Venezuela: a experiência bolivariana na luta para transcender o capitalismo

Sociólogo venezuelano realiza balanço do processo bolivariano e da crise do país com a degeneração promovida pelo governo de Maduro.

Edgardo Lander 27 nov 2017, 17:14

I. As lutas pela superação do capitalismo nas primeiras décadas do século XXI

A Revolução Bolivariana foi a primeira tentativa de lavar a cabo uma transformação socialista no século XXI em todo o mundo. Como consequência, os debates sobre a experiência venezuelana referem-se não só às dinâmicas próprias do processo de transformação no país desde que Chávez chegou à presidência em 1999, mas também, em termos mais amplos, sobre as possibilidades, potencialidades e limites do socialismo neste século. O foco deste texto está na análise da experiência venezuelana, mas isso se realiza dentro do contexto dos debates latino-americanos sobre o deslocamento à esquerda com a emergência dos governos progressistas na maior parte da América do Sul e dos debates globais sobre alternativas viáveis para transcender o capitalismo.

Os desafios que se confrontam hoje na busca pela superação do capitalismo são maiores e bastante mais complexos que os imaginados nos séculos XIX e XX. Hoje confrontamos não só a crise do capitalismo, mas igualmente a crise terminal do padrão civilizatório que foi impondo a modernidade ao longo dos últimos cinco séculos até estender-se na totalidade do planeta. Este padrão civilizatório está ameaçando a própria sobrevivência humana. Para pensar/atuar/criar alternativas a este padrão civilizatório em crise, é indispensável abordá-lo em sua extraordinária complexidade. Enfrentamos não só uma sociedade de exploração/dominação de classes, mas igualmente, uma sociedade colonial, antropocêntrica, racista, patriarcal e homofóbica, uma sociedade que, apesar dos discursos liberais sobre a multiculturalidade, só concebe como possível, como “moderno”, um modo de vida, e impõe a hegemonia de padrões de conhecimento eurocêntricos. Uma sociedade de profundas e crescentes desigualdades na qual tende a naturalizar-se um estado de guerra permanente.

As ferramentas teóricas e os instrumentos políticos que nos dois séculos anteriores pareciam adequados para superar o capitalismo, hoje resultam extraordinariamente parciais, embotados e reducionistas. Os assuntos e eixos de confrontação que foram privilegiados pelas lutas anticapitalistas dos séculos e décadas anteriores, já não apenas são insuficientes para abordar os desafios que hoje confrontamos, senão continuam contribuindo para invisibilizar outras dimensões básicas da vida coletiva, ou colocando-as num segundo plano.

A experiência do socialismo do século XX, para além de suas conquistas sociais, suas confrontações com o imperialismo e seu papel central na derrota da Alemanha nazista, fracassou como alternativa ao capitalismo e à modernidade colonial. Em termos muito esquemáticos, as dimensões principais deste fracasso podem ser sintetizadas no seguinte:

* As visões antropocêntricas e eurocêntricas da modernidade, encarnadas pelo capitalismo, não foram questionadas. Pelo contrário, prevaleceu o economicismo e se radicalizou a noção do progresso. A superação das sociedades capitalistas em termos materiais e produtivos se converteu numa referência básica do avanço para o comunismo. (Toneladas de cimento, toneladas de aço). Isso conduziu a um aprofundamento do assalto e depredação da natureza, dando continuidade ao ataque moderno antropocêntrico e patriarcal à Mãe Terra1 que ameaça as condições das quais depende a reprodução da vida.

* Preservou-se uma fé acrítica na ciência e na tecnologia capitalistas, nas chamadas forças produtivas do capitalismo, como terreno material para a construção de uma sociedade socialista2.

* A crítica à democracia liberal como democracia de classe burguesa levou à anulação de toda forma de democracia, conduzindo à criação de Estados autoritários nos quais os dissidentes eram considerados como inimigos do povo.

* Seu caráter altamente centrado no Estado/partido conduziu a uma completa falta de autonomia dos múltiplos âmbitos da sociedade, empobrecendo radicalmente o tecido multiforme desta, reprimindo memórias, bloqueando, assim, os processos de experimentação social sem os quais não é possível construir outro mundo.

* Não houve reconhecimento do extraordinário valor da pluralidade de culturas existente no planeta, radicalizando a monocultura colonial da modernidade, agora em nome de uma cultura proletária universal. A diversidade foi reduzida ao âmbito do folclore.

* Falta de incorporação efetiva de múltiplas dimensões da vida social para além da economia (pluralidade cultural, patriarcado, racismo, sexualidades, subjetividades, relações com a chamada “natureza” e outros padrões de conhecimento) como essenciais para a possibilidade de uma transformação social radical.

As sociedades socialistas do século XX terminaram em transições abruptas ou graduais ao capitalismo, com frequência um capitalismo selvagem com um peso preponderante das máfias.

Depois da queda do Muro de Berlim e do colapso do bloco soviético, a ideia do socialismo como alternativa ao capitalismo perdeu grande parte de seu atrativo não só na Europa mas em grande parte do resto do mundo. Ainda que a ideia do socialismo não tenha desaparecido do léxico político, tornou-se muito marginalizada. Isso não significou de modo algum o fim das lutas anticapitalistas, mas a maioria destas tomaram outros cursos, outros sujeitos, outras gramáticas políticas, outros imaginários, outras utopias e outras dinâmicas organizativas. A expressão mais vigorosa desta nova fase pós-socialista das lutas anticapitalistas foram processos como o Fórum Social Mundial com seus múltiplos e heterogêneos temas e expressões de luta pela construção de outro mundo possível. Em contraste com as lutas anticapitalistas anteriores, os partidos políticos foram basicamente marginalizados e a captura do Estado não fez parte destacada da agenda.

Com os governos progressistas na América Latina, especialmente com a Revolução Bolivariana, a noção do socialismo recuperou uma vida nova. Estes processos políticos pareciam levar em conta e propor alternativas à maioria das limitações e críticas que haviam sido debatidas em relação ao socialismo do século XX, isso na forma do chamado Socialismo do Século XXI. Especialmente importante foi o seguinte:

* A dinâmica política que conduziu a estes novos governos não foi liderada por partidos políticos, mas por uma ampla e heterogênea diversidade de movimentos sociais, povos e comunidades.

* Abriu-se um debate crítico sobre o desenvolvimento, e sobre outras maneiras de relacionar os seres humanos com a natureza ou a Mãe Terra. No Equador e Bolívia os direitos da natureza foram reconhecidos pela primeira vez constitucional ou legalmente.

* Plurinacionalidade e pluriculturalidade, o reconhecimento e a celebração da rica diversidade de povos, comunidades, tradições e memórias presentes nestas sociedades, apesar de cinco séculos de Estados coloniais autoritariamente monoculturais.

* Na Venezuela, Equador e Bolívia incorporam-se constitucionalmente as noções de democracias participativas e/ou comunitárias. É significativo que estas modalidades de democracia não são concebidas como alternativas à (ou substitutos da) democracia representativa, mas como formas de aprofundar, radicalizar, a democracia.

Para se aproximar de um balanço da experiência destes governos progressistas desde uma perspectiva de suas potencialidades transformadoras anticapitalistas e no caminho para a construção de alternativas à civilização em crise, é indispensável ir além do eixo único a partir do qual boa parte da tradição da esquerda focalizou a análise, isto é, nas relações de classe (em que medida alteraram-se as correlações de força a favor dos setores populares, houve uma redistribuição do poder e da riqueza?) e na geopolítica (principalmente as posturas com relação ao imperialismo). Governos com uma linguagem que apela ao popular e têm um discurso anti-imperialista foram considerados como “progressistas” ou de “esquerda” quase independentemente de suas políticas em outros âmbitos da dominação. As relações de poder, exclusão e dominação da sociedade contemporânea são mais complexas e multidimensionais. Dificilmente pode se dar conta dela a partir de concepções reducionistas que antes se considerava que podiam dar conta das principais posturas no campo do político. Hoje não existe um eixo principal (contradição principal?) que seja capaz de dar conta da complexidade dos desafios que coloca a atual crise civilizatória.

Estas questões servirão de orientação para a análise da experiência venezuelana destes anos. Isso será feito na seguinte sequência. Em primeiro lugar, o texto aborda os antecedentes históricos que tornaram possível o processo bolivariano. Em segundo lugar, serão discutidas as concepções principais do projeto bolivariano inicial, seguido pelos marcos mais importantes e pelas principais conquistas deste processo. Tudo isso servirá de base para uma análise crítica/analítica do processo bolivariano (“Tensões, contradições e limitações do processo bolivariano como experiência transformadora”). O texto conclui com uma reflexão sobre o que podemos aprender desta rica experiência histórica e com algumas conclusões políticas.

II. Antecedentes do processo bolivariano: a crise terminal do regime petroleiro rentista

O sistema político que substituiu a ditadura militar de Pérez Jiménez em 1958 caracterizou-se por um sustentado crescimento econômico, uma melhoria relativa das condições de vida dos setores populares e um importante nível de legitimidade durante as primeiras duas décadas3. No entanto, desde finais da década de setenta inicia-se na Venezuela uma prolongada crise econômica, política e cultural. Isso marca o começo da crise terminal da sociedade e Estado rentistas que haviam prevalecido no país durante a maior parte do século. Em termos imediatos isso se expressou numa aguda redução da renda petroleira per capita que limitou a capacidade do Estado para responder às demandas da população. Os dois grandes partidos, Ação Democrática e COPEI, vão se transformando em máquinas eleitorais crescentemente clientelistas e corruptas que se distanciam cada vez mais de suas anteriores bases de apoio. Começam igualmente uma mudança aguda do que haviam sido até o momento os imaginários políticos socialdemocrata hegemônicos, com uma forte ofensiva ideológica do liberalismo antiestatista e da antipolítica, que de forma crescente exclui os setores populares, inclusive do discurso político4. Estas tendências têm um ponto de inflexão com o início do segundo governo de Carlos Andrés Pérez (1989), quando se anuncia a aplicação do pacote de políticas de ajuste estrutural do Consenso de Washington, medidas exigidas pelo FMI para que o país pudesse obter novos empréstimos, em condições de severos problemas orçamentários e dificuldades para o pagamento da dívida externa. Estes ajustes já haviam se dado na maior parte da América Latina, mas na Venezuela, graças ao cofre da renda petroleira, foram postergados. Em 27 de fevereiro de 1989, estando em Washington a delegação que assinaria a Carta de Intenção entre o governo venezuelano e o FMI para a aplicação de tal receituário, inicia-se o Caracazo: saques e protestos populares massivos de vários dias nos principais centros urbanos, com dimensões desconhecidas na história anterior do país. Depois de um desconcerto inicial, o governo responde com uma brutal repressão que produz centenas de mortos.

O impacto destas políticas de ajuste foi devastador para os trabalhadores e o mundo popular em geral. Houve um forte rebaixamento nos salários reais e na participação da remuneração do trabalho na renda nacional. Reduziram-se substancialmente os custos laborais na indústria. Com base na metodologia que mede a linha de pobreza com base na renda monetária, constatou-se um aumento significativo nos níveis de pobreza e de pobreza extrema. Deu-se um salto qualitativo nos níveis de desigualdade. Tudo isso se traduz na deterioração das condições de vida, de alimentação e de saúde de grandes proporções da população venezuelana5. O resultado foi a quebra definitiva de toda ilusão de legitimidade do sistema político.

O mal-estar e o distanciamento com relação ao sistema político generalizaram-se particularmente entre os setores subalternos da sociedade, mas não havia uma alternativa política visível no horizonte. Em seu conjunto, a esquerda era débil, tendo sido derrotada na luta armada da década de sessenta e sem capacidade de representar um desafio eleitoral crível aos partidos que embora debilitados seguiam sendo dominantes.

Poucos anos mais tarde, expressão do fato de que o descontentamento havia se estendido às forças armadas, em 4 de fevereiro de 1992, produz-se a tentativa de golpe de Estado encabeçada por Hugo Chávez e uma segunda tentativa em novembro do mesmo ano. Chávez, um militar de carreira havia criado o movimento clandestino Movimento Bolivariano Revolucionário 200 no começo dos anos oitenta. Este movimento militar foi influenciado e radicalizado através de relações com algumas pequenas organizações de esquerda, principalmente RUPTURA e a Causa R.

A forma como reage a população, permanecendo na expectativa, sem que se produzissem reações populares contra estas tentativas de golpe por parte de militares desconhecidos para a maioria da população, confirma a profundidade da crise de legitimidade. Quase de imediato, Chávez se converteu numa referência simbólica de alcance nacional.

