Sobre o trem da história
Monet, Gare Saint-Lazare, 1877

Sobre o trem da história

Da questão técnica na modernidade e o “progressismo” vulgar.

Artur de Vargas Giorgi 9 nov 2021, 14:52

“A consciência de fazer explodir o continuum
da história é própria às classes revolucionárias
no momento da ação”.
Walter Benjamin, Sobre o conceito de história.

1. A notável conquista técnica que, no século XIX, constituiu o desenvolvimento das estradas de ferro e das locomotivas é indissociável das transformações do mundo que foram impulsionadas daí em diante, em escala e velocidade sem precedentes, com a expansão da modernidade ocidental. Produção industrial e modernização, comércio e comunicação globais, urbanização e massificação crescentes, colonização, exílio e extermínio também em massa: em suma, a cultura e a barbárie do Ocidente seguiram os ambivalentes trilhos desse prodígio da era da máquina.

Sem dúvida essas transformações não limitaram seus efeitos à concretude mais imediata e rigorosamente palpável das sociedades burguesas. Elas interferiram de maneira absolutamente significativa também nas formas imateriais da experiência dos sujeitos. Em outras palavras: nos vagões dos trens em movimento e nas gares cheias de fumaça são produzidas novas formas de ver, de sentir, de pensar; novas maneiras de significar esses olhares, sentimentos e pensamentos; enfim, são criados outros modos de experimentar e imaginar a extrema relatividade do mundo ao redor, a relação vertiginosa entre o tempo e o espaço, assim como a íntima relação, ao mesmo tempo individual e coletiva, que paradoxalmente será estabelecida, entre choques e tensões de variada ordem, com a impessoalidade dos locais de trânsito, de passagem. 

2. Imersos como estamos no imediatismo da virtualidade contemporânea e seu presente em loop, não devemos diminuir o impacto causado pela emergência dessas condições modernas. “Até a popularização das redes ferroviárias, entre 1830 e 1840, ninguém viajara a mais de 25 quilômetros por hora”, escreve Bernard Denvir num trabalho que situa o aparecimento da pintura impressionista. “Ver paisagens e objetos de um trem a 80 ou 90 quilômetros por hora fez ressaltar ainda mais a natureza subjetiva da experiência visual, delineando o transitório e tornando imprecisas as delimitadas linhas a que a arte de perspectiva pós-renascentista condicionara o ‘olho’ do artista”.

Significativamente, a velocidade maquínica das locomotivas foi acompanhada pela proliferação e sincronização de relógios em locais públicos e pelo surgimento da História como disciplina dominante; assim como sua aceleração foi relacionada com as primeiras experiências cinemáticas, a segmentação especializada da produção e, claro, com as crises nervosas e outras patologias do espírito. Nesse sentido, não surpreende que sistemas de pensamento como o darwinismo, o positivismo e o marxismo, que tomaram o tempo da evolução e do progresso como uma questão central, tenham permitido diversas analogias com a imagem e o funcionamento das locomotivas, uma articulação que, nas primeiras décadas do século XX, seria retomada por diferentes artistas envolvidos com os movimentos das vanguardas.

Assim, mesmo com visões de mundo e tratamentos muitos distintos – de Édouard Manet a Pío Collivadino, de José María Velasco a Reinaldo Giudici, de Charles Sheeler a Tarsila do Amaral, de Marcel Duchamp a Umberto Boccioni, dos Irmãos Lumière a Vertov (etc.) –, em torno dos trens e das estradas de ferro condensou-se um imaginário, ainda que muitas vezes em pugna, da modernidade e da modernização tecnológica. Seja como for, a ocidentalização do mundo não deixaria de avançar até o mais longínquo, o mais remoto dos espaços.

3. A título de exemplo, lembremos apenas que, num estudo feito em 1911, ao decompor um nu masculino, Duchamp situou a figura num trem, atribuindo ao homem jovem um pathos melancólico (Nu [esquisse], jeune homme triste dans un train). A relação entre tristeza e trens a vapor não era de fato nova: já encontramos seu registro na atmosfera enfumaçada da Gare Saint-Lazare, pintada por Manet, Monet e outros mais.

Para além da recorrência, vale notar que, ainda quando inscrita sob o signo da vanguarda cubo-futurista e das sucessivas experimentações com a cronofotografia, a figura duchampiana – que, insisto, é triste – recusa, no entanto, qualquer adesão à modernolatria. Num paralelo – não de formas, mas de afinidades – que talvez possa nos interessar especialmente, eu diria que ela parece estar mais próxima da morosa melancolia que escutamos em Trenzinho do caipira, a célebre tocata de Villa-Lobos, composta em 1930, do que de Pacific 231, a composição propriamente futurista de Arthur Honegger, idealizada em 1923 como um maquinismo superior, aquele que melhor sintetizaria um mundo orquestrado pela aceleração do progresso.

