O processo de independência política do Brasil

Em trecho de livro, o historiador trata do processo de independência política do Brasil e o projeto das classes vitoriosas com o rompimento das relações coloniais com Portugal.

Caio Prado Jr. 7 set 2017, 20:16

Capítulo III – A revolução

D. João VI no Brasil

A transferência da Corte portuguesa para o Brasil em 1808 veio dar à nossa emancipação política um caráter que a singulariza no conjunto do processo histórico da independência das colônias americanas. Todas elas, mais ou menos pela mesma época, romperam os laços de subordinação que as prendiam às nações do Velho Mundo. Mas, enquanto nas demais a separação é violenta e se resolve nos campos de batalha, no Brasil é o próprio governo metropolitano quem, premido pelas circunstâncias, embora ocasionais, que faziam da colônia a sede da monarquia, é o governo metropolitano quem vai paradoxalmente lançar as bases da autonomia brasileira.

A vinda da Corte deriva do conjunto de circunstâncias que assinalam o agitado momento por que então atravessa a Europa. Mas, em última análise, representa muito mais uma hábil manobra da diplomacia britânica. A situação anormal do Velho Mundo, presa das convulsões que sobre ele desencadeara a Revolução Francesa de 89, não foi senão a arma de que se utilizou a Inglaterra para completar a sua já tradicional política de absorção econômica do pequeno Reino lusitano.

A questão então em vista era a da liberdade do comércio das colônias portuguesas, especialmente do Brasil. Interessava-se a Inglaterra sobremaneira por estes mercados, até então praticamente fechados ao seu comércio. E verdade que desde o tratado de 1654 obtivera de Portugal o privilégio de mandar seus navios ao Brasil. Mas, era esta uma concessão parcial e muito limitada nas suas vantagens. Não só devia o comércio se fazer indiretamente por Portugal, tocando nos seus pontos na ida e na volta, como ainda deviam os navios ir incorporados às frotas portuguesas e sujeitos por conseguinte aos ônus daí decorrentes. Também é certo que se fazia correntemente o tráfico direto, e como confessava o próprio cônsul inglês em Lisboa, chegou-se a publicamente anunciar em Londres a saída de navios para o Brasil. Mas tudo isso era precário, e ferindo como feria a letra dos tratados, estava constantemente sujeito a protestos e reações do governo português. Não satisfazia por isso às aspirações britânicas.

Com a transferência da Corte parecia resolvido o problema. Era esta pelo menos a previsão inglesa: não só com o abandono de Portugal punha-se o governo lusitano ainda mais na dependência da Inglaterra, pois valia isto por reconhecer-lhe expressamente a tutela, como ainda, entregue o Reino aos franceses, não seria mais possível fazer-se por ele o comercio do Brasil. Discursando no Parlamento inglês, prognosticava Pitt que uma vez assente o trono português no Brasil “o império da América do Sul e a Grã-Bretanha ficarão ligados eternamente, fazendo estas duas potências um comércio exclusivo 46.

Não se enganava o ministro britânico. O primeiro ato do regente, apenas desembarcado no Brasil, foi justamente franquear os seus portos ao comércio das “nações amigas”, o que queria dizer — a Inglaterra. Quanto ao Brasil, e é isto que aqui nos interessa, veio a manobra inglesa alterar profundamente suas condições políticas e sociais. A transferência da Corte constituiu praticamente a realização da nossa Independência. Não resta a menor dúvida que ela viria, mais cedo ou mais tarde, mesmo sem a presença do regente, depois rei de Portugal. Mas, também é certo que nossa condição de sede provisória da monarquia foi a causa última e imediata da Independência, substituindo, talvez sem vantagem alguma, o processo final da luta armada que foi o das demais colônias americanas.

O certo é que se os marcos cronológicos com que os historiadores assinalam a evolução social e política dos povos se não estribassem unicamente nos caracteres externos e formais dos fatos, mas refletissem a sua significação íntima, a independência brasileira seria antedatada de quatorze anos, e se contaria justamente da transferência da Corte em 1808. Estabelecendo no Brasil a sede da monarquia, o regente aboliu ipso facto o regime de colônia em que o país até então vivera. Todos os caracteres de tal regime desaparecem, restando apenas a circunstância de continuar à sua frente •um governo estranho. São abolidas, uma atrás da outra, as velhas engrenagens da administração colonial, e substituídas por outras já de uma nação soberana. Caem as restrições econômicas e passam para um primeiro plano das cogitações políticas do governo os interesses do país. São esses os efeitos diretos e imediatos da chegada da Corte. Naquele mesmo ano de 1808 são adotadas mais ou menos todas as medidas que mesmo um governo propriamente nacional não poderia ultrapassar.

