Paraguai: uma rebelião contra o colapso sanitário

Israel Dutra, Secretário de Relações Internacionais do PSOL analisa os recentes protestos no Paraguai.

Israel Dutra 15 mar 2021, 23:42

Uma onda de protestos está tomando nosso país vizinho, o Paraguai. Foram milhares de paraguaios ocupando as ruas da capital, Assunção e das principais cidades do país, como Encernación e Ciudad del Este. A jornada de março começou na sexta-feira (5) em resposta ao colapso sanitário e à corrupção, com concentrações expressivas. Cinco dias seguidos de passeatas multitudinárias, com feroz repressão policial, que terminou com saldo de prisões, vários feridos e um manifestante morto. As ruas pedem o fim imediato do atual governo.

Queremos nesse breve artigo compartilhar com os ativistas brasileiros, a partir da Secretaria de Relações Internacionais do PSOL, uma visão sobre o poderoso processo de rebelião popular que ocorre no Paraguai nesse momento.

A crítica ao colapso sanitário motivou a ira popular. Após a falta de insumos e vacinas, o salto no número de contágios e óbitos evidenciou o fracasso da gestão de Mario Abdo. O país conta com o menor de número de doses de vacinas da região, além de uma falta generalizada de insumos. Em outras palavras, em relação à vacinação, a resposta de Marito Abdo foi tão genocida como a de seu aliado brasileiro Jair Bolsonaro.

O presente estado de revolta que vive o Paraguai é parte do contexto latino-americano. A rebelião paraguaia, ainda em suas fases iniciais, soma-se aos processos mais avançados da região, a saber, os levantes equatorianos e chilenos, a resistência de massas que derrotou o golpe da Estado na Bolívia, além da resposta popular à tentativa frustrada de golpe parlamentar no Peru.


As raízes profundas da bronca popular

O problema sanitário foi o estopim para o levante de massas. Depois de um período inicial de relativa contenção dos contágios, com a abertura do comércio disparou a pandemia, sem uma resposta eficaz por parte do governo e do ministério da saúde. Assim, pela primeira vez, ao final de fevereiro, alcançaram-se mais de dois mil novos casos por dia, além do recorde de mais de 17 mortes diárias. A falta de uma política de vacinação – com apenas quatro mil doses destinadas pelo governo (mais as 20 mil cedidas em caráter emergencial pelo Chile) – trouxe a ira popular. O Paraguai tem, hoje, cerca de 25 mil vitimas fatais da Covid-19.

Além disso, famílias tiveram que pagar por insumos, para o mínimo tratamento de pacientes, chegando a contas que somavam 300 dólares por paciente, um custo insuportável para a ampla maioria dos paraguaios. Os empréstimos que foram feitos para uma ação emergencial contra a Covid-19 por parte do governo não chegaram na ponta do combate ao vírus; a corrupção, instalada nas estruturas do regime, com o partido Colorado controlando os orçamentos da saúde de forma clientelista, fez o caldo de insatisfação transbordar. Primeiro, revolta e protestos de trabalhadores da saúde para depois o conjunto do povo sair às ruas. Médicos e enfermeiros denunciaram que não havia sequer sedativos disponíveis para quem precisava ir para UTI.

Não por acaso, os dados da desigualdade e da pobreza do Paraguai são altos. Quase ¾ da população não conta com qualquer tipo de cobertura de saúde. As taxas de trabalho informal alcançam 70%. Estamos diante de um dos países mais pobres e desiguais do continente.

A revolta tem um alvo muito direto: o governo de Mario Abdo e o partido Colorado. A atual crise não é um raio em céu azul. Há pouco menos de dois anos, os acordos secretos sobre contratos de Itaipu levaram a um amplo questionamento do governo por parte do movimento de massas. Como escrevemos naquela ocasião em artigo com Luciano Iranzo:

“Pelo acordo assinado por Bolsonaro e Abdo, o Paraguai se comprometia a comprar mais energia contratada e ir baixando o consumo de energia excedente. Isso teria um impacto de 250 milhões de dólares neste ano e isso iria aumentar com o passar dos anos.

A assinatura da ata sai à luz pela renúncia de um dos diretores da ANDE, ente encarregado de administrar o serviço de energia no Paraguai. Uma vez conhecidos os motivos da renúncia de Fabian Cáceres, ex-diretor da ANDE, a imprensa e o movimento de massas começa a questionar todo o governo. O governo acusa a imprensa de manipular os fatos, mas ata vem à luz e nela não há nenhum benefício para o povo paraguaio ou para o melhor preço de compra da energia”.

Ali começou um profundo divórcio entre as massas e o governo de Marito Abdo Benitez.