Embora coetâneas, a locomotiva colocada em movimento na composição musical de Arthur Honegger é urbana, apolínea, notadamente hiperbólica (aliás, como o futurismo de Marinetti ou Russolo), como uma máquina desbravadora e condutora irrefreável do porvir. Contrária, portanto, ao que podemos escutar na tocata de Villa-Lobos, essa espécie de imagem-melodia barroca, extemporânea em sua tensão entre o arcaico e o moderno, e que parece mimetizar não uma poderosa locomotiva, mas sim um trenzinho, e mais precisamente uma maria-fumaça: eis a máquina que é tocada meio aos trancos, num país descompassado, às margens da modernidade ocidental, acompanhando os movimentos migratórios e exploratórios do início do século XX (lembremos da Guerra do Contestado, atravessada de ponta a ponta, por assim dizer, pelos interesses econômicos e coloniais da Brazil Railway Company).

4. No final de Aviso de incêndio,livro que é uma leitura das teses de Walter Benjamin Sobre o conceito de história, Michael Löwy faz uma anotação sobre um texto de Agnes Heller (falecida em 2019 e que havia sido discípula de Georg Lukács). Diz Löwy: “Durante vários séculos, observa ela, a busca utópica da humanidade teve a forma de viagem marítima, do barco que sai em busca da ilha da felicidade. A partir do século XIX, predominou a imagem do trem, a metáfora da locomotiva que avança, com uma rapidez crescente, para o futuro resplandecente, para a estação ‘Utopia’, destruindo todos os obstáculos que se encontram em seu caminho”.

Para a filósofa húngara, é precisamente a essa utopia que deveríamos renunciar: “a viagem para a terra prometida é uma ilusão”, pois “já chegamos ao final de nosso percurso”, afirma Löwy, “que é a modernidade em que vivemos. A metáfora que corresponde a essa realidade histórica é a de uma magnífica e espaçosa estação ferroviária em que estamos instalados e de onde não partiremos”.

5. Com efeito, não há mais tempo para idealismos. Numa palavra, digamos que já na origem estava a técnica: a linguagem, em suas várias modulações, fundamento sem fundo e sem fim de todas as nossas próteses, de todos os suplementos que viemos a construir; próteses e suplementos com os quais nos inventamos, sim, mas com os quais também nos destruímos.

Paul Virilio colocou a questão de maneira clara, mas dura: “Cada tecnologia produz, provoca, programa um acidente específico. Por exemplo: quando inventaram a estrada de ferro, o que foi que inventaram? Um objeto que permitia que você fosse mais depressa, que lhe permitia progredir – uma visão à la Júlio Verne, positivismo, evolucionismo. Ao mesmo tempo, porém, inventaram a catástrofe ferroviária. […] A invenção da auto-estrada foi a invenção de trezentos carros colidindo em cinco minutos. A invenção do avião foi a invenção do desastre aéreo. Creio que, de agora em diante se quisermos continuar com a tecnologia (e não penso que haverá uma regressão neolítica), precisamos pensar ‘instantaneamente’ a substância e o acidente.”

6. Na tese XV de Sobre o conceito de história, Benjamin faz referência a um notável incidente da Revolução de Julho de 1830. Escreve ele: “Terminado o primeiro dia de combate, verificou-se que em vários bairros de Paris, independentes uns dos outros e na mesma hora, foram disparados tiros contra os relógios localizados nas torres”.

Michael Löwy, por sua vez, comenta essa tese acrescentando ao episódio uma situação mais próxima de nós, em que uma coletividade aspirava igualmente à explosão da suposta continuidade da história: “Durante as manifestações populares de protesto – por iniciativa de organizações sindicais operárias e camponesas, e de movimentos negros e indígenas – contra as comemorações oficiais (governamentais) do 500º aniversário de ‘descoberta’ do Brasil pelos navegantes portugueses em 1500, um grupo de índios atirou flechas contra o relógio (patrocinado pela Rede Globo de Televisão) que marcava os dias e as horas do centenário”.

7. Claro, para Benjamin o trem da história deveria seguir a contrapelo.Em seu livro, Löwy destaca uma das notas preparatórias para as teses de 1940. É uma passagem em que Benjamin revisa As lutas de classes na França (1848-1850), de Marx. Sob a sombra da “solução final” praticada pelos nazistas – atrocidade que seria facilitada pelos trens de carga que chegariam lotados aos campos de concentração –, as palavras de Benjamin sinalizam a urgência da interrupção das barbáries cometidas em nome da civilização e demarcam uma tomada de posição a respeito do “progressismo” mais vulgar: “Marx havia dito que as revoluções são a locomotiva da história mundial. Mas talvez as coisas se apresentem de maneira completamente diferente. É possível que as revoluções sejam o ato, pela humanidade que viaja nesse trem, de puxar os freios de emergência.”

Ainda há tempo? É preciso dizer que sim. Puxar os freios de emergência não antes da catástrofe, porque em vários sentidos, como vimos, ela já aconteceu: faz tempo que anunciamos o fim da linha, onde estamos instalados, como o horizonte inerente ao capitalismo global. Mas então puxar os freios de emergência antes que se encerre, com o próprio mundo exaurido, até mesmo a possibilidade de narrá-lo; a possibilidade de elaborar seu sentido, uma e outra vez, em diferentes vozes e linguagens, com outros corpos, espaços e tempos que estejam abertos ao necessário ajuste com o passado e ao impossível que devemos afirmar, hoje, forçando a dureza do real com a realidade das ficções tecidas em torno de um mundo em comum.

É o que propõe Ailton Krenak em Ideias para adiar o fim do mundo: “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim”.


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