Esta crise ainda se prolonga por mais alguns anos. Carlos Andrés Pérez é destituído da presidência sob a acusações de corrupção, e nas eleições de 1993, pela primeira vez desde 1958, não ganha um candidato postulado pela Acción Democrática ou pela COPEI. Rafael Caldera, que havia sido o fundador e principal dirigente deste último partido, cria um novo partido e, em aliança com algumas pequenas organizações de esquerda, ganha as eleições com um programa antineoliberal. Caldera, depois de sobreviver à crise financeira mais profunda da história do país durante seus primeiros anos de governo, e depois de um longo período de indecisão, negocia um acordo com o FMI e impulsiona, sob o nome da Agenda Venezuela, as orientações básicas da agenda neoliberal que tanto havia questionado. Foram particularmente severas as consequências da reforma da Lei do Trabalho que reduziu drasticamente o montante das prestações sociais dos trabalhadores e as políticas de abertura e internacionalização da indústria petroleira. Desta maneira, contribui-se para aprofundar a desconfiança da maioria da população com o sistema político. No final dos anos noventa, a sociedade venezuelana está profundamente dividida econômica, social e politicamente, atravessa uma crise econômica aguda que se expressa numa severa e prolongada deterioração das condições de vida da maioria da população. Seu sistema político estava profundamente deslegitimado.

Quando Chávez vence as eleições em dezembro de 1998, faz isso dando voz, sentido de direção e esperança a esse enorme descontentamento.

III. O projeto inicial do chavismo

Quando Chávez foi eleito presidente em 1998, tornou-se presidente num contexto internacional particularmente pouco favorável. Profundas derrotas políticas, teóricas e ideológicas de movimentos transformadores acontecem em todo o mundo. Colapsara poucos anos antes o bloco soviético, fato que posiciona os EUA como potência unipolar. Há uma ampla hegemonia do neoliberalismo e da ideologia do fim da História. Quase todos os países da América Latina têm governos de direita que implementam as políticas de ajuste estrutural do Consenso de Washington. Avança firmemente a agenda global e continental do livre comércio. Com exceção de Cuba, o socialismo praticamente despareceu do debate político. China, o principal país “socialista”, dá passos cada vez mais claros numa direção neoliberal e vai se convertendo no eixo mais dinâmico do processo de acumulação do capital em escala mundial. No entanto, não apontam as primeiras expressões de uma nova fase de luta dos povos do continente: o levante indígena do Equador de 1990 e o levante Zapatista de 1994. Na Venezuela, a esquerda é fraca, assim como as organizações e movimentos sociais populares.

As transformações que Chávez imaginou estavam imprecisamente prefiguradas quando ele chegou à presidência. À parte da limitada experiência política de Chávez, restrita fundamentalmente ao mundo militar, tratava-se de um momento histórico muito complexo em que estava pouco claro se uma alternativa viável à ordem neoliberal poderia ser considerada socialista, ou em termos menos radicais como transformações nas linhas do Estado de bem-estar social formulado pela socialdemocracia europeia. Chávez afirma nessa época que os dois grandes sistemas políticos do século XX, a democracia liberal capitalista e o socialismo, fracassaram6. Considera necessária outra via de construção de uma sociedade alternativa que fosse profundamente enraizada nas culturas e nas tradições de luta dos povos latino-americanos. Mais que um modelo ou um programa para a nova sociedade, aparecem enunciadas as orientações normativas que devem guiar a construção de tal sociedade: a prioridade do popular, a soberania nacional, a igualdade, a inclusão, a solidariedade, a superação das limitações próprias da democracia representativa, a união dos povos do continente, e a luta por um mundo multipolar, oposto ao mundo da hegemonia imperial dos Estados Unidos. Propõe-se a retomar as batalhas pela independência das primeiras décadas do século XIX e identifica-se estreitamente com a figura de Simón Bolívar. Povo, categoria que sintetiza o nacional e o popular, é a palavra-chave deste discurso.

IV. Os marcos principais do processo bolivariano

A eleição de uma Assembleia Constitucional foi a proposta de curto prazo mais importante apresentada por Chávez durante sua campanha eleitoral. Foi assumida como a primeira prioridade do novo governo. No dia da posse, Chávez anunciou a convocatória, mediante um referendo nacional, a uma Assembleia Nacional Constituinte para refundar a República. Este texto constitucional, aprovado por 72% dos participantes num segundo referendo é concebido como o instrumento jurídico-político básico do programa para a mudança a ser iniciada pelo novo governo. Propõe-se, de acordo com seu Preâmbulo:

[…] o fim supremo de refundar a República para estabelecer uma sociedade democrática, participativa e protagonista, multiétnica e pluricultural num Estado de justiça, federal e descentralizado, que consolide os valores da liberdade, da independência, da paz, da solidariedade, do bem comum, da integridade territorial, da convivência e do império da lei para esta e as futuras gerações; assegure o direito à vida, ao trabalho, à cultura, à educação, à justiça social e à igualdade sem discriminação nem subordinação alguma; promova a cooperação pacífica entre as nações, impulsione e consolide a integração latino-americana de acordo com o princípio de não-intervenção e autodeterminação dos povos, a garantia universal e indivisível dos direitos humanos, a democratização da sociedade internacional, o desarmamento nuclear, o equilíbrio ecológico e os bens jurídicos ambientais como patrimônio comum e irrenunciável da humanidade.

O modelo econômico se define sobre a base de um forte papel do Estado, que ao mesmo tempo assegura a propriedade e a iniciativa privada e reserva para si a atividade petroleira e de outras indústrias, explorações, serviços e bens de interesse público considerados como de caráter estratégico. Do ponto de vista político, as mudanças mais significativas consistem na introdução de uma multiplicidade de mecanismos e modalidades de participação. Estas estão concebidas como instrumentos para aprofundar e radicalizar a democracia nos âmbitos tanto políticos como econômicos, sem substituir por isso as instâncias clássicas da democracia representativa7. Preserva-se a divisão político-territorial existente em estados, municípios e paróquias, assim como a separação de poderes característica da tradição liberal.

Na contramão do que estava ocorrendo no resto do continente, os direitos econômicos, sociais e culturais não só se ratificaram, mas se expandiram significativamente. Estabelece-se como responsabilidade do Estado o acesso universal e gratuito à educação, à saúde e à seguridade social. Incorpora-se igualmente – pela primeira vez na história do país – um amplo reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, incluindo seus direitos territoriais. Como expressão do papel decisório de Hugo Chávez Frías neste processo, modifica-se o nome do país para República Bolivariana da Venezuela, alarga-se o período presidencial para seis anos e se introduz a reeleição presidencial imediata.

Um importante momento de ruptura levado a cabo pelo governo de Chávez dá-se dois anos depois de aprovada a Constituição, quando, sobre a base de poderes especiais que lhe haviam sido outorgados pela Assembleia Nacional mediante uma Lei Habilitante, o Presidente decretou 49 novas leis em 20018. Este conjunto de leis teve, entre outros, o objetivo de democratização da propriedade e da produção; o financiamento ou a promoção de modalidades econômicas alternativas às organizações de caráter empresarial; a reorientação dos instrumentos de financiamento do setor público para o apoio a estas mediante o fomento da pequena e média indústria; a criação de um sistema de microcréditos e o fomento de modalidades alternativas de propriedade e de organização da produção como as cooperativas. Foram particularmente polêmicas às leis referidas à superação do latifúndio, contra a pesca de arrasto e o maior controle estatal da indústria petroleira.

Este conjunto de leis foi catalogado pelo empresariado e pela oposição política como um atentado à propriedade privada, muitos argumentando que com isso se confirmava o caráter estatista ou comunista do projeto político do governo. Com uma paralisação empresarial nacional de rechaço a estas leis, em dezembro de 2001, começa uma fase de imensa confrontação entre o governo e uma oposição disposta a utilizar todos os meios possíveis para sua derrubada. Em abril de 2002, produz-se um golpe de Estado respaldado pelo governo dos Estados Unidos que derruba o governo por dois dias. Finalmente, o golpe fracassou graças a uma extraordinária mobilização popular e pela divisão das forças armadas. Participaram neste golpe os partidos de oposição, os principais grêmios empresariais, a hierarquia da Igreja Católica e um setor das forças armadas. Os meios de comunicação privados jogaram um papel primordial.

Entre os meses finais de 2002 e começo de 2003, produz-se uma paralisação/sabotagem petroleira e um lockout empresarial com o propósito de derrubar o governo. Sem gasolina, sem gás para consumo doméstico, com escassos meios de transporte de pessoas e mercadorias, o país ficou semiparalisado por mais de dois meses. O produto interno bruto teve um colapso de 17% esse ano. E, no entanto, foi o período de maior mobilização popular, o governo só conseguiu sobreviver a estas tentativas da oposição de desalojá-lo do poder como resultado dos muito elevados níveis de participação ativa dos setores populares. No referendo revogatório de 2004, Chávez saiu muito fortalecido, ao ser ratificado no cargo com o respaldo de 59,1% dos eleitores.

Um marco de extraordinárias consequências ocorreu em janeiro de 2005 quando, no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, Chávez declarou que o processo bolivariano era socialista9.

A partir de 2013, o país entra numa profunda crise política, econômica e cultural. Deixam de estar presentes quase de forma simultânea dois pilares fundamentais dos quais o processo bolivariano se fizera dependente: a liderança carismática de Chávez e os elevados preços do petróleo. Nas eleições presidenciais realizadas pouco tempo depois do falecimento de Chávez, Nicolás Maduro é eleito com uma diferença de apenas 1,5% sobre Henrique Capriles, o candidato do conjunto da oposição. Em dezembro de 2015, a oposição ganha as eleições parlamentares por uma ampla maioria, obtendo uma maioria qualificada de dois terços que lhe permitiria tomar decisões fundamentais sem necessidade de dialogar com a bancada do governo.

Entre 2014 e 2016, produz-se uma baixa aguda do produto interno bruto, acelera-se a inflação até passar a ser a mais elevada do planeta. A escassez de produtos básicos, a diminuição do salário, uma crescente insegurança, assim como a deterioração dos serviços públicos, conduzem a um acelerado retrocesso na melhoria das condições de vida da população obtida nos anos anteriores. Os massivos níveis de corrupção se fazem mais visíveis. Como consequência de tudo isso, gera-se um crescente rechaço ao governo de Maduro. Ante um apoio popular decrescente, o governo deparou-se com duas opções básicas. A primeira consistia em assumir a necessidade de uma profunda reflexão autocrítica das políticas do governo a fim de decretar as causas de sua crescente falta de respaldo e inclusive rejeição da população. Isso teria levado à necessidade de confrontar assuntos-chave, como a corrupção descontrolada e a ineficiência, a impossibilidade de continuar com uma paridade cambial subsidiada insustentável que estava criando tanto distorções no conjunto da economia, como um reencontro com o mundo popular para confrontar a crise. No entanto, o governo de Maduro claramente decidiu outra opção. Parece ter assumido que, para se preservar no poder, não podia depender do respaldo eleitoral nem dos limites estabelecidos pela Constituição. Ao invés de assumir as causas que estavam produzindo este rechaço ao governo, toma uma rota crescentemente autoritária. Para se preservar no poder, recorre a violações sistemáticas da Constituição e a uma crescente repressão tanto policial como por parte da Guarda Nacional. Declara-se a Assembleia Nacional em desacato e suas funções são basicamente assumidas pelo Tribunal Supremo de Justiça e pelo Executivo. O governo cancela ou adia processos eleitorais quando avalia que os resultas não lhe seriam favoráveis. É o caso do Referendo Revogatório do Presidente da República que estava previsto para o final de 2016, e as eleições para governadores que, de acordo com a Constituição, deveriam ser realizadas em dezembro desse mesmo ano. Desde fevereiro de 2016, o presidente Maduro governou mediante sucessivos decretos de Estado de Emergência Econômica em termos que claramente violam a Constituição de 1999. Neste estado de exceção, muitos direitos constitucionais podem ser suspensos.

Estas tendências que tendem a associar a esquerda ou os projetos transformadores com dinâmicas autoritárias podem ter severas consequências de longo prazo para muito além da Venezuela, na mediada em que podem contribuir para prejudicar o atrativo de projetos anticapitalistas pelo planeta. Isso é uma consequência das expectativas amplamente extensas que haviam gerado a Revolução Bolivariana.

V. Principais conquistas do processo bolivariano

Não é objetivo deste trabalho fazer um balanço das conquistas do processo bolivariano. Entretanto, uma revisão, ainda que seja superficial do que foram algumas das conquistas deste processo, é indispensável para aproximar-se às contradições que o tinham caracterizado.

Nos anos de governo bolivariano se produziram elevados graus de politização, significativas transformações na cultura política popular, no tecido social e organizativo, assim como nas condições materiais de vida dos setores populares anteriormente excluídos. Geraram-se amplamente sentidos de dignidade e inclusão, capacidade de incidir tanto sobre a vida própria como sobre o destino do país.

