Da resistência à ofensiva, a vitória eleitoral do MAS na Bolívia

O povo boliviano resistiu desde os dias prévios ao golpe.

Fernanda Melchionna 26 out 2020, 15:49

Esta esmagadora vitória, já no primeiro turno da eleição presidencial, surpreendeu quase todo mundo. Nos últimos dias, as pesquisas de opinião, prognosticavam empate técnico entre Luis Arce do Movimiento al Socialismo – Instrumento Político por la Soberanía de los Pueblos e Carlos Mesa de Comunidad Ciudadana. Ambas as fórmulas estariam empatadas mais ou menos em 37%, e nenhum dos candidatos venceria no primeiro turno. A direita e a ultradireita se preparavam para juntar suas forças e vencer no segundo turno. Também para denunciar fraude e não reconhecer os resultados, como fizeram em 2019, na hipótese de que o MAS-IPSP, ganhasse por pequena margem, inferior ao 10% dos sufrágios.

Mas a realidade foi outra. Com 55,10% dos votos, Luis Arce e David Choquehuanca, do MAS – IPSP, foram eleitos presidente e vice-presidente da Bolívia no primeiro turno. Em segundo lugar, com menos de 29%, ficou o candidato da direita neoliberal, Carlos Mesa de Comunidad Ciudadana. Luis Fernando Camacho, empresário fascista e obscurantista, o “Bolsonaro boliviano” de Creemos (Acreditamos) não obteve mais do que 14,34%.

Desde domingo, a grande imprensa pede desculpas aos seus leitores pelas previsões erradas. Entre os vários motivos levantados, está o tipo de pesquisas, as primeira feitas por telefone no meio da pandemia do corona vírus, e outras justificativas mais ou menos técnicas.

Mas esqueceram de que esses levantamentos foram feitos sob um governo autoritário, repressivo, racista, apoiado por grupos fascistas que perseguiam (e perseguem) militantes populares. Uma grande parte dos eleitores não declarou seu voto por medo, para preservar-se. Também teve setores da classe média que apoiaram o golpe contra Evo Morales em novembro de 2019 e agora estão desenganados pelo desastre econômico e a crise sanitária que a incompetência e a corrupção da administração de Áñez provocaram. Essa “classe média envergonhada” também ocultou suas intenções de voto.

O alto índice de participação popular, (mais de 86%) e os poucos votos brancos e nulos (menos de 5%), apesar das limitações impostas pela pandemia, manifestaram a vontade popular de recuperar sua legítima representação política, seu protagonismo e sua dignidade.

O povo boliviano resistiu desde os dias prévios ao golpe. O governo ilegítimo de Áñez reprimiu de forma selvagem nos massacres de Sacaba (Cochabamba, 15 de novembro de 2019) e de Senkata (El Alto, La Paz, 19 de noviembre 2019). As hordas fascistas de Luis Fernando Camacho arrancavam  e queimavam as whipalas (bandeiras do Estado Plurinacional de Bolívia).A pesar da repressão e o aparecimento da pandemia do coronavírus a resistência continuou e se extendeu. As pessoas eram confrontadas com a opção de morrer em casa de coronavírus ou outras doenças, de morrer às portas de hospitais colapsados, ou de morrer nas ruas por falta de cuidados médicos. Elas escolheram viver.

E para isso, mobilizaram-se. As comunidades indígenas, os camponeses, os trabalhadores, os jovens, as mulheres foram para as ruas. Não saíram para saquear supermercados, não foi o desespero que os levou, foi a necessidade de ir para a ofensiva. E toda esta força foi materializada na exigência de eleições livres e imediatas.

A partir do final de julho, numa nova onda de resistência, os camponeses começaram a mobilizar-se, cortando estradas e acessos às cidades. No dia 28 de julho, a Central Obrera Boliviana (COB) decretou uma greve geral por tempo indeterminado até à realização das eleições, que deveriam ser 6 de setembro, e apelou à unidade entre os mineiros, camponeses, povos originários e classe média.

 Com a entrada da COB e os mineiros, as mobilizações se extenderam e atingiram um nível de organização mais elevado, formando mesmo piquetes de autodefesa para desencorajar os grupos fascistas de atacarem os manifestantes. O governo fez tudo o que pôde para parar a mobilização, ameaçando os líderes, perseguindo os dirigentes políticos e sindicais, espalhando falsas notícias, acusando os piqueteiros que bloqueavam as estradas de não deixar passar caminhões de oxigênio para os hospitais… Mas não pode reprimir. Nem as forças policiais, nem as militares, estavam dispostas a confrontar o povo organizado. Espalhava-se um rumor: “os mineiros têm dinamite”.

