Leminski: o trotskista-budista

Leminski: o trotskista-budista

Uma homenagem aos 78 anos de nascimento do poeta curitibano Paulo Leminski.

Luiz Maioli 24 ago 2022, 16:31

O “mestiço” Paulo Leminski Filho nasceu na capital paranaense, no dia 24 de agosto de 1944, sob o signo de gêmeos. Filho de família polonesa por parte de pai, de quem herdou o nome que marcou uma geração, e negra, por parte de mãe, Áurea Pereira Mendes Leminski. Em vida, o poeta paranaense provocou muita “chuva” e povoou de “nascentes” a seara de poesia brasileira com poesias marcantes. Com certeza, foi um dos mais importantes poetas brasileiros da segunda metade do século passado. 

Poliglota, Leminski se tornou amante das ciências humanas, traduziu, dissertou muito e biografou personalidades como Jesus Cristo e Trotsky, mas foi na poesia que ele ganhou o cenário nacional. Leminski saiu da quebrada para frequentar em 1958 o Colégio São Bento em São Paulo, instituição secular mantida pelos monges beneditinos. Aluno disciplinado, estudou latim, grego, francês e as obras de Homero, Dante Alighiere e Virgílio. Os monges identificaram em sua personalidade pontos visíveis de soberba, inquietação, vaidade e sensualidade. A direção do mosteiro achou mais prudente mandar o garoto de volta para Curitiba. 

Leminski produziu até o último instante. Quanto mais próximo da morte ele se aproximava, mais se dedicava a observá-la. Foi em A Hora da Lâmina, seu último livro escrito em vida, que Leminski tratou nas entrelinhas dos indícios de uma resposta para umas das mais aterradoras questões da vida humana: a morte e a disposição para enfrentá-la. A nossa visão da morte pode ser afetada pela nossa auto percepção da vida:

 “Quanto a morte? Sou nipônico. Você tem que superar o medo da morte. A morte é alguma coisa que está dentro da vida e não contra ela. Eu nunca me confrontei com situações limite, mas não tenho medo da morte”, Leminski, 1985. 

A final você é o seu corpo ou a mente que o habita? Respostas diferentes geram significados diferentes para a morte. 

Meses antes de deixar esse mundo, Leminski pensava sobres essas questões. Todas as palavras que seguem são dele:

Quando Francisco Xavier, o missionário jesuíta, aportou no Japão, na crista das navegações, sua catequese produziu milhares de conversões e o catolicismo começou a se espalhar pelo país. Nas cartas que escreveu para seus superiores em Roma, Xavier descreve com júbilo os progressos do apostolado na Terra do Sol Nascente. Mas nas mesmas cartas, porém, queixa-se contra os adeptos de uma seita chamada Zen. Não consigo converter nenhum dos adeptos dessa seita, Xavier confessa. 

Não mostram nenhum respeito pelas coisas sagradas, riem de tudo e debocham dos símbolos de nossa religião, prossegue.

A razão secreta do insucesso de Xavier com os praticantes do zen reside na radical diferença entre as relações corpo/mente no catolicismo e no zen. 

Todas as práticas do zen (o zen é – sobretudo – uma prática) visam atingir o ponto de fusão corpo/mente, aquele lugar alfa onde a distração não seja mais possível. Visam, de certa maneira, uma espiritualização do corpo e uma corporificação da mente e do espírito.
Quem pratica artes marciais, aprende logo que o corpo não é uma máquina governada por um comando genial chamado mente. Na hora de aplicar um golpe, sente-se claramente que o corpo pensa.   Impossível não ver os paralelos entre essa experiência e a vivência do sexo, que para ser realizado plenamente, exige um momento de fusão total entre um corpo que sente e uma mente que dirige. Não se pode obter uma ereção ou um orgasmo pensando na revogação do pagamento da dívida pública. 

Ao tentar converter superiores da seita zen, com a frase básica “salve tua alma”, Xavier esbarrou num obstáculo intransponível: os monges zen não podiam conceber que a alma fosse uma coisa que a gente possuísse e pudesse ter um destino distinto do corpo.

A arte de um judoca ou de um carateca não é “una cosa mentale”. É essencialmente unitária, anterior ou posterior à dicotomia corpo/mente que impregna, sub-repticiamente, todo o pensamento ocidental de Descartes para cá. As origens desse divórcio indissociável são, claro, de natureza religiosa: a mente do racionalismo ocidental é a filha leiga da alma salvável no cristianismo.
A sociedade urbano-industrial, através dos métodos de trabalho que impôs, promove a dissociação corpo/mente mais do que qualquer tratado de metafísica. Não há lugar para o corpo na grande fábrica, a não ser como unidade de trabalho, nunca como lugar de prazer e satisfação sensorial.

E a alma toma os novos nomes de “habilitação profissional”, “treinamento especializado”, abstrações no seio dessa imensa abstração que é a anônima sociedade industrial-urbana”.

Eu mando, você obedece 

Escravos e senhores. Nobres e servos. Patrões e empregados. Técnicos e operários. Nada distingue mais o homem dos animais do que a divisão de trabalho, nossa grande força e também a fonte de nossas fraquezas.

Foi através da divisão do trabalho que o homem multiplicou seus poderes sobre a natureza numa velocidade fantástica: há apenas 30 mil anos tudo o que tínhamos para enfrentar a hostilidade do meio ambiente eram armas de pau, pedra e osso, e vestimentas de peles de animais. Neste prazo biologicamente curtíssimo, saltamos da lança de madeira para o computador, a eletricidade, a engenharia genética e a energia nuclear. Isso só foi possível porque o homem, em todas as latitudes, especializou determinados grupos de sociedade em tarefas específicas. Qualquer tigre sabe fazer tudo o que qualquer tigre faz, e nada além disso. Todo tigre é um inteiro. Nós somos fragmentados. Uns plantam, outros vendem. Uns mandam, outros obedecem. Uns celebram cerimônias aos deuses, outros carregam pedras para erguer pirâmides, templos e catedrais.

