Trotskismo
Artigo de 1937.
Lenin, que não era Deus nem Stalin, cometeu um grave erro durante doze anos quando se opôs à teoria da Revolução Permanente de Trotsky. Pensava que a revolução russa libertaria o capitalismo russo e colocaria a burguesia russa no poder. Em suas Duas táticas[1] ele diz isso uma dezena de vezes. Na p. 37, por exemplo: “Os marxistas estão absolutamente convencidos do caráter burguês da revolução russa. O que significa isso? Significa que as mudanças democráticas no regime político e as mudanças sociais e econômicas que se tornaram necessárias para a Rússia não implicam em si mesmas o debilitamento da dominação burguesa; pelo contrário, elas pela primeira vez abrirão adequadamente o terreno para um desenvolvimento amplo e rápido do capitalismo europeu e não asiático; elas pela primeira vez possibilitarão que a burguesia governe como classe”. Na p. 38, ele diz: “A revolução burguesa expressa as necessidades do desenvolvimento capitalista e não apenas destrói os fundamentos da capitalismo, mas, ao contrário, ela os amplia e os aprofunda”.
Trotsky, como sabemos, se opôs a isso, e assim originou o trotskismo. Disse que o proletariado teria que fazer a revolução burguesa, mas que teria que manter o poder para si e avançar até a ditadura do proletariado. Não haveria desenvolvimento da democracia burguesa, nem desenvolvimento do capitalismo na Rússia revolucionária. O tempo para isso já havia passado. Em vez disso, a Rússia começaria a Revolução Socialista e se salvaria das consequências de seu próprio atraso através da revolução socialista na Europa.
O que salvou Lenin das graves consequências de um prognóstico tão errado foi sua clara concepção do papel das classes. A burguesia chegaria ao poder, mas era o proletariado que a colocaria ali; assim, ele lutou por uma organização operária que fizesse o trabalho da burguesia por cima dos líderes da burguesia, e apesar deles.
Foi esta intransigência, esta hostilidade à burguesia, ainda que lutando por uma revolução burguesa, o que manteve o Partido Bolchevique implacavelmente hostil à burguesia liberal. Trotsky nunca poderia construir um partido – fundamentalmente porque o Partido Bolchevique, ainda que se preparasse para a revolução burguesa, era, sob a firme direção de Lenin, essencialmente um partido, em organização e perspectiva, pronto para a ditadura do proletariado. Os mencheviques também acreditavam na revolução que se aproximava como sendo burguesa. Mas pensaram que era papel da burguesia liderá-la. Por isso tanto Lenin quanto Trotsky se opuseram a eles. Trotsky, portanto, fora de ambos os grupos, resumiu da seguinte forma a sua posição. A natureza contrarrevolucionária do menchevismo, ou seja, a sua ideia de burguesia na direção do processo, se mostrará antes da revolução. Mas a natureza contrarrevolucionária do bolchevismo, ou seja, a sua ideia de uma república democrática, só se mostrará depois da revolução. Tanto Lenin como Trotsky concordavam que a contrarrevolução na Rússia seria o suficientemente forte para destruir a revolução casp a revolução europeia não acudisse em socorro aos russos.
Em 1917, Zinoviev, Kamenev, Stalin e outros da direção bolchevique, frente ao Governo Provisório, se apegaram à antiga fórmula. Mas o Partido Bolchevique era tão treinado para a ação de classe independente do proletariado que foi relativamente fácil para Lenin girá-lo para a ditadura do proletariado. Trotsky se uniu ao partido e aceitou as ideias de Lenin sobre a organização do partido. Mas, num prefácio de seu livro 1905, publicado pela Internacional Comunista em 1921, destacou a falsidade anterior da análise bolchevique e a correção de sua própria teoria. Ninguém o questionou. Mas a revolução europeu não ocorreu e as tendências burocráticas no regime soviético só aumentaram. Stalin é a principal expressão disso.
A derrota da revolução alemã em 1923 quebrou as esperanças da vanguarda proletária, o único apoio à Oposição de Esquerda (como assim se chamavam então os trotskistas), e assim permitiu a Stalin, junto com Zinoviev e Kamenev, se assenhorar do aparato do Partido Soviético e do Governo. A burocracia, onipotente num país atrasado, apoiou Stalin. A tentativa de contar essa história num artigo deste tamanho só redundaria em não dizer nada. É suficiente dizer que, entre 1923 e 1927, os trotskistas defenderam: a) um plano quinquenal de industrialização; b) a restrição política do kulak e a coletivização gradual, começando pelo campesinato pobre; c) uma ruptura com o Conselho Geral dos sindicatos britânicos depois da Greve Geral na Inglaterra de 1926 e a dissolução do Comitê Anglo-Russo[2]; d) a independência do Partido Comunista da China na revolução de 1926-1927 e o repúdio de Chiang-Kai-Shek e o Kuomitang, como os líderes da Revolução Chinesa[3]; e) democracia partidária como o único meio para encontrar e executar a política correta. Stalin, respaldado pela burocracia, lutou com êxito em cada ponto, com resultados desastrosos para a Rússia e a revolução mundial. Seu método foi expurgar o Partido dos elementos de oposição e, através da burocracia, substituí-los por pessoas devotas do stalinismo. Antes da XV Conferência do Partido, a Oposição foi expulsa.