Um jovem de pouco mais de trinta anos, o presidente da Federação dos Mineiros da Bolívia, Orlando Gutiérrez, foi um dos principais dirigentes dessa resistência.  Recentemente foi vítima de um atentado perpetrado por um grupo de “pititas” (forças de choque fascistas ligadas a Camacho). Felizmente já está fora de perigo e recuperándose.

Outro jovem, também dirigente deste processo é Andrónico Rodríguez, um camponês de 31 anos, vice-presidente das Seis Federações de Cultivadores de Coca do Trópico de Cochabamba, de onde é originário Evo Morales, e um dos líderes políticos mais promissores do movimento.

O governo golpista tinha prometido eleições para 17 de Abril, depois para 3 de maio de 2020. Mais uma vez o tribunal eleitoral as adiou para 17 de maio com o pretexto de preservar a saúde da população na pandemia, depois para 6 de setembro e um último adiamento fixou as eleições para 18 de Outubro. Foi necessário que o MAS impusesse na Assembleia Legislativa uma lei que estabeleceu essa data como inamovível para realizar as eleições.

  Menos de um ano depois do golpe que obrigou a renunciar a Evo Morales depois de quase 14 anos no poder, o governo ilegítimo e de extrema-direita de Jeanine Añez e seus aliados acaba de sofrer uma dura derrota.

 Nos dias 26 e 27 de novembro de 2019, participei como integrante da Comissão de Direitos Humanos e cidadania do Parlamento do MERCOSUL (Parlasur), na cidade de La Paz, de uma série de audiências que receberam denúncias de violações aos direitos humanos, entre elas a do massacre de Senkata.

 Durante todo esse tempo, mantivemos a solidariedade com o povo boliviano e seus legítimos representantes. Denunciamos o governo golpista de Áñez, apoiado por Bolsonaro. Realizamos e divulgamos debates com a senadora Adriana Salvatierra, do MAS e o dirigente mineiro Orlando Gutiérrez, exigindo eleições livres e imediatas.

 Hoje, quase um ano depois, celebramos a derrota da ultradireita autoritária e obscurantista. Desta vez, nossa companheira, Sâmia Bomfim, deputada federal e líder da bancada do PSOL, esteve presente como observadora do Parlasur do processo eleitoral.

 Mas devemos nos manter vigilantes para que a vontade popular seja respeitada, a ultradireita não está parada e vai agir, como o demonstra o atentado sofrido por Orlando Gutiérrez. É um dever de todas as forças democráticas, progressistas, populares e revolucionárias, a defesa da soberania e dignidade recuperadas pelos povos do Estado Plurinacional da Bolívia.

Esperamos que a nova derrota da direita seja nos Estados Unidos, onde todo parece indicar que Biden vai ganhar de Trump. Maus tempos se aproximam para Bolsonaro.

 O processo boliviano mostra o caminho: é possível derrotar a direita e o autoritarismo com auto-organização popular, mobilização e unidade. Mas também com a renovação das estruturas políticas, sindicais e a auto-organização popular, como acontece com o próprio MAS e o amplo movimento que o apoia, onde a juventude trabalhadora, camponesa e dos povos originários teve um papel fundamental na resistência, na renovação da esquerda e na vitória eleitoral.

Alguns elementos da ofensiva popular que tem imposto derrotas à direita autoritária e neoliberal na Bolívia e, recentemente, no Chile, onde o povo derrotou a velha e autoritária Constituição de Pinochet, podem estar presentes no Brasil.

Tanto Russomano em São Paulo como Crivella no Rio, identificados com Bolsonaro, perdem cada vez mais espaço. A direita tradicional disputa os eleitores do presidente, mas a maioria não quer ter sua imagem associada a ele.

No Brasil, a renovação da esquerda começa a manifestar-se, o desenvolvimento das lideranças e candidaturas do PSOL, mostram um caminho de resistência e transformação, uma nova geração para superar a velha política e os partidos do regime: aqueles que apostam na “governabilidade” a qualquer preço e com qualquer um.

As eleições municipais no Brasil podem ajudar a construir trincheiras de resistência ao bolsonarismo e a ultradireita. E a demarcar fronteiras de classe.

E, como demostra o povo boliviano: é possível passar da resistência à ofensiva.


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