Quem não vê que a dicotomia mente/corpo é uma projeção e uma decorrência da divisão do trabalho, a divisão interiorizada em nós? A mente é uma metáfora da classe dirigente servida belo corpo.

A divisão do trabalho é o verdadeiro Pecado Original, aquele que nos expulsa do paraíso e nos lança na grande aventura da vida e do mundo. A serpente sugere, Eva colhe o fruto proibido, Adão o come… Integrar mente e corpo é voltar ao paraíso que só conseguimos experimentar em momentos privilegiados: a pessoas desintegradas, o paraíso também é vivido sob a forma de fragmento.

Um dos momentos mais radicais da divisão do trabalho está na separação entre trabalho braçal e intelectual. Essa divisão começa no mundo religioso. Sacerdotes e agricultores, monges e guerreiros, padres e fiéis, são o modelo remoto da atual divisão entre técnicos e teóricos diante da mão-de-obra.

E certas práticas religiosas como o jejum, a castidade, o silêncio e a busca do desconforto físico concorreram poderosamente para acelerar a cisão entre corpo e mente. Não seria exagero imaginar que a noção da “alma” tenha nascido dessas práticas onde o corpo é tratado como um inimigo, fera que deve ser domada, humilhada e reduzida a ser uma montaria dócil sob as rédeas do “Espírito”.

No século passado, quando começa o mando industrial de hoje, aparece a figura do “intelectual”, o homem/mente por excelência, vivendo apenas na atmosfera rarefeita do “mundo das idéias”. Com o intelectual, seus afins, o técnico, o especialista, o pensador…

Entre um corpo e uma mente, mil anos-luz de vazio onde se criam monstros e demônios, duendes e neuroses.

Os demônios se chamavam Lucifer, Belzebu, Asmodeu, Belial. Hoje chamam-se neurose, paranóia, esquizofrenia, mania.

É perigoso separar aquilo que, por natureza, é uno e inteiro.

Retorno ao paraíso perdido, a re-união mente e corpo não pode sequer ser sonhada, em termos integrais.

Essa estranha entidade que é o ser humano, que somos nós, resulta irremediavelmente cindida.

O próprio exercício disso que se chama “razão” parece estar ligado, carne e unha, com a dissociação entre uma metade que “pensa” e um corpo que obedece. Estamos condenados à razão.

Mas é essa mesma razão dissociativa que pode nos aproximar, por momentos iluminados, da unidade perdida, era algum ponto-anos-luz no espaço/tempo.

Nós buscamos essa unidade na prática do lúdico e do erótico, na arte, no esporte, no amor e no sexo.

Nessas áreas do inutensílio, ela vida além da tirania do lucro e da utilidade.

Ao brincar e jogar, estamos salvos, livres. E de volta.

Para o zen, é na própria vida cotidiana que está o segredo. E preciso resgatar a grandeza infinita dos gestos simples e “elementares”. Cuidar da vida. Curtir a minúcia. Lavar a própria roupa. A louça. Arrumar a casa. Fazer sua comida. Tomar banho como quem realiza um ato sacro. Recuperar o prazer da prática dos atos primários. Saber que ser matéria, é uma dignidade e um esplendor.

Dá trabalho.

Mas, para brilhar, as estrelas têm que arder, até o glorioso fim.

La vie em close

Leminski enfrentou a morte com a mesma força que enfrentou a vida, de forma sofisticada e complexa. Morreu prematuramente assim como os poetas Torquato Neto e Vladimir Maiakovski.
Em 7 de junho de 1989, o “cachorro louco” Leminski, o “samurai malandro”, conforme o denominou Leyla Perrine Moisés, deixou de “fazer chover em nossos piqueniques”. Morreu em São Paulo, berço dos dois movimentos que sacudiram a estrutura poética brasileira e que ainda hoje são ressignificados. Leminski morreu, mas não sem antes propor a libertação da poesia moderna brasileira de sua “camisa de força”, o Concretismo, e de deixar como herança um rastro de inquietação. “Cumpri meu serviço militar na poesia concreta”, disse em um bate-papo realizado no auditório Paulo Garfunkel, na biblioteca pública do Paraná em 1985.
Multimídia, Leminski atuou na publicidade, nas artes gráficas, nos quadrinhos, na televisão e na música popular, compondo para e com Caetano Veloso — que gravou “Verdura” em 1981 — Itamar Assumpção, Moraes Moreira, Jorge Mautner, Paulinho Boca de Cantor e Gilberto Gil, totalizando 25 músicas distribuídas em mais de 12 discos.
Em seus 24 e 31 anos, criou uma das mais inventivas e ricas expressões poéticas, realizou oficinas de teatro por todo país, publicou cinco livros de poemas, estreando na poesia com Quarenta Clics em Curitiba (1976). Depois lançou o romance experiência — Catatau (1975), escreveu um outro romance também pouco conhecido, Agora é que são elas (1984). Leminski era mais do que um “camponês”, um discípulo de teorias. Assim como o japonês Takuboku, foi um poeta de carne e osso irremediavelmente perecível, e deixou-nos mais do que um punhado de poemas, mais do que um depoimento de um “pequeno poeta de província”. 

Leminski fazia revolução política fazendo uso da linguagem massificada e cotidiana.  

“Ainda vão me matar numa rua.
Quando descobrirem,
principalmente,
que faço parte dessa gente
que pensa que a rua
é a parte principal da cidade.”

Leminski; Toda Poesia – [quarenta clics em Curitiba; 1976]


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