Mediante múltiplas políticas sociais (las misiones) dirigidas a diferentes setores da população, foram reduzidas muito significativamente os níveis de pobreza e de pobreza crítica. De acordo com a CEPAL, o país chegou a ser, junto com o Uruguai, um dos países menos desiguais de toda a América Latina10. A população ficou melhor alimentada11. Realizaram-se efetivos programas de alfabetização. Com o apoio cubano, a missão Barrio Adentro levou assistência médica primária aos setores populares rurais e urbanos em todo o país. Produziu-se uma ampliação massiva do regime de pensões públicas, incorporando milhões de pessoas da terceira idade. Levou-se a cabo igualmente uma extraordinária expansão da matrícula universitária. Impulsionou-se um ambicioso programa de moradias populares. Diminuíram os níveis de desemprego e se reduziu o emprego informal de 51% no primeiro semestre de 1999 para 41% no primeiro semestre de 201412. Estimou-se que o montante dedicado ao investimento social entre 1999 e 2013 foi de um total de 650 bilhões de dólares13. De acordo com o PNUD, o Índice de Desenvolvimento Humano elevou-se de 0.662 em 2000 para 0.748 em 2012, passando de um desenvolvimento humano “médio”, a um desenvolvimento humano “alto”14.

Foi igualmente importante o peso da experiência venezuelana – em particular seu processo constituinte – no chamado deslocamento progressista ou de esquerda que ocorreu na América Latina nestes anos, assim como na criação de diversos mecanismos de integração que contribuíram para o fortalecimento da autonomia regional, limitando assim a dependência histórica que a região teve com os Estados Unidos: UNASUR, CELAC, Petrocaribe, ALBA. A Venezuela desempenhou um papel decisivo na derrota da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que teria imposto, de fato, uma ordem constitucional neoliberal em todo o continente. Quando o governo venezuelano começou a confrontar este projeto, todos os governos da região, apesar de muitas diferenças em aspectos particulares, estavam de acordo com a convivência de negociar tal tratado.

Como consequência destas políticas, o governo venezuelano, desde o começo do governo Chávez, confrontou-se com ataques por parte do governo dos Estados Unidos. As tentativas de desgastar ou derrubar o governo bolivariano tomaram muitas formas, como as tentativas de isolamento financeiro dos setores mais extremos da direita opositora. Mais recentemente, antes de deixar o governo, o presidente Obama renovou uma Ordem Executiva que havia emitido anteriormente, declarando que a Venezuela representava uma “inusual e extraordinária ameaça à seguridade nacional e à política exterior dos Estados Unidos”15.

Numa apresentação ante o Comitê das Forças Armadas do Senado dos Estados Unidos em abril de 2017, o Almirante Kurt W. Tidd, chefe do Comando Sul dos Estados Unidos afirmou que:

[…] Venezuela enfrenta uma instabilidade significativa no próximo ano, devido à escassez generalizada de comida e medicamentos; uma continuada incerteza política; e uma situação econômica que se deteriora. A crescente crise humanitária na Venezuela poderia exigir uma resposta regional16.

Em agosto de 2017, Donald Trump ameaçou a Venezuela com uma intervenção militar.

Temos muitas opções na Venezuela, e… não vou descartar uma opção militar. Temos muitas opções para Venezuela, este é nosso vizinho… Estamos em todo o mundo, e temos tropas em todo o mundo em lugares que estão muito distantes. Venezuela não está muito distante e o povo está sofrendo e morrendo. Temos muitas opções para Venezuela incluindo uma possível opção militar se necessário17.

VI. Tensões, contradições e limitações do processo bolivariano como experiência transformadora

A profunda crise política, econômica e cultural que se inicia em 2013, como se afirmou anteriormente, foi precipitada pelo falecimento de Chávez e pelo colapso dos preços do petróleo. No entanto, para se aproximar de uma avaliação mais integral do que foi a experiência bolivariana de 1998 até o presente, e para tirar aprendizagens de uma rica experiência histórica que gerou tantas expectativas dentro e fora da Venezuela, e que terminou sendo, fundamentalmente, um fracasso como alternativa ao capitalismo enquanto civilização em crise, é indispensável indagar sobre outros assuntos menos conjunturais. Alguns destes são de caráter histórico-estrutural, como a realidade de uma economia, sistema político e padrões culturais hegemônicos que foram sustentados, durante um século, sobre uma expansiva renda petroleira controlada pelo Estado. Outros, mais de índole político e ideológico, referem-se aos conteúdos e orientações básicas (mutantes) do projeto bolivariano. Trata-se de condicionantes que incidiram de forma medular na conformação deste processo.

1. O aprofundamento do modelo petroleiro rentista: o continuado assalto à natureza

Tal como foi o caso na experiência de todos os países com governos denominados progressistas na América do Sul, durante o processo bolivariano não só não se questionou e buscou alternativas para iniciar uma transição de saída do modelo extrativista depredador baseado no petróleo, mas também este foi sendo aprofundado. Desde o auge da demanda e do preço das commodities na primeira década do século XXI, para o governo venezuelano, como para outros governos da região, a expansão do modelo colonial de inserção na divisão internacional do trabalho e da natureza representou uma opção mais fácil e imediata para obter os recursos requeridos para levar a cabo políticas sociais redistributivas e para preservar o apoio eleitoral que permitisse dar continuidade a sua gestão de governo. Ao priorizar as vantagens políticas de curto prazo, consolidou-se o modelo primário exportador herdado.

A extraordinária expansão do gasto social deu-se pela via de uma reorientação do uso de tal renda, sem começar sequer a alterar a estrutura produtiva do país. Múltiplas iniciativas e modalidades de solidariedade latino-americana, como Petrocaribe, foram possíveis graças à abundância da renda.

Ao longo dos anos do governo bolivariano a dependência de petróleo foi aumentando. O petróleo, no valor total das exportações, passou representar de cerca de 68,7% em 1998 para 96% no momento inicial da atual crise em 201318. Em termos absolutos, houve uma redução do valor das exportações não-petroleiras e das exportações privadas durante esses anos19. A contribuição do setor industrial do PIB baixou de 17% em 2000 para 13% em 201320.

Com o fim declarado de limitar a fuga de capitais e conter a inflação, manteve-se durante esses anos uma extraordinária sobrevalorização da moeda, o que acentuou a denominada doença holandesa que caracterizara a economia venezuelana há muitas décadas. Para uma ampla gama de setores da economia é mais barato importar que produzir nacionalmente. Afora o petróleo, pouquíssimos bens podem ser produzidos a preços suficientemente competitivos para ser exportados. As políticas sociais e sucessivas altas salariais aumentaram notavelmente a capacidade aquisitiva da população, sem que este aumento sustentado da demanda estivesse acompanhado por aumentos proporcionais da produção nacional, gerando ascendentes brechas que tinham que ser satisfeitas mediante crescentes importações. Estas só poderiam ser financiadas pela via da renda proveniente das exportações petroleiras.

Na década de setenta, em outro ciclo de abundância durante o primeiro governo de Carlos Andrés Pérez, consolidou-se no senso comum da sociedade venezuelana a noção de que era um país rico, o que no discurso oficial se denominou Grande Venezuela. Este imaginário de abundância se repete durante o governo de Hugo Chávez, desta vez com a denominação da Venezuela Grande Potência Petroleira.

Com relação à mudança climática e às responsabilidades dos países produtores e consumidores de petróleo, a distância entre o discurso e as políticas efetivamente levadas a cabo não poderia ter sido maior. Nas negociações da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança Climática, os representantes da Venezuela apresentaram discursos radicais responsabilizando o capitalismo e os países industrializados pelas ameaças que seus níveis de consumo de combustíveis fósseis representavam para a vida do planeta. No entanto, internamente houve durante todos estes anos um esforço, muito pouco exitoso, por aumentar ao máximo a produção petroleira. O exemplo mais claro desta profunda contradição encontra-se no chamado Plano da Pátria, o último programa de governo apresentado por Chávez para as eleições presidenciais de 2012. Este programa, posteriormente aprovado pela Assembleia Nacional como plano de desenvolvimento do país, está organizado em torno de cinco grandes objetivos. O número cinco se propõe a Preservar a vida no planeta e salvar a espécie humana. Contudo, no objetivo número três estabelece-se como meta Consolidar o papel da Venezuela como Potência Energética Mundial. Com esse fim, o plano se propõe a duplicar a produção petroleira de 3 milhões para 6 milhões de barris diários entre 2013 e 201921. Felizmente para o clima do planeta, devido principalmente à ineficiência, falta de investimentos e corrupção, estes esforços não tiveram sucesso. A produção em abril de 2017 superava por muito pouco os dois milhões de barris diários.

A venda de gasolina e demais combustíveis fósseis a preços extremamente subsidiados – é um dos poucos bens cujo preço não foi impactado pela inflação – não só incentiva o aumento esbanjador do consumo, mas também bloqueia toda a possibilidade do desenvolvimento de energias alternativas.

Ante o colapso dos preços do petróleo, a resposta do governo não foi a de abrir um debate nacional sobre alternativas ao rentismo extrativista e o desenvolvimento de políticas para, por exemplo, cumprir com o mandato constitucional em relação à segurança alimentar22. Pelo contrário, enquanto se produz um severo déficit nutricional na população, não há moedas suficientes para satisfazer a demanda mediante mais importações, opta-se por aprofundar ainda mais o modelo extrativo depredador, agora pela via da mineração. Em 24 de fevereiro de 2016, o presidente Nicolás Maduro ditou o Decreto de Criação da Zona de Desenvolvimento Estratégico Nacional “Arco Minero do Orinoco”, mediante o qual se dedicam 112 mil quilômetros quadrados, cerca de 12% do território nacional para a mineração, e simultaneamente convida-se corporações mineiras transnacionais de todo o mundo para que participem de sua exploração23. Às forças armadas lhes atribui um papel central neste projeto, tanto em seu papel de impedir qualquer forma de resistência ou oposição a este, como pela via da criação de empresas mineradoras que operariam diretamente sob sua responsabilidade. Trata-se de um território habitado por povos indígenas, um território que faz parte do bosque amazônico que joga um papel vital na regulação dos regimes climáticos do planeta, uma zona de extraordinária biodiversidade, as principais fontes hídricas da Venezuela e onde estão localizadas as represas que fornecem 70% da eletricidade que se consome no país. Tudo isso está ameaçado pela exploração mineradora a céu aberto em grande escala que está contemplado nos planos governamentais para o Arco Minero. Esta decisão, na qual está em jogo em boa medida o futuro do país, foi tomada pelo Presidente da República, em ausência total de um debate público, sem consultar a Assembleia Nacional e em violação tanto de numerosas normas constitucionais como as leis referidas aos direitos dos povos indígenas, de proteção ao meio ambiente e ao trabalho.

Nesta zona, vinha se dando um processo de devastação socioambiental, produto da mineração ilegal de ouro que havia se expandido notavelmente durante as últimas duas décadas, com a incorporação de dezenas de milhares de mineiros, com territórios controlados por máfias armadas onde imperam a violência, o tráfico de drogas, a prostituição e miseráveis condições de trabalho. Tudo isso, não só com a cumplicidade, mas com a participação direto no negócio por parte das autoridades regionais e de corpos de segurança do Estado que seriam supostamente os encarregados de impedir a realização destas atividades. Com o início da megamineração a céu aberto, esta catástrofe não pode senão aprofundar-se.

Trata-se, em síntese, de um aprofundamento estrutural da lógica de mercantilização/comodificação da natureza que foi hegemônica na sociedade venezuelana durante um século.

2. A centralidade do Estado

E nos principais debates políticos destes anos houve uma severa carência de um debate teórico sobre o que poderia ser uma sociedade pós-capitalista neste século e como poderiam ou deveriam ser as relações entre Estado, mercado e sociedade organizada, que incorporassem uma avaliação crítica das experiências do socialismo do século passado. Igualmente ausente foi uma leitura informada e reflexiva sobre as potencialidades e limitações pós-capitalistas das atuais transformações em marcha na China, Vietnã e Cuba. Isso, evidentemente, não é problema particular da Venezuela, é uma expressão mais da situação da esquerda que em todas as partes do mundo demonstrou sua impotência e falta de respostas críveis diante a atual crise global do capitalismo e a forma como esta foi aproveitada para avançar na restrição da democracia e uma ainda maior concentração de poder e de riqueza.

Na ausência de reflexões e buscas mais sistemáticas ou estratégicas sobre as alternativas pós-capitalistas, nestes anos, desde o governo venezuelano predominaram dois tipos de propostas. A primeira consiste no autoritarismo que identifica socialismo com estatismo (propriedade estatal e/ou controle estatal)24. No momento em que alguma empresa é estatizada, passa imediatamente a ser denominada “empresa socialista”. A segunda é a que identifica ao pós-capitalismo com o Estado comunal, assunto que será abordado mais adiante neste texto.

No projeto político bolivariano, o Estado foi concebido como o principal agente ou sujeito da transformação social. Uma lógica Estado-cêntrica caracterizou a maior parte da América Latina em toda a sua história. No caso venezuelano, o petróleo acentuou esta lógica até extremos excepcionais. O conjunto da sociedade organizou-se em torno do Estado. O sistema político e os partidos giraram em torno da intermediação na batalha pela apropriação de partes da renda por diferentes setores da sociedade. A acumulação privada de capital e a emergência dos setores empresariais foram diretamente alimentadas por políticas de empréstimos, subsídios, proteções alfandegárias e privatização corrupta do público. Nos anos do processo bolivariano esta lógica Estado-cêntrica se acentuou.