No final de 1927 e começo de 1928, os kulaks (camponeses) se fortaleceram o suficiente para ameaçar o Estado soviético. A política da Internacional era um flagrante fracasso. Stalin deu um giro e golpeou seus aliados de direita (Bukharin, Rykov e Tomsky, os quais ele havia utilizado contra a esquerda), embarcando então na proposta de Plano Quinquenal.
Em 1924, Stalin introduziu uma teoria segundo a qual era possível construir o socialismo na Rússia sem a ajuda da revolução europeia. Isso, ele disse, era Leninismo. Então, ele tentou colocar em prática essa teoria. Os camponeses foram coletivizados em massa. O capitalismo europeu seria superado em dez anos. A Internacional se viu obrigada a adotar a teoria do social-fascismo: a social-democracia, não o fascismo, era o principal inimigo. Se alcançaram grandes êxitos no interior da Rússia, mas o alcance do plano provocou um caos desnecessário na indústria e a destruição de grandes quantidades de produtos agrícolas. O movimento operário alemão foi estimulado a deixar que Hitler chegasse ao poder, pois prontamente se colapsaria. Os trotskistas nestes anos lutaram por um plano e pela coletivização dentro do alcance dos poderes da Rússia e pela Frente Única na Alemanha.
Depois de 1927, ninguém na Rússia poderia defender abertamente o trotskismo. Mas os que seguiram as doutrinas se organizaram em grupos no estrangeiro conhecidos como a Oposição de Esquerda. Depois da derrota alemã, a Oposição de Esquerda declarou a necessidade de construir uma Quarta Internacional. Os leitores de Controversy estão conscientes de como a burocracia soviética não somente se uniu à Liga das Nações, mas que, depois do Pacto Franco-Soviético, inventou a Frente Popular, começou a apoiar o rearmamento capitalista na França e hoje apoia qualquer seção da burguesia que expresse a mais mínima oposição ao fascismo. Os trotskistas têm previsto e combatido tais traições. Eles continuarão a fazê-lo. Mas este abandono da luta de classes, por fim, ensinou um pouco de sentido a muitos dos que haviam permanecido imperceptíveis frente a longos anos de propaganda.
Em cada país, grupos e partidos começara a tomar posição à esquerda dos partidos comunistas. Isso não foi difícil porque os partidos comunistas estavam tão à direita quanto a burguesia os deixaria ir. Mas o Independent Labour Party (ILP) na Inglaterra, o Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM) na Espanha, a Gauche révolutionnaire na França foram todos de alguma maneira hostis ao stalinismo. Agora se opõem à Terceira Internacional, mas não se declararam por uma Quarta.
Dentro da União Soviética, a burocracia, incessantemente mais à direita, estava derrubando tudo à esquerda e destruindo as conquistas políticas da Revolução ao aumentar constantemente os privilégios da casta governante. O movimento stakhanovista[4] foi uma drástica aceleração, e os altos salários pagos a uma seção dos trabalhados os separaram da massa e reforçaram o apoio aos burocratas excessivamente remunerados. A insatisfação das massas (o quão isso foi negado!) forçou continuamente para entrar no Partido, o qual teve que se manter dócil mediante um expurgo incessante. Cerca de 300 000 pessoas foram expurgadas em 1935. É contra essa ameaça desde dentro e desdo fora que devemos ver as provas que fizeram tanto para colocar o trotskismo em primeiro plano.