Sem a menor dúvida podemos ligar estes fatos diretamente à vinda do regente. A simples circunstância de aqui exercer o seu governo exigia naturalmente um aparelhamento político e administrativo que não fosse o de uma simples colônia, quando Portugal — abandonado e ocupado primeiro por franceses, depois por ingleses — já não estava em condições de desempenhar sua função de metrópole. Concorrerá também para a atitude do regente português, favorável aos interesses nacionais, de um lado o próprio ambiente brasileiro que o cercava e a que não se poderia furtar, e de outro, talvez, o desejo íntimo, em todo caso nunca expressamente manifestado, de se fixar definitivamente no Brasil. Mas, fosse este ou aquele o motivo que ditasse a política de D. João, o certo é que os quatorze anos que decorrem da sua chegada até a proclamação formal da independência não podem ser computados na fase colonial da história brasileira.

Pode-se imaginar como repercutiu no seio dos interesses ligados ao regime de colônia esta curiosa inversão de papéis que fazia do soberano português e da sua política instrumentos quase inconscientes da autonomia nacional! A isso devemos filiar, como um de seus principais efeitos, a revolução constitucional do Porto. Naturalmente, esta revolução tem causas internas no Reino português. Dirige-se sobretudo contra a ordem estabelecida em Portugal, isto é, o absolutismo monárquico e o regime econômico, social, político e administrativo a ele ligado. Mas, é certo também que o profundo dano sofrido pelos interesses portugueses com a nova política adotada pelo soberano com relação ao Brasil levou para o lado da revolução setores importantes do Reino, movidos unicamente por este fato. Aquela política representara nada menos que a supressão de um secular parasitismo colonial a que Portugal se acostumara e em que fundava, pode-se dizer, a sua economia. O comércio com o Brasil, que a abertura dos portos em 1808 e o tratado de 1810 fizeram passar para a Inglaterra, representava nada menos que nove décimos de todo o comércio externo português. Éramos os únicos consumidores – forçados, está visto – dos medíocres produtos das indústrias portuguesas, que de forma alguma poderiam agora, em igualdade de condições, concorrer com os da Inglaterra 47. Perdido assim seu principal e quase único mercado, as manufaturas portuguesas receberam um golpe de morte. Além disto, os demais proventos que Portugal, sob as mais variadas formas, recebiam do Brasil cessam bruscamente, levando o Reino a uma situação econômica desesperadora. É contra tal ordem das coisas que em grande parte se dirige o movimento constitucional do Porto; e a atitude das cortes convocadas pelos revolucionários será disto prova cabal: uma de suas preocupações consistirá em reconduzir o Brasil ao antigo regime de colônia.

Também aqui repercutira desfavoravelmente em certos meios a política de D. João. Já nos referimos à classe que no Brasil prosperava à sombra do regime de colônia, regime que direta ou indiretamente se ligavam seus interesses. Queremos falar dos comerciantes portugueses. Também eles se viram prejudicados pela supressão das inúmeras restrições que oneravam a economia brasileira. Com o declínio do regime colonial, sentiam-se decair dos passados privilégios e vantagens. Senhores exclusivos, até então, do comércio da colônia, são agora dele excluídos por concorrentes de outras nações, que depois da vinda de D. João não somente encontrou abertas as portas do Brasil, como ainda se veem favorecidos por vantagens múltiplas: juízos privativos, liberdade religiosa, etc. Era natural, portanto, que os antigos monopolistas do nosso comércio se constituíssem em adversários do novo sistema, e se aliassem por isso à revolução de que esperavam um retorno ao passado. Serão eles os seus principais agentes no Brasil.

Mas para compreendermos a revolução constitucional e sua repercussão entre nós, é preciso considerar ainda outro aspecto que nela ocorre. O desencadeamento da insurreição faz com que venham à tona, e explodam em agitações, as diferentes contradições econômicas e sociais que se abrigavam no íntimo da sociedade colonial e que a ordem estabelecida mantinha em respeito. Assim, as profundas diferenças sociais que separavam entre si as classes e setores sociais, relegando a massa da população para um ínfimo padrão de vida material e desprezível estatuto moral. São ainda as contradições de natureza étnica, resultando da posição deprimente do escravo preto e, em menor escala, do indígena, o que dá no preconceito contra todo indivíduo, mesmo livre, de cor escura. É a grande maioria da população que é aí atingida, e que se ergue contra uma organização social que além do efeito moral, resulta para ela na exclusão de quase tudo quanto de melhor oferece a existência na colônia. A condição dos escravos é outra fonte de atritos. Não se julgue a normal e aparente quietação dos escravos (perturbada, aliás, pelas fugas, formação de quilombos, insurreições mesmo por vezes) fosse expressão de um conformismo total. É uma revolta constante que lavra surdamente entre eles, e que não se manifesta mais porque a comprime todo peso e força organizada da ordem estabelecida.