A Constituição de 1999 amplia a esfera de ação do Estado, especialmente do Executivo, tanto no terreno produtivo como na definição de suas atribuições como fiador dos direitos sociais e econômicos da população, especialmente dos mais necessitados. Esta ampliação dos âmbitos de competência do Estado inclui, entre outras coisas, o controle sobre processos eleitorais sindicais25, gremiais, estudantis e os referidos às eleições de autoridades das universidades autônomas, e o poder para decidir quais partidos políticos podem ser reconhecidos. Igualmente, do ponto de vista do projeto político bolivariano, o Estado foi assumido como o principal agente e/ou sujeito da transformação social. Na medida em que a renda petroleira foi assumida como a ferramenta para impulsionar as mudanças desejadas, o controle cada vez mais centralizado desta por parte do Poder Executivo foi reforçado.

Além dos três ramos de governo correspondentes à tradição liberal (executivo, legislativo e judiciário), a Constituição de 1999 criou dois poderes autônomos adicionais, o Poder Eleitoral e o Poder Cidadão. Este, no entanto, não alterou a plena preponderância que teve historicamente o ramo executivo do governo no país. Durante o processo bolivariano, os outros ramos do poder público estiveram fundamentalmente submetidos às diretrizes do executivo. Quando a oposição ganhou uma maioria na Assembleia Nacional, a assembleia foi declarada em desacato e despojada da maior parte de suas atribuições. Em várias ocasiões em que partidos de oposição ganharam eleições municipais ou de governadores, o executivo criou estruturas ad-hoc paralelas para limitar a ação destes governos26. A identificação do socialismo com controle estatal teve consequências devastadoras para o aparato produtivo do país, ao criar condições que impedem a operação efetiva tanto do setor público como do privado. O Estado careceu da capacidade para gerir a ampla gama de empresas que estatizou. Boa parte das empresas industriais e agrícolas estatizadas passam a ser geridas com menor eficiência e menores níveis de produção. Isso foi o resultado do burocratismo, contínuos conflitos laborais, preços de venda de seus produtos que não correspondem aos custos de produção, assim como a falta de investimento, não só para a manutenção, mas igualmente para a atualização tecnológica de plantas. Em alguns casos, como na produção de aço e alumínio, estas apresentam extraordinários níveis de deterioração e obsolescência27. A tudo isso se agrega a corrupção28. Em consequência, uma elevada proporção destas empresas está produzindo perdas e só sobrevivem graças à injeção de recursos provenientes da renda petroleira.

Esta lógica Estado-cêntrica esteve acompanhada desde o princípio do reconhecimento da necessidade de transformar profundamente o Estado “herdado”, o Estado capitalista, como condição para impulsionar o processo de transformação. A noção de transição foi formulada em termos do velho Estado que se resiste a morrer e o novo estado que não acaba de nascer. A forma em que este desafio foi abordado variou ao longo do processo bolivariano. Quando os primeiros programas sociais em grande escala, as misiones foram impulsionadas (a missão Barrio Adentro apoiada por Cuba, as primeiras missões educativas…), houve o reconhecimento da necessidade de ultrapassar os obstáculos burocráticos que dificultavam o contato direto com a população. Assim, estruturas informais, paralelas, foram criadas para implementar estes programas. Isso foi em parte uma resposta ao fato de que estes programas encontraram freios e às vezes até sabotagens por parte dos funcionários que não compartilhavam as orientações políticas do governo. Estas foram pensadas como estruturas de emergência ou de transição, não como o modelo do novo Estado. Uma consequência negativa foi que isso conduziu a um aumento do aparato burocrático e do emprego público, e a fazer que o Estado tivesse uma estrutura mais onerosa, menos transparente.

Com o tempo, a concepção estratégica do Estado foi concebida como o Estado Comunal. Este foi enunciado como um Estado descentralizado controlado diretamente pela população no âmbito comunitário, isto é, como parte da transição para a forma de autogoverno democrático a partir de baixo. No entanto, isso foi uma fonte permanente de tensões e contradições já que estas modalidades de autogoverno democrático comunal são dificilmente compatíveis com o controle vertical e com o vanguardismo que tanto como concepção quanto prática prevaleceram no processo bolivariano.

3. As tensões das organizações populares impulsionadas a partir do Estado

A Venezuela antes do processo bolivariano caracterizava-se por ser uma sociedade com um débil tecido social, consequência fundamentalmente da forte presença do Estado e do peso dos partidos políticos como principais vias de canalização das aspirações e demandas da sociedade. Esta extensa presença ou controle partidário se dava não só nas organizações sindicais e gremiais, mas igualmente nas organizações estudantis, de bairro e culturais. Era limitada a existência de organizações sociais autônomas fora desta rede Estado/partido.

Desde o início do governo Chávez, deram-se amplas e vigorosas dinâmicas organizativas e participativas no mundo popular que envolveram milhões de pessoas: Mesas Técnicas e Conselhos Comunitários de Água, Comitês de Saúde, Comitês de Terras Urbanas, Conselhos Comunais, Comunas… Esta dinâmica organizativa foi o resultado tanto dos deslocamentos políticos e ideológicos que ocorriam no país, como de políticas públicas expressamente orientadas a promover estes processos. Algumas das políticas sociais foram conceitualizadas de tal maneira que, para serem levadas a cabo, era necessária a organização popular de base. Há nisso um claro contraste com as experiências do Equador e Bolívia, onde as políticas públicas conduziram à divisão e ao enfraquecimento das organizações populares preexistentes.

As políticas públicas de fomento e financiamento de diversas modalidades de organizações de base, em especial dos Conselhos Comunais e das Comunas, produziram consequências contraditórias. Por um lado, impulsionaram níveis de organização popular desconhecidos na história do país e transferiram enormes quantidades de recursos a comunidades para abordar a solução de seus problemas: transporte, moradia, algumas atividades produtivas, etc., contribuindo igualmente para o fortalecimento do tecido social das comunidades. No entanto, a tendência dominante foi que, como resultado da reafirmação da histórica lógica estadista centralizadora da economia petroleira rentista, na medida em que as organizações populares tendem a depender diretamente de transferências de recursos do Estado, foram bloqueadas as possibilidades de consolidação e autonomias destas modalidades comunitárias de base como alternativa à estrutura do Estado, como espaços de experimentação de outras formas de fazer e gerir as coisas. As múltiplas formas de organização da sociedade não podem exercer controle e influência sobre a orientação das políticas públicas, a menos que tenham com um grau significativo de autonomia. O aprofundamento da cultura rentista e do padrão produtivo extrativista operou contra a autossuficiência e alimentou uma concepção consumista da qualidade de vida. Adicionalmente, a corrupção associada às disputas pela repartição de renda chegou por esta via também na base da sociedade.

As contradições entre autonomia e controle vertical desde o Estado se acentuam a partir dos anos 2005-2007 com a definição da revolução bolivariana como socialista. A partir dessa época, aprofunda-se não só o controle vertical a partir do Estado, mas se busca reduzir a rica pluralidade das formas organizativas que havia para transformá-las em modalidades organizativas padronizadas. Aprova-se um conjunto de novas leis e criam-se novas instituições destinadas a promover o que se denominou Poder Popular. Finalmente, em 2009, é criado o Ministério do Poder Popular para as Comunas. Estas leis e instituições, longe de promover o poder popular em termos de autonomia e capacidade de autogestão, parecem ter sido expressamente desenhadas para aumentar o controle estatal sobre estas organizações. No lugar de elevar a transparência, todos os níveis da administração pública ficaram mais opacos.

As leis dos Conselhos Comunais e das Comunas especificam com grande detalhe o propósito destas organizações, como devem estar estruturadas e as atribuições específicas de cada parte da organização. Estas normas detalhadas sugerem que estas organizações devem ser concebidas como parte da estrutura do Estado. Esta ambiguidade está refletida no Plano de Desenvolvimento Econômico e Social da Nação 2007-2013 que se refere ao poder popular tanto como se fosse um ramo do Estado que precisa se relacionar com outros ramos do Estado, e como algo externo ao Estado, que precisa preservar uma relação de equilíbrio com o Estado.

Como consequência deste novo andaime institucional e das concepções políticas que o orientam, produz-se uma redução da rica diversidade das formas organizativas que haviam sido criadas nos anos anteriores, na medida em que foram pressionadas para se adaptar às novas modalidades organizativas padronizadas igualmente para todos. Com isso termina de consolidar a primazia do olhar normalizador a partir do Estado sobre a multiplicidade da experimentação social.

Dada a plena primazia da lógica redistributiva sobre a lógica produtiva, predominaram as relações clientelistas entre Estado e organizações populares. Na transferência de recursos do Estado às comunidades, a ênfase foi majoritariamente na solução de problemas imediatos da população, não na produção nem em mudanças estruturais. Isso tem como implicação o fato de que, sobretudo no âmbito urbano, não fossem incorporadas, na maior parte das experiências, as questões relativas a outras modalidades de produção e consumo. Em consequência disso, não se questiona o modelo de desenvolvimento petroleiro dependente nem a lógica rentista, já que é precisamente esse modelo o que torna possível que esse tipo de relação entre Estado e organização popular possa se manter. O peso da chamada economia social segue sendo insignificante.

Apesar das milhões de pessoas envolvidas nestes processos organizativos, o tecido solidário da sociedade, dada sua dependência dos recursos do Estado, em seu conjunto, terminou tendo muita fragilidade. Num processo político que reivindicou durante anos os valores da solidariedade e da promoção de múltiplas formas de organização popular de base estendidas por todo o país, poderia ter sido esperado que a resposta à crise fosse uma de solidariedade, de criação coletiva ante a nova situação. Esse não foi o caso. As respostas que dominaram foram de caráter pragmático individualista e competitivo. As significativas transformações na cultura política popular de anos anteriores, os sentidos de dignidade, as subjetividades caracterizadas pela autoconfiança e pelo entusiasmo com relação a sentir-se parte da construção de um mundo melhor, com a crise, entram em dinâmicas regressivas, expressão do severo processo de erosão que sofreram o tecido social solidário e os valores éticos nesta sociedade nos anos de crise. Boa parte das organizações sociais de base criadas durante estes anos foram debilitadas, tanto pela carência dos recursos estatais sobre os quais se tornaram dependentes, como pela crescente deterioração da confiança do governo e no futuro do país. Como caso extremo, alguns dos chamados coletivos em Caracas que haviam surgido como grupos em defesa do processo bolivariano converteram-se diretamente em grupos armados delinquentes que controlam territórios e estão envolvidos no tráfico de drogas e alimentos. Outras organizações populares debatem sobre como continuar operando neste novo contexto. Apesar das dificuldades e obstáculos, existem, nestes tempos de profunda crise, muitas experiências de base, que embora sejam minoritárias, nutriram-se da politização e ativismo que atravessou a sociedade venezuelana nestes anos, para levar a cabo processos comunitários de uma extraordinária riqueza e autonomia. São, neste sentido, exemplos vivos do possível hoje no campo popular.

Depois de quase vinte anos do processo bolivariano, a organização social popular autônoma mais importante do país segue sendo a rede de cooperativas, Organismo de Integração Cooperativa CECOSESOLA, que tem como centro de operações a cidade de Barquisimeto. Trata-se de uma rede de cooperativas muito ampla de poupança, produção agrícola, serviços de saúde e funerários, e que muito especialmente, realiza atividades de distribuição de alimentos que articulam produtores e consumidores. Envolve dezenas de milhares de pessoas como sócias ou beneficiárias. Ao longo de suas décadas de vida e com continuados processos de reflexão, debate e experimentação, conseguiram modalidades de organização e gestão genuinamente horizontais e democráticas com uma divisão do trabalho muito limitada; os filiados participam da mais ampla gama de responsabilidades. Todas as decisões são tomadas em assembleia. Esta experiência contou com um amplo reconhecimento internacional29. Há um contraste fundamental entre esta forma horizontal de organização, construída ao longo de cinco décadas de debates e experimentação, e múltiplas organizações verticais criadas por decreto pelo governo bolivariano.

Apesar de permanentes referências genéricas “aos trabalhadores” no discurso bolivariano como sujeito ativo, nem os trabalhadores, nem os sindicatos desempenharam um papel central nos processos de organização popular destes anos. Isso tem a ver, como se destacou acima, com o fato de que o processo bolivariano se caracterizou mais por suas políticas distributivas que por transformações produtivas. As organizações de base territorial foram, de longe, muito mais importantes que as organizações baseadas nos centros de trabalho. O papel dos sindicatos tem sido bastante marginal, inclusive foram limitadas as negociações dos trabalhadores públicos com o Estado. Os aumentos salariais foram outorgados na maior parte dos casos pela via de decisão governamental unilateral. Em seu conjunto, os sindicatos não só se encontram severamente debilitados, mas em muitos casos passaram a operar mais como máfias armadas, que como organizações em defesa dos interesses dos trabalhadores. Este foi o caso em alguns sindicatos da construção e da mineração.