Compreendamos que nenhum trotskista declarado na Rússia está livre. Há quiçá 20 000 deles na prisão. O escritório da Quarta Internacional perdeu contato com eles durante três anos. Mas sabiam sobre a Quarta Internacional; sua hostilidade ao stalinismo e seu temperamento revolucionário podem ser julgados pelo fato de que Stalin nunca se atreveu a levar nenhum deles a julgamento. Todos os trotskistas julgados – Zinoviev, Kamenev, Radek, Piatakov – são homens que tinham sido admitidos como apoiadores de Stalin por anos. Alguns, como Radek e Piatakov, lhe serviram fielmente. Mas Stalin, apesar ignorante, é o contrário de estúpido. É um homem singularmente astuto. Quando estes homens dizem que a política de Lenin sempre foi construir o socialismo num só país, que o socialismo está construído na Rússia, que a Frente Popular é a política leninista, que Stalin é um grande marxista, sabem que eles estão mentindo, e Stalin também sabe disso. A camarilha de Stalin (Voroshilov, Molotov, Kaganovitch, etc.) não têm, e nunca tiveram, qualquer princípio para perder; ou seja, dirão e farão qualquer coisa. Mas os velhos trotskistas são principalmente judeus, internacionalistas, homens que conhecem a Europa e os idiomas europeus, conhecem os padrões de vida na Europa Ocidental, e ainda que vejam o que se fez na Rússia, não têm ilusões sobre a desastrosa influência que o stalinismo tem exercido sobre todo o movimento. As dificuldades internas estavam se acumulando, a guerra despontava no horizonte, a Revolução Espanhola tornou a política exterior da União Soviética e a política da Internacional em questões candentes.
Em qualquer crise – e as execuções por atacado do ano passado demonstram o quão iminente era a crise – qualquer um dos velhos trotskistas, ainda que não tivesse qualquer vínculo com Trotsky, poderia ser um centro de aglutinação para uma oposição. O recente expurgo massivo da Juventude por “imoralidade” mostra que ali também houve uma grande hostilidade ao regime de Stalin. Portanto, Stalin decidiu eliminar os homens mais conhecidas da velha esquerda, Zinoviev, Kamenev e Smirnov, recobri-los com desonra, vinculá-los com a Quarta Internacional e desacreditar o crescente trotskismo no estrangeiro.
De fatos, a memória das pessoas é curta. O juízo menchevique de 1931 “provou” mediante “confissões” que Leon Blum[5], Vandervelde[6], o Partido Trabalhista Britânico tinham todos organizado a destruição da União Soviética como preliminar de uma guerra de intervenção. Estas estupidezes desonestas e torpes são típicas de Stalin.
Se o julgamento tivesse sido satisfatório, Stalin teria tudo o que necessitava. Uma vez que tivesse arrancado as confissões de alguns poucos trotskistas, se estabeleceriam os crimes do trotskismo e qualquer um que tivesse sido chamado de trotskista poderia ser demitido, aprisionado e tratado sob a acusação geral de trotskismo.
O problema deste julgamento é que acabou como um fracasso desastroso dentro e fora da Rússia. Quando Stalin enviou ao Partido informações sobre a propagação do trotskismo, preparando seus membros para o julgamento, o Partido ficou desconcertado com esta mentira escancarada. “Os fatos demonstraram que nossos camaradas observam estes sinais e advertências com apatia”. Assim o diz o próprio Stalin na p.7 do panfleto da FSU, Varrer os obstáculos. A carta de um velho bolchevique diz que Stalin preparou o juízo em segredo, com a ajuda de Yezhov e pelas costas de Yagoda, e que inclusive todos os membros do Bureau Político não sabiam. O juízo de Radek-Piatakov ocorreu no princípio de 1937, mas a forma em que este contradizia Zinoviev e Kamenev, a tentativa de criar um novo centro e novos delitos, mostra que os organizadores não haviam contemplado o segundo, quando organizaram o primeiro. Este julgamento foi mais efetivo. O pequeno-burguês leu a obra-prima de ficção de Radek e, sacudindo sua estúpida cabeça, disse “Sim, isso é verdade”, e assim resolveu um problema político. No entanto, dentro do Partido na União Soviética algo estava errado. A Resolução aprovada em 27 de fevereiro foi emitida apenas em 6 de março; o discurso de Stalin também se atrasou por semanas. Quando apareceram, havia neles um ataque feroz ao trotskismo e à burocracia partidária, à tirania, ao descumprimento das regras do partido, nomeações de altos cargos, etc. Agora Stalin e os demais sabiam que estas coisas estavam acontecendo. Elas estavam acontecendo há anos. Mas esse perito em manobras, sentido perigo, estava se colocando à frente da insatisfação massiva, e estava trocando a burocracia, chamando a maior quantidade possível de trotskistas, destrutores, etc. Mas desta vez não foi assim tão fácil. Ordjonikidze tinha “morrido”. Yagoda estava detido. Ninguém estava tão alto para poder se salvar. Parece bastante seguro que os burocratas maiores e uma parte sólida do exército decidiram eliminar Stalin num movimento de auto-defesa. A história nos deu um paralelo exato em julho de 1794, quando toda a Convenção, Jacobinos e a Direita, derrubaram Robespierre e o mandaram à guilhotina. No dia seguinte continuaram sua luta interna, mas pelo momento todos sentiram que a primeira tarefa era eliminar o sinistro ditador com o qual nenhum homem estava a salvo. Stalin atacou antes de que seus inimigos pudessem alcançá-lo; por isso lançou um ataque generalizado. Os homens estão sendo julgados por envenenar ovelhas e oprimir camponeses, enquanto os camponeses se sentam na corte, aplaudindo e bendizendo a Stalin. Outros estão sendo expulsos de seus postos de gerência e operários são nomeados em seu lugar. Stalin é agora o homem do povo. E sempre que seja possível, denuncia esses homem como trotskistas. Mas deve se entender que não há razão para crer que um destes burocratas tenha algo que ver com a Oposição na Rússia. Sua política provavelmente teria sido uma limpeza do aparato a seu favor, e um relaxamento da tirania. Tukhachevsky[7] pode ter atuado em favor de uma aliança germano-russa. Mas tudo isso não tem nada a ver com o trotskismo, que na linguagem stalinista simplesmente significa qualquer coisa contra Stalin.