São todas essas contradições e oposições que deflagram quando a colônia é abalada pela revolução constitucional. O país entra em ebulição, e são grandes movimentos de massa que provocam ou acompanham a derrubada dos governos locais das diferentes capitanias, a sua substituição por juntas eleitas e a implantação do regime constitucional no Brasil. O próprio soberano é atingido pela agitação, e em consequência do movimento de 26 de fevereiro de 1821, no Rio de Janeiro, sede do trono, ele é obrigado a aceitar o novo regime, reorganizar seu ministério com elementos de confiança popular e jurar a constituição que estava sendo elaborada pelas cortes convocadas em Lisboa.

A agitação que em consequência da revolução portuguesa se alastrou pelo Brasil, propagando-se de norte a sul do país, assume, por efeito da heterogeneidade de interesses e reivindicações que nela se manifestam, uma feição complexa e muitas vezes até contraditória. Encontramos nela, como vimos, forças reacionárias que não pensam senão no retorno do país ao seu passado colonial e de segregamento econômico e comercial. Ao lado destas forças alinham-se paradoxalmente, outras em particular as classes superiores da colônia que esperavam, pelo contrário, consolidar com a revolução e o estabelecimento de um regime constitucional, as vantagens, liberdades e autonomia adquiridas pelo Brasil nos anteriores anos de governo quase próprio e que tanto os favorecera. Encontramos, finalmente, as referidas forças populares, as camadas oprimidas da população brasileira que enxergavam na constituição que lhes era oferecida perspectivas de libertação econômica e social.

É do entrechoque dessas forças, procurando cada qual fazer prevalecer suas reivindicações, que resultam os diferentes fatos que constituem o agitado período que estende de 1821 em diante. Não entraremos em pormenores, mas assinalemos sua resultante geral. No desenvolvimento da revolução constitucional no Brasil é o segundo grupo de forças citadas – isto é, o “partido brasileiro” como já então era chamado e que representava as classes superiores da colônia, grandes proprietários rurais e seus aliados – que ganhará a supremacia. A reação colonizadora, embora contando com o apoio da metrópole e das cortes portuguesas, será levada de vencida porque não era mais possível deter o curso dos acontecimentos e fazer o Brasil retrogradar na marcha da História. A isto se opunha o conjunto do país, cuja própria subsistência, como vimos no capítulo anterior, se tornara incompatível com os estreitos quadros do antigo e já superado regime de colônia.

Quanto às camadas populares, elas não se encontravam politicamente maduras para fazerem prevalecer suas reivindicações; nem as condições objetivas do Brasil eram ainda favoráveis para sua libertação econômica e social. Daí, aliás, a descontinuidade e falta de rumo seguro nos seus movimentos, que, apesar da amplitude que por vezes atingem, não chegam nunca a propor reformas e soluções compatíveis com as condições do país. As relações de classe existentes, e contra que se insurgiam, estavam solidamente alicerçadas na estrutura econômica fundamental do Brasil que descrevemos nos primeiros capítulos deste livro, e que não somente se alterara, como prosperava; as relações de classe dela derivadas não se podiam, por isso, modificar sensivelmente. E assim a luta popular contra elas desencadeada não as atingira, e a revolução não irá além daquilo para que o Brasil estava preparado, isto é, a libertação do jugo colonial e a emancipação política. Reformas mais profundas teriam ainda de esperar outros tempos e outro momento mais favorável e avançado de evolução histórica do país.

A agitação popular será por isso dominada, serenando aos poucos. E permanecerá mais ou menos intacta a organização social vigente. É simplesmente no sentido da Independência que evolucionará a revolução constitucional. E caberá a direção desse processo ao “partido brasileiro”, naturalmente indicado para isto, pois seus interesses e objetivos se confundiam no momento com a marcha dos acontecimentos. Este partido, divisando no príncipe herdeiro D. Pedro (que ficara como regente depois da partida do rei seu pai) um hábil instrumento de suas reivindicações, soube dela se utilizar, atirando-a, talvez sem que ele mesmo o príncipe o sentisse, na luta contra as cortes portuguesas e os projetos de recolonização do Brasil. Desta manobra, coroada com pleno êxito, resultaria a Independência; e foi este o grande mérito de José Bonifácio e dos demais que o seguiram nesta política.