4. O apagamento das fronteiras entre o público/estatal e o político/partidário

Estreitamente associado com o papel central do Estado no processo bolivariano, tanto em termos econômicos como políticos, está o que tem sido o apagamento sistemático das fronteiras entre o público-estatal e o político-partidário, dinâmica que tem trazido severas implicações. O uso de recursos públicos para fins políticos partidários do governo de turno não é uma novidade na história política venezuelana, mas este assunto adquire novas características quando está sustentado pela justificação ideológica, expressa ou implícita, de que, como está se fazendo a Revolução, é preciso utilizar todos os meios para derrotar o inimigo, portanto, eticamente, vale tudo. Isso teve sérias implicações a propósito de dois temas estreitamente inter-relacionados: a democracia e a corrupção.

A extensa fusão entre o público/estatal e o político/partidário, constituiu-se num sério obstáculo para a possibilidade de construção de uma democracia plural, tal como estabelecida pela Constituição de 1999. Desde a sua criação, o Partido Socialista Unido da Venezuela apoiou-se na institucionalidade pública, e – apesar de uma expressa proibição constitucional – utilizou recursos do Estado para propaganda, mobilizações, encontros. Altos funcionários declararam que aqueles que não se inscrevessem no partido ou apoiassem com sua assinatura uma iniciativa da oposição, perderiam seu emprego público. Expressão destas tensões são as controvérsias existentes no movimento sindical identificado com o processo de mudança, entre os que defendem a autonomia dos sindicatos tanto em relação aos governos como aos partidos, e os que, ao contrário, argumentam que ter um governo popular como o atual, a autonomia não é necessária, porque os interesses dos trabalhadores estão assegurados, ou inclusive caracterizam como contrarrevolucionárias as demandas por autonomia.

Ao longo da última década, as organizações de base mais importantes que foram impulsionadas pelo governo foram os Conselhos Comunais, concebidos como as organizações básicas da democracia participativa, que com o tempo, conjuntamente com as Comunas, substituiriam as estruturas existentes do Estado (estados, municípios, paróquias). Debates e confrontos conceituais e práticas deram-se nestes anos a respeito de como são concebidos os Conselhos Comunais, como âmbitos privilegiados da participação. Trata-se de espaços plurais, abertos ao conjunto da sociedade, no interior dos quais podem se dar discussões entre projetos ou visões sociais e políticas diversas, ou, ao contrário, pensados como espaços políticos do chavismo, dos “revolucionários”, dos “socialistas”? Enquanto, por um lado, conformaram-se Conselhos Comunais como ambientes residenciais nos quais predominam as forças políticas da oposição, muitos dos integrantes das instâncias governamentais responsáveis pelo impulso dos Conselhos Comunais argumentam que estes devem ser espaço políticos exclusivos da “revolução”. É este um assunto fundamental para o futuro da democracia no país. Se este âmbito político, definido como núcleo básico a partir do qual deve estruturar-se o novo modelo socialista de Estado, define-se de forma sectária e excludente como restrito aos que compartilham o projeto político do atual governo, deixando de fora uma proporção significativa da população venezuelana que não se identificou nem com o governo nem com o socialismo. Nega-se assim de entrada a possibilidade de que os Conselhos Comunais possam ser parte de um processo de construção de uma sociedade democrática, onde participe o conjunto de seus cidadãos.

Um exemplo claro desta fusão entre o âmbito político/partidário (que representa uma parte da sociedade) e o público/estatal (que se supõe representar ao conjunto da sociedade) é a organização dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP), criados como mecanismo para a distribuição de bens básicos (especialmente de alimentos) em condições de uma profunda crise de abastecimento. Apesar de se tratar de um programa público, financiado com os recursos do Estado, está constituído fundamentalmente por estruturas do PSUV, como as Unidades de Batalha Bolívar-Chávez (UBCH) e a Frente Francisco de Miranda30. Nestas condições, não são de se estranhar as reiteradas denúncias de discriminação política neste programa de distribuição de alimentos.

São igualmente severas as consequências desta fusão Estado/partido do ponto de vista da corrupção. Quando no uso dos bens públicos se apaga a barreira entre o público-estatal e o político-partidário, termina por apagar igualmente a fronteira entre o público e o privado. Vai se tornando cada vez maior a ausência de transparência da gestão pública e cada vez menor o acesso à informação, estabelecendo-se as bases institucionais para alguns níveis extraordinariamente elevados de corrupção31.

5. Um padrão de liderança carismática unipessoal

A extraordinária capacidade de liderança de Chávez foi, em termos contraditórios, tanto uma das forças do processo bolivariano, como fonte de algumas de suas principais limitações. Sem o carisma, a capacidade de liderança e notáveis dons comunicativos e de pedagogia popular com os quais contou Chávez, dificilmente teria sido possível dar uma quebra na jaula de ferro, na letargia de uma sociedade que, como se destacou acima, caracterizava-se por crescentes desigualdades e exclusões e por um sistema político extraordinariamente deslegitimado e um mundo popular sem perspectivas. Ao ter dado voz e direção ao enorme descontentamento existente nas maiorias populares, e ter impulsionado processos de organização e participação popular que se estenderam por todo o país, Chávez operou como um potente catalisador da mudança.

No entanto, o grau de dependência de todo este processo numa só pessoa, o culto à personalidade, e os elevados níveis de concentração do poder constituíram um sério limite à dinâmica do aprofundamento da democracia. Este tipo de liderança bloqueia a emergência de lideranças alternativas, o que constitui uma extraordinária fonte de fragilidade para todo o processo de mudança. A ausência de um líder indispensável, como ficou demonstrado com o falecimento de Chávez, podia gerar uma profunda crise.

A consolidação no tempo de uma liderança inquestionável de uma só pessoa impede a criação de uma cultura de debates entre perspectivas diferentes e de aprofundamento democrático. Pessoas que estiveram próximas ao Presidente Chávez descreveram como tendia a instalar-se em seu entorno uma cultura de incondicionalidade – de ausência de debates e confrontações entre opções diversas – e de proteção do líder diante dos aspectos menos favoráveis da realidade que o rodeava. Nestas condições, o acesso ao poder se identifica facilmente com o acesso a ele e com a confiança do presidente. O oportunista se disfarça facilmente de “revolucionário”. A reeleição indefinida do Presidente aprovada mediante uma emenda constitucional em 2009, dada a idade de Chávez nesse momento, fez possível que o tema da criação de lideranças desaparecesse do horizonte.

Mas ainda mais problemática foi a tensão entre, por um lado, o discurso e a prática da participação popular, como condição das novas formas de democracia nas quais o poder devia residir no povo, e por outro, o fato de que uma e outra vez, a propósito de aspectos fundamentais para o futuro do país (criação de um partido único de governo, necessidade de uma reforma constitucional, financiamento de grandes projetos, acordos internacionais, a criação de novas modalidades de organização popular ou de novos programas sociais), as decisões foram anunciadas pela televisão à população, uma vez que estas tinha sido tomadas pelo Presidente. As decisões que se tomaram nos âmbitos da “democracia participativa e protagonista” do mundo popular limitaram-se a âmbitos fundamentalmente locais, enquanto que as principais decisões sobre o rumo do processo eram tomadas unilateralmente, desde acima: “decidi”, “ordenei”. A partir de certo momento dos processos de mudança, a tensão entre essas duas lógicas divergentes necessariamente se faz evidente, desgastando nos fatos e nos imaginários as expectativas da construção de uma nova cultura democrática.

Na prática, em reiteradas ocasiões, a modalidade de exercício unipessoal do poder por parte do Presidente Chávez converteu-se numa expressa negação do exercício da democracia. Os candidatos do chavismo à Assembleia Nacional ou a governadores de Estado em muitos casos eram selecionados pessoalmente por Chávez, às vezes apesar do expresso rechaço do povo chavista, ou por ser notória a responsabilidade do selecionado em casos de corrupção.

Outra consequência significativa desta modalidade de liderança foi a falta de continuidade na implementação de muitas políticas públicas. Na medida em que foram surgindo novas situações, tanto Chávez como Maduro anunciaram, várias vezes, novas iniciativas e programas, comissões e comitês que se sobrepunham ou substituíam programas existentes. Isso esteve acompanhado de frequentes mudanças e rotação de ministros e responsáveis das principais empresas e instituições do Estado. Alguns desses funcionários recém nomeados atuaram como se tratasse de um novo governo, foi escassa a avaliação dos programas e políticas que vinham sendo implementadas, prevalecendo a improvisação.

6. A preponderância do militar no processo bolivariano. A crescente militarização do bolivarianismo.

Durante todo o processo bolivariano, a presença dos militares e de uma cultura militar foi muito marcada, tanto no Estado como no terreno político partidário. Por sua formação, Chávez tinha relações de maior confiança e lealdade com o mundo militar que com o mundo civil. Durante todos esses anos, militares ativos ou aposentados ocuparam altos cargos públicos como Ministros, membros da Assembleia Nacional, governadores e responsáveis de muitas das principais empresas públicas.

Há uma inevitável tensão entre a busca da democracia em todos os âmbitos da sociedade, tal como está contemplado na Constituição, e a ampla presença de imaginários bélicos e de militares ativos e aposentados no processo bolivariano. A cultura da instituição armada é, por sua própria natureza, de obediência vertical e de caráter não-deliberativa. A extensa presença militar em todas as instituições do Estado nestes anos não é compatível com uma gestão pública transparente e democrática. O que ocorre no interior das instituições militares, seu espírito de corpo, e as redes informais de lealdades que nestas se conformam, são pouco transparentes para o restante da sociedade. Entra as múltiplas denúncias dos massivos níveis de corrupção que foram formuladas durantes estes anos, uma elevada proporção era referente a militares que exerceram cargos de responsabilidade nas instituições de registro de divisas subsidiadas, portos, distribuições de alimentos, vigilância de fronteiras e controle de mineração ilegal de ouro, precisamente os âmbitos nos quais se deram os maiores volumes de corrupção.

Igualmente problemática foi a expansão dos imaginários do militar ao conjunto da vida política, impregnando-a de reiteradas referências a guerras e batalhas. Na guerra se busca a derrota, o extermínio do outro, entendido como inimigo. É este um modelo pouco propício para uma cultura política democrática de diálogo e construção coletiva. A concepção da política como confrontação entre amigo e inimigo que informou tanto os imaginários políticos do chavismo como muitas das modalidades político-organizativas que se criaram nestes anos têm claras raízes militares. As campanhas eleitorais pela ratificação de Chávez no referendo revogatório de 2004, e pela reeleição no ano seguinte foram denominadas como “Batalha de Santa Inês I e II”, dando-se o nome de “batalhões” a unidades constitutivas do Partido Socialista Unido da Venezuela. Denominam-se como “estados-maiores” diversas instâncias de direção de processos de ativação do poder popular. A partir de 2007, decide-se um novo lema da Força Armada Nacional: “Pátria, socialismo ou morte”.

No governo de Nicolás Maduro, acelerou-se o processo de militarização do país, dando continuidade à outorga de poderes e privilégios adicionais às forças armadas. Entre outras coisas, aumentou-se a presença militar em todos os níveis da gestão pública. Em fevereiro de 2017, 34% dos integrantes do Gabinete do Presidente Maduro eram militares, ativos ou da reserva. Incluem-se aqui ministério tão importantes como o da Presidência da República; Ministério do Interior, Justiça e Paz; Ministério da Defesa; Ministério da Agricultura e Terras; Ministério da Alimentação; Ministério de Obras Públicas e o Ministério do Ecossocialismo e Águas32. Outorgou-se plena autonomia administrativa e empresarial ao Ministério da Defesa e todos os seus organismos adscritos, ao retirar da Controladoria-Geral da República sua função constitucional de controladoria externa sobre as atividades das forças armadas33. Deu-se continuidade à política de criação de empresas militares34.

7. Superação do patriarcado?

Como em outras dimensões da vida coletiva durante o processo bolivariano, os assuntos referentes ao enfrentamento ao patriarcado estiveram atravessados por importantes tensões e contradições, tendo sido logradas algumas significativas conquistas parciais. São importantes os avanços no terreno jurídico, especialmente no terreno constitucional. A Constituição de 1999, não só estabelece a plena igualdade entre homens e mulheres em todos âmbitos da vida pública e privada, mas igualmente estabelece-se que a “A lei garantirá as condições jurídicas e administrativas para que a igualdade entre a lei seja real e efetiva; adotará medidas positivas a favor de pessoas ou grupos que possam ser discriminados, marginalizados ou vulneráveis…” (Artigo 21). Assegura-se a igualdade e equidade entre homens e mulheres no trabalho e reconhece-se o valor de trabalho no lar. “O Estado reconhecerá o trabalho do lar como atividade econômica que cria valor agregado e produz riqueza e bem-estar social. As donas de casa têm direito à seguridade social em conformidade com a lei” (Artigo 88). Sobre a maternidade e os direitos sexuais e reprodutivos, estabelece-se que:

A maternidade e a paternidade são protegidas integralmente, seja qual for o estado civil da mãe ou do pai. Os casais têm direito a decidir livre e responsavelmente o número de filhos e filhas que desejam conceber e a dispor da informação e dos meios que assegurem o exercício desse direito. O Estado garantirá assistência e proteção integral à maternidade em geral a partir do momento da concepção, durante a gravidez, o parto e o puerpério, e assegurará serviços de planificação familiar integral baseados em valores éticos e científicos (Artigo 76).