Mas Stalin está agora em grave perigo. Como sempre, a revolução começa desde acima. Os homens rejeitam os postos. Eles têm medo. Os burocratas quase se enfrentam abertamente. No momento em que entrarem em conflito aberto, as massas se unirão, porque serão convidadas por cada lado a apoiar. Isso, entretanto, é outro tema. É suficiente que a única seção com uma política para as massas sejam os trotskistas, e que ambas as alas da alta burocracia se colocarão em oposição a eles, já que os liberais e conservadores sempre se opõem à Revolução Socialista. A solução desse conflito, contudo, está ligada à revolução europeia.
Vemos uma situação paralela no campo internacional. Todos os que estão a favor da revolução socialista, são marcados pelos stalinistas para sua futura destruição. “Não somo trotskistas”, o POUM e o ILP choram continuamente. Muito bom que assim o façam. Os stalinistas não terão nada à sua esquerda, e Maxton[8], Brockway[9] e Marceau Pivert[10] podem olhar o destino de Nin[11]. Parece que Trotsky tem um temperamento ruim, o que impede as pessoas de se juntarem ao Bureau da Quarta Internacional. Propagação de disparates. Somente as massas podem construir uma Quarta Internacional. Mas os dirigentes devem ajudá-las mostrando o caminho. A burocracia stalinista e a Terceira Internacional são agora um tumor gangrenoso no movimento da classe trabalhadora. Devem ser extirpados dela. Há agora somente uma coisa: a luta pela Quarta Internacional.
Fonte: Controversy, v. 2, n. 1, October 1937. Tradução de Charles Rosa.
[1] Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática é um escrito de Lenin de 1905.
[2] Dentro da análise stalinista de que o mundo passava por um período de “estabilização capitalista”, os sindicatos russos estabeleceram uma aliança com a “esquerda” dos sindicatos britânicos em 1925 (Comitê Anglo-Russo). Em 1926, uma greve de mineradores de carvão na Grã-Bretanha se tornou uma forte Greve Geral, traída ao final por esse Conselho Geral.
[3] O stalinismo obrigou o Partido Comunista da China a se subordinar ao regime burguês do Koumitang (KMT) que em abril de 1927 viria a massacrar os comunistas em Xangai.
[4] O movimento stakhonovista foi um movimento nascido na URSS em 1935 por iniciativa do mineiro Alexei Stakhanov que defendia o aumento da produtividade com base na própria força de vontade dos trabalhadores.
[5] Dirigente do Partido Socialista Francês.
[6] Dirigente do Partido Socialista da Bélgica.
[7] Mikhail Tukhachevsky foi um dos vários comandantes do Exército Vermelho acusado de colaborar com os nazistas durante o Grande Expurgo, sendo condenado e executado pelos Processos de Moscou em 1937.
[8] James Maxton (1885-1946) foi um socialista escocês e líder do Partido Trabalhista Independente que liderou a ruptura deste com o Labour Party em 1931/32.
[9] Fenner Brockway (1888-1988) foi um socialista britânico e líder do Partido Trabalhista Independente.
[10] Marceau Pivert (1895-1958) foi um socialista francês do grupo Gauche Révolutionnarie que liderou sua ruptura com reformismo francês durante o governo da Frente Popular de Leon Blum (1936-1938).
[11] Andreu Nin i Pérez (1892-1934) foi um dirigente revolucionário catalão do POUM, assassinado a mando de Stalin em 1937 durante a revolução espanhola.