Organização do Estado Nacional: a Assembleia Constituinte de 1823

Já vimos como a emancipação política do Brasil resultou do desenvolvimento econômico do país, incompatível com o regime de colônia que o peava, e que por conseguinte, sob sua pressão tinha de ceder. Em outras palavras, é a superestrutura política do Brasil-Colônia que, já não correspondendo ao estado das forças produtivas e à infraestrutura econômica do país, se rompe, para dar lugar a outras formas mais adequadas, às novas condições econômicas e capazes de conter a sua evolução. A repercussão deste fato no terreno político – a revolução da Independência – não é mais que o termo final do processo de diferenciação de interesses nacionais, ligados ao desenvolvimento econômico do país, e por isso mesmo distintos dos da metrópole e contrários a eles.

A intervenção de fatores por assim dizer estranhos ao Brasil, e que fazem dele momentaneamente a sede da monarquia portuguesa, emprestam à Independência brasileira um caráter que faltam a violência e os conflitos armados que observamos nas demais colônias americanas. Tivemos um período de transição em que, sem sermos ainda uma nação de todo autônoma, não éramos propriamente uma colônia. Mas, no fundo, o fenômeno é o mesmo. Realizada por esta ou aquela forma, a emancipação de uma colônia resulta sempre de sua evolução econômica compatível com o estatuto colonial. E se nos foi poupada uma luta de proporções talvez consideráveis, a exemplo da América espanhola ou inglesa, tivemos do outro lado, para o estabelecimento definitivo da nossa autonomia, de arcar com dificuldades não menos sérias, ainda que de outra natureza. É o que mais adiante veremos.

Outro efeito da forma pela qual se operou a emancipação do Brasil é o caráter de “arranjo político”, se assim nos podemos exprimir, de que se revestiu. Os meses que medeiam da partida de D. João à proclamação da Independência, período final em que os acontecimentos se precipitam, resultou num ambiente de manobras de bastidores, em que a luta se desenrola exclusivamente em torno do príncipe regente, num trabalho intenso de o afastar das cortes portuguesas e trazê-lo para o seio dos autonomistas. Resulta daí que a Independência se fez por uma simples transferência política de poderes da metrópole para o novo governo brasileiro. E na falta de movimentos populares, na falta de participação direta das massas nesse processo, o poder é todo absorvido pelas classes superiores da ex-colônia, naturalmente as únicas em contato direto com o regente e sua política. Fez-se a Independência praticamente à revelia do povo; e se isto lhe poupou sacrifícios, também afastou por completo sua participação na nova ordem política. A Independência brasileira é fruto mais de uma classe que da nação tomada em conjunto.

Quanto ao papel representado por D. Pedro ele é todo ocasional, como se depreende do que acima foi dito. Regente do Brasil com a partida de D. João, pôde ele com toda facilidade levar adiante os planos do “partido brasileiro”, e realizar a separação do país. Constituiu-se assim num mero instrumento de reivindicações nacionalistas, e a tais circunstâncias fortuitas deveu o trono do novel império. A monarquia é por isso mesmo precária. Não é nela que assenta, ao contrário do que se passou nos modernos estados europeus saídos do feudalismo, não é nela que assenta o estado nacional brasileiro. Por isso, não tivemos, e não poderíamos ter tido um poder autocrático, que não caberia no quadro da nossa evolução política.

Vamos encontrar todos estes caracteres do estado brasileiro, logo depois que a Independência ele se organiza, no projeto constitucional elaborado pela Assembleia de 1823. Uma constituição é sempre a tradução do equilíbrio político de uma sociedade em normas jurídicas fundamentais. Ela reflete as condições políticas reinantes, isto é, os interesses da classe que domina e a forma pela qual ela exerce o seu domínio. Assim, o projeto de 1823, que não se chegou a converter em lei devido à dissolução prematura da Assembleia, sintetiza admiravelmente as nossas condições políticas de então. Daí o interesse em analisá-la.