Protege-se o matrimônio entre um homem e uma mulher, o qual se funda no livre consentimento e na igualdade absoluta dos direitos e deveres dos cônjuges. As uniões estáveis de fato entre um homem e uma mulher que cumpram os requisitos estabelecidos na lei produzirão os mesmos efeitos que o matrimônio (Artigo 77).

Em todo o texto utiliza-se uma linguagem expressamente não sexista: “cidadãos e cidadãs”, “presidente ou presidenta”, “juízes ou juízas”.

Em 2007, entra em vigência a Lei Orgânica sobre o Direito das Mulheres a uma Vida Livre de Violência, instrumento legal de ampla cobertura na defesa dos direitos das mulheres, especialmente, mas não só, no que se refere à violência.

Em relação à paridade de gênero, em 2000, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) decidiu não aplicar a lei eleitoral de 1998 em relação à postulação de pelo menos 30% de mulheres aos cargos públicos por parte dos partidos, por considerá-la contrária ao princípio de igualdade consagrado na Constituição. Posteriormente, nos anos entre 2005 e 2008, o CNE emitiu duas resoluções vinculantes relacionadas a cotas de participação feminina. No entanto, seja porque essa mesma instituição aceitou os pedidos apresentados pelos partidos que não cumpriam estas normas e não se estabeleceu nenhuma sanção por seu descumprimento, seja porque em muitos casos as mulheres figuravam nas listas como candidatas suplentes, foi limitada a incidência destas resoluções. Não as cumpriram nem os partidos de governo nem os de oposição35. Estas normas não foram exigidas nos processos eleitorais posteriores. Na Lei Orgânica de Leis eleitorais de 2009, atualmente vigente, não há referência alguma ao tema da paridade de gênero. Entretanto, nestes anos produziu-se um aumento significativo na participação das mulheres, tanto nos órgãos legislativos (nacional e estadual) como nos Conselhos Municipais36.

Nas múltiplas modalidades de organização popular de base que se desenvolveram durante os anos do governo bolivariano, foi muito destacada, em muitos casos preponderante, a participação das mulheres. No entanto, “nestas iniciativas é muito frágil – em geral – a incorporação de um componente crítico de gênero”37.

Na gestão pública houve um significativo aumento da participação das mulheres, inclusive chegando num momento a encabeçar quatro dos cinco poderes públicos existentes no país, sendo a exceção a Presidência da República. Contudo, “a participação das mulheres está desproporcionalmente concentrada na gestão pública vinculada às áreas sociais; e em contrapartida sub-representada nas áreas políticas consideradas tradicionalmente de maior importância”38.

É nesse âmbito educativo em que foram mais notórias as mudanças no papel da mulher nos últimos anos, tendo sido produzido uma marcada diferença a favor das mulheres na expansão da matrícula educativa. Entre 1999 e 2015, a porcentagem de estudantes entre a população de 15 anos ou mais foi de 10% para 12%. Entre as mulheres, passou-se de 11,2% para 19% entre esses mesmos anos. Em 1999, 30% da população entre os 15 e os 24 anos estava estudando; enquanto que no primeiro semestre de 2015, a cifra subiu 45,3% (homens, 41,1%; mulheres, 49,7%). Para o conjunto dos níveis educativos, há mais mulheres do que homens estudando. A participação das mulheres no mercado de trabalho permaneceu praticamente inalterada: 49,7% em 1999 e 50,3% em 201539.

As políticas sociais do governo bolivariano relacionadas às mulheres caracterizaram-se como o resto das políticas sociais destes anos, por seu caráter predominantemente distribucionista e paternalista. Estas políticas orientadas às necessidades mais imediatas das mulheres dos setores populares, e focalizadas em atividades em sua localidade, podem reforçar a divisão sexual do trabalho existente, e não questioná-la. Uma indicação disso é o fato de que os “afazeres do lar” segue sendo uma atividade quase exclusivamente feminina, a proporção de mulheres dedicadas a esta atividade diminuiu de 35,1% em 1999 para 28,5% em 2015, mas cerca 98% das pessoas que afirmam dedicar-se a ofícios do lar são mulheres. (Ibid.).

Como assinala Anaís López:

Os esforços do Estado venezuelano para redistribuir a renda petroleira em função de programas sociais colocaram as mulheres em posição de ser destinatárias de políticas de gênero e políticas sociais, ao mesmo tempo, o que traz como consequência que, em termos de indicadores de inclusão, possa se ver muito favorecida sua situação, enquanto que em termos reais de transformação de relações de gênero é feito pouco progresso40.

Na Venezuela, durante as décadas anteriores à eleição de Chávez, via-se conformando uma rica experiência de construção de uma agenda ou plataforma de luta comum de mulheres, apesar de seu pertencimento a diferentes partidos políticos (Movimento Ampliado de Mulheres)41. Durante os anos do processo bolivariano, tem sido tão intensa a polarização política que esta possibilidade de trabalho conjunto tornou-se mais difícil, mas para algumas iniciativas e temas específicos foi possível conservar um certo grau de unidade. Não se superou, no entanto, a subordinação das agendas das mulheres às agendas dos partidos. O exemplo mais claro disso é o fato de que, apesar do aumento notório das mulheres no âmbito público, as posições patriarcais da direção política do chavismo impediram a possibilidade de que se produzisse algum avanço na reivindicação da soberania das mulheres sobre seu próprio corpo, em particular no tema do aborto, que embora não seja ativamente criminalizado, continua sendo realizado em condições precárias produzindo muitas mortes entre mulheres do campo popular. As taxas de gravidez entre adolescentes são muito elevadas. “A taxa de nascimento para as idades de 15 e 19 anos é de 101 por mil mulheres, enquanto que a média em toda a América Latina e o Caribe é de 75”42.

Por outro lado, é difícil imaginar como se pode transitar na direção de uma cultura não-patriarcal num contexto que celebra a existência de lideranças masculinas fortes e onde são preponderantes as lógicas militares patriarcais.

8. A plurinacionalidade e os povos indígenas.

Como se destacou acima, a Constituição define a Venezuela como um país multiétnico e pluricultural. No que seja talvez a ruptura mais radical com toda a história anterior do país, a Constituição contém um capítulo completo dedicado a uma ampla garantia dos direitos dos povos indígenas43. Estes direitos estão sintetizados no Artigo 119 nos seguintes termos:

O Estado reconhecerá a existência dos povos e comunidades indígenas, sua organização social, política e econômica, suas culturas, usos e costumes, idiomas e religiões, assim como seu habitat e direitos originários sobre as terras que ancestral e tradicionalmente ocupam e que são necessárias para desenvolver e assegurar suas formas de vida. Corresponderá ao Executivo Nacional, com a participação dos povos indígenas, demarcar e garantir o direito à propriedade coletiva de suas terras, as quais serão inalienáveis, imprescritíveis, não embargáveis e intransferíveis de acordo com o estabelecido nesta Constituição e na lei.

Cria-se, pela primeira vez no país, um Ministério dos Povos Indígenas e seus principais funcionários têm sido indígenas. Atribuiu a este Ministério um importante orçamento que tornou possível que o Estado chegasse a zonas do país ocupadas por povos indígenas que estiveram historicamente à margem das políticas públicas. Construíram-se moradias, centros de saúde e escolas, apoiando-se algumas atividades produtivas.

No entanto, vistas em conjunto, estas políticas, longe de fortalecer o mundo indígena, suas culturas e organizações, debilitaram-nas. Tratou-se de uma política que, como foi notório no caso do Equador, independentemente dos discursos políticos, viu os indígenas como pobres, como carentes, como necessitados da assistência estatal. Constroem-se a partir disso práticas que não podem ser qualificadas a não ser de colonizadoras, como é o caso dos Conselhos Comunais Indígenas. Passando às formas organizativas próprias existentes, plenamente asseguradas pela Constituição, os povos foram levados a mesma modalidade organizativa padronizada que foi promovida do Estado até o restante do país. Para ter acesso a recursos públicos, é preciso estar organizado em Conselhos Comunais Indígenas. Isso não só desgasta as formas de organização e autoridade próprias, mas gera também conflitos no interior das comunidades indígenas.

Os direitos dos povos indígenas estão construídos na Constituição a partir do pressuposto do reconhecimento dos territórios dos povos indígenas (denominados timidamente hábitats para não ferir sensibilidades nacionalistas, sobretudo entre os militares). São direitos que se referem fundamentalmente aos povos indígenas em seu hábitat. Para isso, nas disposições transitórias do texto constitucional, fixa-se um prazo de dois anos para a realização da demarcação de tais hábitats indígenas.

Todavia, depois de 17 anos que foi entrada em vigor a Constituição, algumas fazendas foram entregues a algumas comunidades indígenas, mas não se demarcou nem reconheceu o território de nenhum dos povos indígenas. Consequentemente, na prática todos os direitos assegurados pela Constituição permaneceram como letra morta. O direito de preservar “sua organização social, política e econômica, suas culturas, usos e costumes, idiomas e religiões, assim como seu hábitat e direitos originários sobre as terras que ancestral e tradicionalmente ocupam e que são necessárias para desenvolver e assegurar suas formas de vida”, depende do reconhecimento de um território no qual possam levar a cabo essas atividades. O mesmo com o “direito de manter e desenvolver sua identidade étnica e cultural, cosmovisão, valores, espiritualidade e seus lugares sagrados e de culto” (Artigo 121); o “direito a manter e promover suas próprias práticas econômicas baseadas nas reciprocidades, na solidariedade e no intercâmbio, suas atividades produtivas tradicionais” (Artigo 123); e o direito à consulta prévia em relação ao “aproveitamento dos recursos naturais nos hábitats indígenas por parte do Estado” (Artigo 120). Se não executado o reconhecimento do território, o Estado pode ignorar tudo o que se refere à consulta prévia. O mesmo com relação ao direito à aplicação de normas de justiça própria. “As autoridades legítimas dos povos indígenas poderão aplicar em seu hábitat instâncias de justiça com base em suas tradicionais ancestrais e que só afetem a seus integrantes…” (Artigo 260). Se não há território reconhecidos como próprios dos povos indígenas, não há lugar algum no qual possa ser exercido o direito a suas próprias normas de justiça. Sem demarcação territorial, os direitos dos povos indígenas assegurados na Constituição ficaram esvaziados de todo o conteúdo.

Existem razões de muito peso para entender porque o governo bolivariano durante todos estes anos demonstrou carecer da vontade política para tornar realidade uma das conquistas mais importantes da Constituição de 1999. Por um lado, houve pouca disposição de enfrentar os interesses dos criadores de gado, e das empresas mineradoras e madeireiras que seguiram avançando na ocupação dos territórios dos povos indígenas durante estes anos. Mas muito mais importante foi a visão neoextrativista e neodesenvolvimentista que caracterizou o processo bolivariano. Demarcar os habitats indígenas teria implicado sérios obstáculos no futuro para explorar comercialmente as abundantes reservas de minérios, como o ouro e o coltan, que se encontram precisamente nos territórios ancestralmente habitados pelos povos indígenas. Isso ficou claro com o decreto de criação do Arco Minero do Orinoco. Os territórios que oferecem para a mineração em grande escala a céu aberto por parte de corporações transnacionais se sobrepõem com parte dos hábitats tradicionais dos povos E´ñepá, Hiwi, Mapoyo, Piaroa, Ye’kuana e Kari’ña. Nenhum destes povos foi consultado sobre este megaprojeto.

9. O socialismo bolivariano

O ponto de inflexão política mais importante que ocorreu durante os anos do governo de Chávez foi a declaração da revolução bolivariana como Revolução Socialista. Significou claramente um antes e um depois, que alterou profundamente o rumo do processo político que vinha se dando no país. Passou-se de uma dinâmica política inclusiva, relativamente flexível e de futuro aberto, a um processo excludente, com crescentes tendências verticais e autoritárias, com matizes claramente stalinistas.

Como se observou acima, o projeto inicial do chavismo esteve orientado mais por princípios e valores gerais do que por caracterizações precisas do tipo de sociedade que se propunha a construir. Este projeto esteve concebido como enraizado na especificidade da realidade histórico-cultural dos povos da América Latina, como uma alternativa claramente diferenciada tanto do capitalismo como do socialismo soviético.

