral presente na concepção do ECA, mas mantinha a discriminação da pobreza.

O Movimento Nacional de Meninos de Rua surge em 1982, visando prioritariamente à mobilização dos atores com atuação direta e indireta na educação popular e na defesa dos direitos das crianças e adolescentes, dentre os quais se destacam os educadores sociais, técnicos e dirigentes institucionais, ativistas dos direitos humanos e, principalmente, os educandos.

Os meninos e meninas em situação de rua se tornaram o símbolo do desamparo de crianças e adolescentes no Brasil e, em 5 de outubro 1985, foi aprovada no Congresso Nacional a Emenda Criança, que deu origem aos artigos 227 e 228 da Constituição. Naquele dia, mais de 20 mil crianças fizeram a Ciranda da Constituinte em torno do parlamento federal.

Em 1986, o Movimento promoveu em Brasília um encontro nacional de meninos e meninas de rua que ganhou repercussão internacional.

Em 1° de março de 1988, foi criado, a partir do encontro de vários segmentos organizados de defesa de crianças e adolescentes, o Fórum Nacional de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA), que desenvolveu um papel preponderante no processo de discussão e elaboração da nova Constituição e do ECA.

Em 5 de outubro de 1988, por meio do artigo 227, a Constituição Federal estabeleceu, como dever da família, da sociedade e do Estado, “assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Finalmente, em 13 de julho de 1990, foi aprovado no Congresso Nacional o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que, em seu artigo 4°, expõe a essência da concepção dos direitos das crianças e dos adolescentes perante a sociedade.

Os limites para o desenvolvimento da política de garantia dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil, dentro dos marcos da doutrina da proteção integral, são os próprios limites colocados ao desenvolvimento da chamada “Nova República”, como se convencionou denominar o Estado brasileiro após o fim da ditadura militar e a promulgação da Constituição de 1988.

O processo de redemocratização do país, marcado pela lógica da conciliação de classes, apresentou graves limites à concretização das garantias da democracia, da cidadania e do interesse público, inscritos na Carta Magna. A concepção do ECA, como fruto e expressão deste contexto, se constitui como uma conquista legal que enfrenta limites estruturais para se efetivar.

Ao passo que representa todo acúmulo ideológico, político e social das forças populares que se movimentaram em sua defesa até conquistar a sua promulgação, o ECA, assim como os próprios princípios e artigos democráticos e de cidadania previstos na Constituição de 1988, é constante alvo de ações com o objetivo de desacreditar, minimizar e flexibilizar os seus objetivos, princípios e diretrizes.

30 anos depois de sua publicação, a sociedade e o Estado brasileiro ainda não assumiram sua responsabilidade por zelar e garantir os direitos das crianças e dos adolescentes de forma integral, com prioridade absoluta e compreendendo-os como sujeitos de direitos em desenvolvimento social, psicológico e biológico. Tal postura negligente se expressa no amplo conjunto de contínuas e cotidianas violações de direitos, que se retroalimentam e constituem uma sociedade avessa à garantia, às nossas crianças e aos nossos adolescentes, de um ambiente adequado para o seu nascimento, para o seu crescimento, para o seu desenvolvimento e para a sua vida com liberdade e dignidade.

O desenvolvimento das políticas de garantias de direitos de crianças e adolescentes no Brasil, no contexto da contrarreforma do Estado e do avanço neoliberal, sob a regência da lógica da conciliação, é conformada pelo desenvolvimento de ações que reduzem a responsabilidade do Estado, que, num primeiro momento (anos 90), limita-se à atuação como força repressiva e, num segundo momento (anos 2000), a uma atuação minimalista, fragmentada e focalizada, em favor da ampliação da participação de organizações privadas na oferta dos serviços de atendimento a crianças e adolescentes.

O neofascismo de Bolsonaro levou à queda da “Nova República”, alicerçada num falso pacto de classes, e impôs, à luta pelas garantias dos direitos de crianças e adolescentes, um presente de muitas incertezas, graves retrocessos e a necessidade urgente de organizar muita luta social e popular.

Esta realidade impacta diretamente a infância e a juventude, aprofundando as desigualdades sociais e econômicas entre os brasileiros. com destaque para mulheres e negros, cujos rendimentos são historicamente menores, independentemente do nível de escolaridade, e aumentando o fosso social entre negros e brancos, pobres e ricos, população rural e urbana, homens e mulheres, meninos e meninas.

Associada a esse cenário, a violência é outro enorme desafio quando se trata da garantia dos direitos de crianças e adolescentes. E, mais uma vez, a questão racial requer destaque, já que a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, contra 16,0 para os não negros, de acordo com o 13º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019). Quando se trata de violência de Estado, o levantamento indicou que 75,4% das pessoas mortas por policiais no país são negras.

No Rio de Janeiro, segundo o estudo “Democracia racial e homicídios de jovens negros na cidade partida”, indivíduos negros possuem 23,5% mais chances de serem mortos, em comparação aos não negros. Além disso, aos 21 anos, idade em que jovens estão mais suscetíveis a serem vítimas de homicídios, os jovens negros têm 147% mais chances de serem mortos do que brancos, amarelos e indígenas.

Diante desse quadro, representantes da sociedade civil vêm se mobilizando para assegurar os direitos de nossas crianças e adolescentes à educação, à saúde, à cultura, à dignidade, à liberdade, à vida. Seja organizando cursinhos populares para acesso à educação, ocupando espaços nos conselhos tutelares e locais de construção de política ou nas ruas contra os ataques do governo a segurança dessa população. Se hoje estamos celebrando os 30 anos do ECA, é porque não fugimos à luta. Sua conquista foi fruto de um importante acúmulo de setores sociais preocupados com os direitos das crianças e adolescentes e sua sobrevivência não será diferente.

A construção de políticas concretas, dignas, universais, integrais e de qualidade para a proteção e atendimento a crianças e adolescentes passa, também, pela luta para a construção de espaços democráticos de ampla e permanente participação popular.

É preciso resgatar o movimento popular dessa construção. Para tanto, acreditamos que os novos movimentos populares de juventude, como o movimento estudantil, especialmente o secundaristas, os cursinhos populares, entre outros, devem pautar a política de proteção e atendimento às crianças e adolescentes, ocupando seus espaços de gestão, decisão e controle social.

Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo um novo mundo a construir. Mas nós conseguiremos, jovens amigos, não é verdade? (Rosa Luxemburgo)

Em memória de Agatha Félix, João Hélio, João Pedro, Marcos Vinícius, Maria Eduarda e tantas outras crianças e adolescentes assassinados pelo Estado.

Vida longa ao ECA!


TV Movimento

Balanço e perspectivas da esquerda após as eleições de 2024

A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco debate o balanço e as perspectivas da esquerda após as eleições municipais, com a presidente da FLCMF, Luciana Genro, o professor de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, e o professor de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni

O Impasse Venezuelano

Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 19 nov 2024

Prisão para Braga Netto e Bolsonaro! É urgente responder às provocações golpistas

As recentes revelações e prisões de bolsonaristas exigem uma reação unificada imediata contra o golpismo
Prisão para Braga Netto e Bolsonaro! É urgente responder às provocações golpistas
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 54
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional

Autores

Pedro Micussi