É verdade que não passou de um projeto, de que se discutiu apenas uma reduzida parte. Mas saindo, como saiu, de uma comissão que representava legitimamente o espírito da Assembleia, e fazendo-se o confronto de suas disposições com a atitude desta nos seis meses que funcionou, pode-se afirmar que concordava perfeitamente com o modo de sentir dos constituintes. É, numa palavra, um documento político idôneo e de considerável interesse para o estudo das origens do Império brasileiro.

Ao elaborarem-no, foram os constituintes brasileiros buscar seus modelos nas constituições da época, inglesa e francesas, nesta principalmente, e nos princípios filosóficos e políticos do Contrato Social de J. J. Rousseau. Era uma homenagem às doutrinas então em voga. Mas daí não se infere, como erradamente entenderam alguns, que nossas condições fossem idênticas ou mesmo semelhantes às daquelas nações. Basta lembrar que as ideias do sistema político adotado por nossos legisladores constitucionais exprimiam na Europa as reivindicações do Terceiro Estado, especialmente da burguesia comercial e industrial, contra a nobreza feudal, a classe dos proprietários. Até certo ponto, é o contrário que se dá no Brasil. São aqui os proprietários rurais que as adotavam contra a burguesia mercantil daqui e do Reino. O que houve foi uma simples coincidência de meios a serem empregados para fins diversos. Qual era o problema dos legisladores brasileiros? Substituir as restrições políticas e econômicas do regime colonial pela estrutura de um estado nacional. Ora, as ideias centrais dos sistemas políticos e filosóficos que orientaram a revolução do Velho Mundo eram justamente estas: liberdade econômica e soberania nacional. Adotaram-nas por isso os constituintes de 23 porque coincidiam perfeitamente com seus propósitos, porque se adaptavam como luvas – feitas as devidas correções, de que, como veremos, não se esqueceram – ao caso que tinham sob as vistas; e também porque toda a cultura intelectual brasileira da época se formara na filosofia francesa do século XVIII. Por isso, na falta de um sistema original, que não estavam evidentemente em condições de produzir, apegam-se os nossos constituintes a elas, fazendo mais ou menos o que já realizara o Código Napoleônico, adaptando à sociedade burguesa do século XIX os princípios do direito civil romano.

Mas, posta de lado esta ganga doutrinária, vejamos os caracteres próprios do projeto.

O que choca em primeiro lugar é o xenofobismo extremados dos constituintes. No dizer de Aurelino Leal, o redator do projeto, Antônio Carlos, cada vez que nela escreveu a palavra estrangeiro teve diante de si o fantasma português, que por seu turno evocava o espectro da recolonização 49. Nem podia ser de outra forma. A Independência era de ontem, e o primeiro dever destes construtores do estado nacional brasileiro era naturalmente cortar para sempre as últimas amarras que nos prendiam a Portugal. A ameaça de recolonização aí estava: a Bahia e a Província Cisplatina ocupadas por tropas portuguesas e o Pará ainda insubmisso ao governo do Rio. E se é verdade que a resistência lusitana cedia à vista d’olhos e que as condições políticas e econômicas do Reino não autorizavam a previsão de uma atitude mais enérgica, também é certo que ninguém podia esquecer-se que à frente do Império se achava um príncipe português, e o que era mais, herdeiro da Coroa lusitana. Além disto, lavram ainda no Brasil os inúmeros interesses feridos pela política de D. João e cujas últimas esperanças viera a Independência aniquilar. Estes interesses criavam um ambiente agitado, principalmente na capital do Império, e cercando tão de perto os constituintes – faziam-se ouvir na própria Assembleia – ditavam-lhes uma atitude de extrema prudência. Seria ocioso repetir aqui o que foram as lutas que na praça pública se desenrolaram durante as sessões da Assembleia em torno da oposição de brasileiros e portugueses.

Por isso, o projeto está cheio de restrições a estrangeiros: naturalização limitada, incompatibilidade dos naturalizados para os cargos de representação nacional. Mesmo os brasileiros nascidos em Portugal somente depois de doze anos de residência no país passavam a gozar de seus plenos direitos políticos.

Outro caráter do projeto que nitidamente se destaca é a preocupação em limitar o mais possível os poderes do imperador e, pelo contrário, valorizar a representação nacional. É este, como vimos, um dos traços fundamentais do novo regime: a soberania nacional em oposição à do monarca.