Este imaginário aberto foi passando por sucessivos deslocamentos e radicalizações, produto, entre outras coisas, das intensas confrontações com a oposição venezuelana, as sérias ameaças e ações desestabilizantes do governo dos Estados Unidos, uma crescente influência cubana e as leituras e reflexões políticas mutantes do próprio Chávez. Em janeiro de 2005, no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, declara que não há outra forma de ir mais além do capitalismo que o socialismo:

Não tenho a menor dúvida. É necessário, dizemos e dizem muitos intelectuais do mundo, transcender o capitalismo, mas agrego eu, o capitalismo não vai ser transcendido por dentro do mesmo capitalismo, não. É preciso transcender o capitalismo pela via do socialismo. Por essa via é que é necessário transcender o modelo capitalista, o verdadeiro socialismo, a igualdade!44.

Nas eleições presidenciais de 2006, Chávez apresenta sua candidatura como uma opção pelo socialismo e ganha com 62,8% dos votos. No entanto, quando busca constitucionalizar o socialismo como modelo de sociedade, algo que não está presente na Constituição de 1999, mediante o Referendo da Reforma Constitucional realizado em dezembro do ano seguinte, a proposta é rechaçada por uma diferença um pouco maior do que 1%, apesar de que Chávez tivesse apresentado tal referendo como uma opção entre George Bush e ele. De acordo com as pesquisas de opinião, Chávez seguia contando com amplo respaldo da população. No entanto, o apoio à reforma constitucional proposta por Chávez obteve quase três milhões de votos a menos que ele próprio havia obtido nas presidenciais do ano anterior. Foram dadas diversas explicações para esta enorme diferença nas votações, entre elas o fato de que se estavam se submetendo a votação em dois blocos cerca de 70 reformas à Constituição que não tinham sido suficientemente debatidas. Mas o fato é que neste referendo a maioria da população venezuelana não votou a favor do socialismo45.

Entre finais da década de 60 e a década de 70 na Venezuela, deu-se um rico debate crítico sobre as experiências do socialismo realmente existente sobre as diferentes modalidades de luta pela superação do capitalismo e sobre outras formas de organização política. Estes debates deram-se no contexto de luta armada no país, a Revolução Cultural Chinesa, o Maio Francês e a emergência do Eurocomunismo nos partidos comunistas da Itália, França e Espanha, assim como o vigoroso movimento pela Renovação Universitária que se deu em várias universidades do país. Eixos centrais destes debates foram o antiautoritarismo e a busca de novas formas de organização política diferentes das estruturas verticais altamente centralizadas, pouco democráticas, que haviam caracterizado historicamente os partidos comunistas. Exploraram-se modalidades organizativas de partido de movimentos que buscavam superar as barreiras que existiam entre as estruturas fechadas dos partidos políticos e a diversidade de organizações, coletivos e movimentos existentes para além destes46.

Quando o processo bolivariano é declarado como Socialismo do Século XXI, este se faz fundamentalmente sem memória histórica. Os grandes temas que haviam conduzido ao fracasso do socialismo do século XX não são debatidos como alternativa ao capitalismo e ao padrão civilizatório hegemônico que foram destacados no início deste trabalho: antropocentrismo, eurocentrismo, seu caráter universalista monocultural, patriarcado, fé cega no progresso e nas chamadas forças produtivas do capitalismo. Os debates realizados na Venezuela em décadas anteriores haviam sido esquecidos porque desaparecera a ideia de socialismo do horizonte político ou porque seus protagonistas morreram, afastaram-se da política ou adotaram posturas neoliberais. As publicações que recolhiam estes debates não se reeditaram e/ou deixaram de circular.

Ao adjetivar-se como “do Século XXI”, parecia se afirmar que este novo projeto não seria similar à experiência do socialismo do século XX, em particular à experiência soviética. Mas, podia a ideia de socialismo desvencilhar-se de sua carga histórica, de sua perspectiva eurocêntrica, progressista, de identificação radical com o projeto universalista monocultural da modernidade ocidental e sua guerra permanente pelo controle/manipulação/destruição das condições que fizeram possível a vida? Na ausência da vontade e/ou capacidade para abordar estas questões vitais, não era possível pensar que o Socialismo do Século XXI podia se diferenciar significativamente do Socialismo do Século XX. Aos jovens que se incorporaram com entusiasmo a este projeto político na primeira década do século XXI, a ideia do socialismo lhes chegou descontaminada, só com a promessa de futuro, sem carga histórica alguma. No caso dos jovens da Frente Francisco de Miranda, formados sob influência ideológica cubana, o socialismo foi assumido como uma verdade a ser aplicada sem necessidade de reflexão crítica.

O primeiro sinal preocupante de que a proposta de Socialismo do Século XXI não poderia ter aprendido muito da experiência do socialismo soviético se deu no momento em que Chávez chamou à conformação de um partido único.

Anuncia Chávez que para avançar neste processo de construção do socialismo, era indispensável superar o fracionamento político organizativo existente entre as forças que fizeram parte do governo. Com este fim, anunciou que era necessário conformar um partido único das forças que apoiam o processo. Sugeriu como nome o Partido Socialista Unido da Venezuela.

Declaro hoje que vou criar um partido novo. Convido a quem quiser me acompanhar a vir comigo (…). Os partidos que queiram, mantenham-se, mas sairão do governo. Comigo quero que governe um partido. Os votos não são de nenhum partido, esses votos são de Chávez e do povo, não caiam em mentiras47.

De modo consistente com a forma na qual se chegou à formulação do Socialismo do Século XXI, a criação do partido tampouco incorporou uma reflexão crítica sobre a experiência histórica dos partidos únicos dos regimes socialistas. Como se observou nesse momento:

Entre os debates vitais sobre a experiência do que foi o socialismo que realmente existiu no século XX, estão os assuntos do papel do Estado e do partido e de suas relações com a possibilidade de construção de uma sociedade democrática. Um Estado-partido que dominou cada um dos âmbitos da vida coletiva, terminou por asfixiar toda possibilidade de debate e dissidência, e com eles a própria possibilidade da pluralidade e da democracia. É por isso que entre os debates medulares para uma ordem socialista democrática que não repita os conteúdos autoritários da experiência do século passado estão os relacionados com o papel do Estado, o caráter do Estado, as relações entre o Estado e a pluralidade de organização e sociabilidade que se agrupam sob a ideia de sociedade. Igualmente medulares são os debates relacionados à busca das formas político-organizativas que sejam mais propícias para a construção de uma sociedade cada vez mais democrática. A experiência histórica sugere com contundência que a identidade Estado-partido não é a via que conduz para a democracia48.

Sem um diagnóstico cru das razões pelas quais o modelo de Estado/partido soviético conduziu ao estabelecimento da ordem autoritária que teve sua máxima expressão no stalinismo, carece-se de ferramentas para prevenir-se contra a ameaça de sua repetição.

Outro sinal do que viria, em termos de verticalidade da estrutura partidária e da exigência da lealdade incondicional a Chávez, foi o fato de um partido político em processo de criação, partido que ainda não tinha militantes, documentos doutrinários, estatutos, nem estruturas orgânicas, já tivesse um Tribunal Disciplinar em funcionamento.49 Num ato realizado em agosto de 2007, o presidente Chávez, fazendo referência ao alto nível de disciplina que deve ter todo candidato a militante do futuro partido revolucionário, informou que havia criado um Comitê Disciplinar Provisório do Partido Socialista Unido da Venezuela. Como resultado de seu desacordo com algumas declarações públicas de quem era nesse momento coordenador do Bloco Socialista Unido da Assembleia Nacional, Chávez informou:

Passei para o Conselho Disciplinar um dirigente nacional que aspira a ser do partido por andar falando pistoladas. Vou estar muito atento (…). O pensamento crítico é fundamental para uma revolução, mas isso é uma coisa muito distinta de andar falando mal do partido que não nasceu, recolhendo assinaturas para apresentá-las não sei onde. Se ele quiser ser um anarquista, que vá embora, não o queremos, aqui se requer uma militância criativa, porém disciplinada50.

Posteriormente, vozes dissidentes, altos funcionários do governo e do partido que formularam denúncias sobre a crescente corrupção existente no governo foram catalogados como traidores e sumariamente postos de lado ou expulsos do partido.

Apesar de Chávez afirmar que o PSUV não seria marxista-leninista porque ‘é uma tese dogmática em desacordo com a realidade de hoje”51, os estatutos do PSUV estabelecem como princípio organizativo o centralismo democrático “entendido este como a subordinação do conjunto da organização à direção; a subordinação de todos os militantes a seus organismos; a subordinação dos organismos inferiores aos superiores; a subordinação da minoria à maioria (…)”52.

Estas tendências propriamente stalinistas com as quais o Socialismo do Século XXI dá seus primeiros passos se imbricam estreitamente com processos e tendências políticas, históricas e estruturais que lhe precedem no país. São estas, a existência de abundância de recursos petroleiros, um século de um modelo político e econômico Estadocêntrico clientelar, e uma longa história de lideranças e governos militares. Tudo isso se reorganizou em torno da lógica messiânica da liderança de Chávez para cristalizar no socialismo rentista bolivariano.

VII. Podemos aprender com a experiência?

Com as limitações ou inclusive o fracasso das experiências dos governos progressistas na América Latina como alternativas capazes de ir para além do capitalismo, parece terminar um ciclo histórico. Mas não se trata somente do curto ciclo histórico das commodities ou dos governos progressistas, mas de um ciclo histórico de mais longa duração cujo início poderia ser identificado com a publicação do Manifesto do Partido Comunista em 1848. É o ciclo histórico da luta anticapitalista que tem como eixo central a ideia de que, mediante a captura ou o acesso ao Estado, seria possível conduzir um processo de transformação profunda do conjunto da sociedade. Isso foi um pressuposto compartilhado independentemente dos meios postulados para se chegar ao controle do Estado: mediante um levante revolucionário como o assalto ao Palácio de Inverno; mediante eleições ao modo socialdemocrata europeu; mediante a luta guerrilheira; ou, novamente, pela via eleitoral nos recentes processos progressistas sul-americanos. Ao mesmo tempo, estamos no final de uma época histórica que, desde as mais diversas posturas políticas e ideológicas, identificou o bem-estar e a felicidade humana com uma abundância material sempre crescente, com o progresso e com o crescimento econômico ad-infinitun. Os limites do planeta nos obrigam a reconhecer que entramos numa nova era.

No mundo globalizado atual, não é indiferente o que faz o Estado. Pela via de políticas públicas é possível frear algumas das tendências mais destrutivas do neoliberalismo. É possível incidir na melhoria das condições de vida da população, ampliar os direitos para as maiorias, ou ampliar/reduzir em alguma medida as desigualdades. Por outro lado, o Estado não é um ente unitário nem homogêneo. Existem múltiplas experiências em todo o mundo de dinâmicas de democratização baseadas em estruturas do Estado, sobretudo no âmbito local ou municipal. No entanto, para que se levem a cabo políticas democráticas, é necessária a existência de fortes organizações sociais e políticas, redes e movimentos com capacidade para exercer pressão e conseguir algum grau de impacto no impulso ou no freio de determinadas políticas públicas. Apesar do fato de que os Estados reproduzem dentro de muitas das contradições e tensões da sociedade, no mundo pós-democrático contemporâneo, a maior parte das políticas públicas ou estão desenhadas para operar como um contra-poder para a regulação e controle do mercado, ou como fiadores das condições requeridas para a operação dos mercados.

Há, por outro lado, muitas experiências através do mundo de dinâmicas democratizadoras baseadas na interface entre organizações sociais e instituições, especialmente nos níveis locais e municipais. Contudo, a experiência histórica parece ter demonstrado que o Estado nacional não é, não pode ser, o lugar ou o sujeito privilegiado para um processo de superação do capitalismo, nem do impulso de uma profunda transformação do padrão civilizatório que hoje ameaça vida, sobretudo na medida em que a centralidade do Estado conduza a limitar as potencialidades autônomas do resto da sociedade.

O neoextrativismo, instaurado como regime de acumulação hegemônico em todos os países de governos progressistas, é uma consequência inevitável das concepções Estado-cêntricas da transformação societal. Estadocentrismo e extrativismo se retroalimentam. Deu-se prioridade ao aumento das rendas do Estado, identificando este como o lugar de síntese dos interesses gerais da nação e do processo de transformação. Ante esse interesse geral, todo outro interesse, toda outra opção político/cultural, ainda que seja a preservação da Amazônia ou impedir o extermínio de um povo indígena é denominada como um interesse “setorial ou corporativo”. As consequências são especialmente severas para os povos e comunidades indígenas e campesinas cujos territórios são abertos para ser explorados por corporações públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, orientais ou ocidentais.