Outro “março paraguaio”

A convocação inicial foi espontânea, ativada nas redes sociais, com o lema “para um novo março paraguaio”. A consigna, mais tarde convertida em inúmeras hashtags, evoca outras grandes mobilizações de caráter histórico que foram levadas adiante em março de outros anos ao longo da história política do país.

Em março de 1999, enfrentamentos resultaram na queda do então vice-presidente, com lutas de rua, jornadas que tiveram cerca de 8 mortos, porém foi uma ação independente do movimento de massas que levou a uma fissura entre as massas e o partido Colorado (ANR), que criou uma brecha no regime e anos mais tarde levaria a frente popular ao poder com Fernando Lugo.

Anos mais tarde, em 2017, uma nova explosão popular marcou o mês de março. Quando o então presidente Horácio Cartes, num conchavo com outros setores parlamentares, tentou aprovar uma emenda constitucional assegurando o direito à reeleição, manifestantes tomaram o parlamento, levando milhares de pessoas às ruas, sobretudo jovens. É importante compreender o papel de Cartes e sua influência política na situação paraguaia.

Rival dentro dos colorados de Marito Abdo, Cartes cresceu em influência política por ser um dos maiores empresários do Paraguai, ligado a times de futebol, com fortes suspeitas de contrabando de cigarros para Brasil e outros países. No vácuo do impedimento de Lugo, foi eleito em 2013 e queria com sua emenda garantir a reeleição em 2018, sendo parado pelo movimento de massas e pela oposição interna de Marito.

Agora, Cartes joga um papel fundamental: ele manteve certa influência sobre o atual vice-presidente Hugo Velázquez e o líder do congresso Oscar Salomón. Acertam os analistas que afirmam que Marito está cada dia mais réfem de Cartes e de seus colaboradores. Ainda assim, Velázquez se afastou mais de Cartes para postular sua via própria, já com vistas à eleição de 2023.

Nas atuais jornadas de março, Marito Abdo atuou para desmontar a insatisfação, buscando um novo pacto de governo, demitindo parte de seu gabinete (quatro importantes ministros, como da saúde, de mulheres, do interior e da educação). Depois da ineficácia da repressão nas duas primeiras noites de protestos, apelou para utilizar das restrições sanitárias a fim de controlar as manifestações nas grandes cidades do país e na capital, Assunção, que cercavam os principais símbolos de poder como o Congresso e o Palácio de Governo. Um importante acúmulo do atual março paraguaio, disparada por redes sociais, foi ampliar a luta contra o vice Velázquez e mesmo contra Cartes. Duas noites de protestos terminaram em frente à casa do empresário e ex-presidente.

Após o impulso inicial da jornada de protestos iniciada no dia 5, um novo salto pode ser dado com a entrada em cena de setores sociais como o movimento estudantil e o movimento camponês. A chegada da marcha nacional dos trabalhadores do campo, prevista para quarta-feira (17), deve apontar um novo fôlego no “março paraguaio” de 2021.

“Que se vayan todos”

Os atos, que já duram uma semana ininterrupta, levantam uma palavra de ordem que esteve na raiz das rebeliões da virada do século, especialmente no “Argentinazo”: “Que se vayan todos – no quede uno solo”. Em tradução literal, afirma que “caiam todos e não fique nenhum”. Esse grito de revolta popular é um sintoma de como está o esgotamento do atual governo e do atual regime no Paraguai.

O movimento deflagrado vai contra o presidente e o vice e abre um enorme espaço para contestação e auto-organização. Há traços semelhantes e traços distintos do que passa no Chile: por um lado, ainda não é tão profundo como a construção de organismos territoriais e de luta dos chilenos; por outro, é uma fissura aberta que coloca uma nova relação de forças entre as classes no país.

Abdo hoje é um dos principais aliados de Bolsonaro na região. Um governo com o qual o déspota brasileiro possui uma parceria estratégica. A vitória do movimento popular em curso teria efeito imediato sobre todo o continente e seria uma “baixa” no rol dos aliados de Bolsonaro. 

Nesta quarta, como já mencionado, os camponeses, a juventude e os setores populares estão prometendo o maior protesto desde então. A capacidade de articulação da raiva social pode desencadear fatos novos e colocar de forma definitiva o governo contra a parede, levando consigo o vice Velázquez e o todo-poderoso Cartes. A revolta contra a má gestão da pandemia é um exemplo para a América Latina. Do Brasil, país que figura tragicamente entre os piores no combate à Covid-19, expressamos nossa solidariedade ao povo paraguaio, um exemplo para todos nós.


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Pedro Micussi