Todas as vezes que na Assembleia se tratou de questões que envolvessem relações dela com o imperador, as suscetibilidades dos constituintes chegam ao auge. Logo nas primeiras sessões, uma simples frase de D. Pedro na fala do trono, frase em que afirmava “esperar da Assembleia uma Constituição digna dele e do Brasil”, foi suficiente para levantar as tempestades. E não tarda a retificação. Na resposta declara a Assembleia que “confia que fará uma Constituição digna da nação brasileira, de si e do Imperador”, em que a referência a D. Pedro era acintosamente colocada em último lugar. Casos semelhantes se repetem amiúde.

O projeto vai fielmente refletir tal ânimo, a começar pelo tratamento outorgado aos representantes: altos e poderosos senhores (artigo 83). Segue-se a indissolubilidade da Câmara, o voto apenas suspensivo (art. 113); as disposições relativas às forças armadas, sujeitas ao Parlamento e não ao imperador, e assim por diante. Um detalhe é característico. Ao regular a forma do veto imperial, dispôs o art. 116 do projeto que fosse interposto com a simples e eufêmica declaração de que “o imperador examinará” o projeto submetido à sanção.

Finalmente, o caráter classista se revela claramente na discriminação dos direitos políticos. Os grandes proprietários rurais, responsáveis pela Independência, reservaram-se todas as vantagens políticas dela. Com este fim, adota o projeto uma complicada hierarquia de direitos políticos, que do simples direito de votar em assembleias primárias (as eleições eram de dois graus) ao de ocupar os assentos do Parlamento, vai sucessivamente restringindo o círculo dos cidadãos deles investidos. Excluem-se de todos, isto é, não se consideravam na terminologia adotada, cidadãos ativos os criados de servir, os jornaleiros, os caixeiros das casas comerciais, enfim qualquer cidadão com rendimentos líquidos anuais inferiores ao valor 150 alqueires de farinha de mandioca. Numa palavra, toda a população trabalhadora do país, os escravos naturalmente incluídos 50.

Para os eleitores de segundo grau, que escolhiam os deputados e senadores, exigia-se um rendimento anual de 250 alqueires. Finalmente, para os deputados requeria o projeto 500 alqueires (1000 para os senadores); a qualidade de proprietário, foreiro ou rendeiro de longo prazo de bens de raiz rurais, de fábricas ou de qualquer estabelecimento de indústria. Excluíam-se, portanto, os que auferissem renda de profissão mercantil.

Em último lugar suprimiu o projeto todas as restrições de ordem econômica – monopólios, privilégios, etc.- estabelecendo a mais ampla liberdade econômica e profissional.

Vemos assim como o projeto de 1823 traduzia bem as condições políticas dominantes. Afastando o perigo da recolonização; excluindo dos direitos políticos as classes inferiores e praticamente reservando os cargos da representação nacional aos proprietários rurais 51; concentrando a autoridade política no Parlamento e proclamando a mais ampla liberdade econômica, o projeto consagra todas as aspirações da classe dominante dos proprietários rurais, oprimidos pelo regime de colônia, e que a nova ordem política vinha justamente liberar.

Assim, a ideologia da Assembleia de 1823 – que era a da classe dominante, por ela representada em grande maioria – reflete perfeitamente seus interesses. Isto explica porque, apesar de todo o seu tão apregoado liberalismo, não se embaraça com a questão dos escravos, adaptando-lhes a situação às exigências da filosofia russeauísta, de que fazia timbre em não se afastar da eufêmica disposição do art. 256 do projeto: “A Constituição reconhece os contratos (!) entre senhores e escravos; o governo vigiará sobre sua manutenção”.

É este o mais perfeito retrato do liberalismo burguês…

(PRADO, Jr., Caio. Evolução política do Brasil: Colônia e Império. 13ª edição. São Paulo, Brasiliense, 1993. pp. 45 a 56.)


Notas de rodapé

46 Cit. p. Tobias Monteiro, História do Império, p. 68

47 Pelo tratado de 1810, ficaram até em piores condições, pois pagavam nas alfândegas brasileiras 16% ad valorem, enquanto os ingleses estavam sujeitos a 15% apenas.

48 Talvez se pudesse chamar de “autocrático” ao poder do primeiro imperador. Em todo caso, os oito anos de seu governo são apenas um períodos transitório e por sua natureza, passageiro; é a sua própria instabilidade a maior prova de que não se adaptava às condições brasileiras.

49 História Constitucional do Brasil, p. 64.

50 Não se consideravam nem brasileiros, ex-vi do art. 5º. Segundo uma emenda posterior, passaram os escravos a brasileiros, mas não a cidadãos.

51 Também aos foreiros e rendeiros, por longo prazo, o que os equiparava de certa forma os não proprietários.


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