Os projetos políticos do progressismo, ao invés de tomar passos iniciais no confronto com os desafios e exigências apresentadas pela profunda crise civilizatória que enfrenta a humanidade, terminaram por assumir e aprofundar a lógica da prevalência do consumo material e da mercantilização, tanto em suas relações internacionais como no interior de cada país. Ao aprofundar as formas coloniais de inserção na divisão internacional do trabalho e da natureza, contribuíram ativamente para acelerar a dinâmica de acumulação predatória do capitalismo global e a mudança climática. Para o interior de cada um dos países, em certa medida, ao sustentar sua legitimação e seu respaldo eleitoral em sua capacidade para satisfazer as expectativas sociais de aumento massivo do consumo, contribuíram ativamente para consolidar a cultura do individualismo possessivo que, com o tempo, contribuiu para erodir o apoio político da esquerda e para suas derrotas eleitorais. Como afirmou Boaventura de Sousa Santos, os governos do PT tiveram mais êxito ao criar consumidores do que na criação de cidadãos.

Hoje, teríamos que nos fazer uma pergunta nada trivial e cuja resposta não é óbvia. Depois dos anos de governos progressistas na América do Sul, estaremos mais perto de superar o capitalismo e com maior capacidade de responder aos desafios que nos coloca a crise civilizatória, ou pelo contrário aprofundamos nossa inserção nas engrenagens da reprodução do capital global e naturalizaram-se os valores hegemônicos desta civilização em crise?

À parte sua dimensão militar, a vitória principal da contrarrevolução do neoliberalismo das últimas décadas foi a profunda transformação nos imaginários que universalizou a lógica cultural do individualismo possessivo, como padrão cultural hegemônico na maior parte do planeta. Projetos de mudança que para se legitimar tenham que se apoiar no reforço desta lógica cultural, como ocorreu em todos os governos progressistas, não podem ser considerados hoje como alternativas válidas ante os desafios que confrontamos.

Teria que ser repensado o que se entende hoje por esquerda, se caracterizada como de “esquerda” o desenvolvimentismo estatista extrativista dos governos chamados “progressistas”53. São de “esquerda” ainda que isso implique a devastação da natureza? O ataque sistemático à pluralidade de culturas indígenas e afrodescendentes destas sociedades? Mesmo se opera mediante padrões culturais patriarcais, que desconhecem, entre outras coisas, a soberania das mulheres sobre seu próprio corpo? Se longe de aprofundar as práticas democráticas, tendem a limitá-las e controlá-las? Se pode caracterizar como anticapitalista o aprofundamento da lógica primário-exportadora de bens agrícolas, minerais e energéticos que está contribuindo ativamente para alimentar a insaciável e devastadora maquinaria de acumulação do capital global? As categorias históricas de esquerda e de direita deixaram de ser relevantes para a caracterização destes assuntos?

Por outro lado, no terreno geopolítico vem se operando significativas transformações. As categorias reducionistas e binárias “Norte/Sul” e/ou “Imperialista/Anti-imperialista” sustentadas em identificar os Estados Unidos como o império e em considerar como amigos ou aliados anti-imperialistas a todos os governos e movimentos que tenham contradições com este, ainda que estes sejam países tampouco democráticos, tampouco expressão de outro mundo possível, como o são Rússia, China, Irã, Bielorrússia ou Síria, não podem de modo algum dar conta da cambiante realidade do sistema mundo contemporâneo. Desde uma perspectiva socioambiental, são as corporações chinesas e russas, públicas ou privadas, melhores que as corporações que têm sede nos Estados Unidos ou na União Europeia?

Para aprender com a experiência, é absolutamente necessário refletir criticamente sobre o que acontece e por que acontece. Conhecemos a história da cumplicidade dos partidos comunistas do mundo com os horrores do stalinismo. Não foi por falta de informação. Não foi que se inteiraram depois dos crimes de Stalin. Houve cumplicidade, produto de uma concepção maniqueísta de acordo com a qual o mundo se dividia entre imperialistas (maus) e anti-imperialistas (bons). Na medida em que a União Soviética se enfrentava com o imperialismo estadunidense, considerou-se conveniente ser solidários, deixando de lado outros assuntos como o caráter totalitário desse regime e dos Gulags, assuntos medulares para as milhões de pessoas que o viveram. Passaram décadas e a esquerda mundial, ainda que tivesse posturas muito diversas com relação ao mundo soviético, não conseguiu se livrar de sua associação com tal experiência histórica.

Esta história se repete outras vezes. Hoje, o analista espanhol Santiago Alba Rico nos adverte sobre o que denomina tumba da esquerda em Aleppo, Síria. Na geopolítica do Oriente Médio, o governo de Bashar Al-Assad na Síria (“assassino de centenas de milhares de sírios, bombardeados, torturados e desaparecidos”) foi visto por amplos setores da esquerda como aliado anti-imperialista ou como um ‘mal menor’ ante o projeto imperialista na região.

Para permitir que Assad matasse em grande escala foi necessário mentir muito: foi necessário negar que o regime sírio fosse ditatorial e afirmar, ainda mais, que é anti-imperialista, socialista e humanista… ‘Uma boa parte da esquerda mundial se situou, com efeito, à margem da ética e ao lado dos ditadores e dos muitos imperialismos que dividem a região (…) este novo erro, somado a tantos outros, nos pode custar muito caro’54.


Notas:

1 Mãe Terra é um conceito amplamente compartilhado por povos indígenas nas Américas. No entanto, para algumas perspectivas feministas, esta é uma caracterização patriarcal da natureza como o lugar no qual a vida e a cultura são criadas e reproduzidas, visto como um protetor maternal, virginal e imaculado, similar à forma na qual o patriarcado entende as mulheres.

2 A exceção mais importante foi o radical questionamento que se levou a cabo durante a Revolução Cultural Chinesa.

3 Isso, apesar da luta guerrilheira que se levou a cabo durante a década dos sessenta, inspirada na Revolução Cubana.

4 Edgardo Lander, “Movimientos sociales urbanos, sociedad civil y nuevas formas de ciudadanía”, Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales, Universidad Central de Venezuela, Caracas, 2-3, 1995.

5 Ver: Edgardo Lander, “El impacto del ajuste neoliberal 1989-1993”, en Edgardo Lander, Neoliberalismo, sociedad civil y democracia. Ensayos sobre América Latina y Venezuela, Consejo de Desarrollo Científico y Humanístico, Universidad Central de Venezuela, Caracas, 1995.

6 O livro de entrevistas com Chávez realizadas pelo historiador Agustín Blanco Muñoz nos anos prévios a sua eleição constituem a apresentação mais completa do pensamento do futuro presidente. Ver: Agustín Blanco Muñoz, Habla el comandante Hugo Chávez Frías, Caracas, Cátedra Pio Tamayo, Universidad Central de Venezuela, Caracas, 1998.

7 De acordo com o artigo 70 da Constituição: são meios de participação e protagonismo do povo em exercício de sua soberania, no político: eleição de cargos públicos, referendo, consulta popular, revogação do mandato, iniciativa legislativa e constitucional e constituinte, o conselho aberto e a assembleia de cidadãos e cidadãs cujas decisões serão vinculativas, entre outros; e no social e econômico, os casos de atenção cívica, autogestão, cogestão, cooperativas em todas as suas formas, incluindo formas financeiras, de poupança, de comunidade e outras formas associativas guiadas por valores de mútua cooperação e solidariedade.

8 Ministério de Planificação e Desenvolvimento (MPD) (2001b), Ley Habilitante, disponível em: <http://www.mpd.gob.ve/decretos_leyes/decre_leyes.htm>.

9 Este assunto crucial será abordado mais adiante neste texto.

10 CEPAL. Anuario Estadístico de América Latina y el Caribe, Santiago, 2013, p. 79.

11 Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, Oficina Regional da FAO para América Latina e o Caribe, “Reconocimiento de la FAO a Venezuela”, 26 de julho, 2013. http://www.rlc.fao.org/es/paises/venezuela/noticias/reconocimiento-de-la-fao-a-venezuela/

12 Instituto Nacional de Estatísticas. Força de Trabalho, “Población de 15 años y más ocupada, según sector formal e informal, categoría ocupacional del sector informal y sexo”. Disponível em: <http://www.ine.gov.ve/index.php?option=com_content&view=category&id=103&Itemid=40#>.

13 Jorge A. Giordani, “Testimonio y responsabilidad ante la historia”, Correo del Orinoco, Caracas, 18 de junio 2014.

14 Instituto Nacional de Estatísticas, Índice de Desenvolvimento Humano. Disponível em: <http://www.ine.gov.ve/documentos/Social/IndicedeDesarrolloHumano/pdf/Desarrollo_Humano.pdf>.

15 A Casa Branca, Gabinete do Secretário de Imprensa, Avisa Continuação do Respeito Nacional de Emergência à Venezuela, Washington, Washington, Janeiro 13, 2017. Disponível em: <https://obamawhitehouse.archives.gov/the-press-office/2017/01/13/notice-continuation-national-emergency-respect-venezuela>.

16 Declaração do Almirante Comandante Kurt W. Tidd, Comando do Sul dos Estados Unidos antes do 114º Congresso do Comitê de Serviços Armados do Senado, 10 de março, 2016. Disponível em: <https://www.armed-services.senate.gov/imo/media/doc/Tidd_04-06-17.pdf>.

17 Ben Jacobs, “Trump threatens ‘military option’ in Venezuela as crisis escalates”, The Guardian, Londres, 12 de agosto, 2017.

18 Banco Central da Venezuela, Informação Estatística, Exportações e importações de bens e serviços segundo setores. Disponível em: <http://www.bcv.org.ve/c2/indicadores.asp>. Parte, mas somente parte deste incremento é consequência da alta dos preços do petróleo nestes anos.

19 Idem.

20 Banco Central de Venezuela, Informação Estatística. Produto Interno Bruto por classe de atividade econômica. Disponível em: <http://www.bcv.org.ve/c2/indicadores.asp>.

21 Assembleia Nacional, Lei do Plano da Pátria, Segundo Plano Socialista de Desenvolvimento Econômico e Social da Nação 2013-2019, Caracas, dezembro de 2013. Disponível em: <http://gobiernoenlinea.gob.ve/home/archivos/PLAN-DE-LA-PATRIA-2013-2019.pdf>.

22 Artigo 305. O Estado promoverá a agricultura sustentável como base estratégica do desenvolvimento rural integral, e em consequência assegura a segurança alimentar da população; entendida como a disponibilidade suficiente e estável de alimentos no âmbito nacional e o acesso oportuno e permanente a estes por parte do público consumidor. A segurança alimentar deve ser alcançada através do desenvolvimento e privilegiando a produção agrícola doméstica, o que significa como tal a agropecuária, a pesca e a aquicultura. A produção de alimentos é de interesse nacional e fundamental para o desenvolvimento econômico e social da Nação. Para o efeito, o Estado ditará medidas de transferência financeira, comercial, tecnológica, posse de terras, infraestrutura, treinamento trabalhista e outras medidas necessárias para alcançar níveis estratégicos de autossuficiência. Além disso, promoverá ações dentro da economia nacional e internacional para compensar as desvantagens da atividade agrícola.

23 O Arco Minero operará como uma Zona Econômica Especial, que como foi o caso na China e no Vietnã, busca atrair investimentos estrangeiros mediante incentivos fiscais e de outro tipo, além da não-aplicação de parte das normas ambientais e trabalhistas nacionais.

24 Entre o primeiro semestre de 1999 e o primeiro semestre de 2014, a participação do setor público no total de ocupados passou de 15,5% a 20,7%. Instituto Nacional de Estatísticas, Força de Trabalho, População de 15 ano y mais ocupada, segundo setor empregador, categoria ocupacional e sexo. Disponível em: <http://www.ine.gov.ve/index.php?option=com_content&view=category&id=103&Itemid=40#>.

25 As eleições de um dos maiores sindicatos do país, o da planta siderúrgica SIDOR, foram suspensas indefinidamente porque o governo estava consciente de que seus partidários iriam perder caso elas fossem realizadas.

26 Quando o candidato da oposição Antonio Ledezma foi eleito como Prefeito Metropolitano de Caracas em 2008, a Assembleia Nacional aprovou uma lei criando o Distrito Capital, diretamente dependente do Executivo. Muitas das atribuições e fontes de financiamento foram transferidas da Prefeitura Metropolitana para esta nova estrutura controlada pelo Executivo. Quando um dos principais dirigentes da oposição, Henrique Capriles, foi reeleito como governador do estado Miranda em 2002, a Assembleia Nacional criou CorpoMiranda, uma instituição paralela controlada pelo governo central que chegou a ter um orçamento maior que a do governo.

27 De acordo com as últimas cifras do Índice de Produção Física dadas a conhecer pelo Banco Central da Venezuela, em 2011 a cifra de produção física de aço primário no país representou 74,92% do montante correspondente para 1997. No caso do alumínio, o descenso foi ainda maior, sendo a cifra de 2011 somente 52,31% da produção correspondente a 1997. Banco Central de Venezuela, Informação Estatística, Índice de produção física para algumas atividades econômicas. Disponível em: <http://www.bcv.org.ve/c2/indicadores.asp>.

28 Ao anunciar a decisão de intervir na direção da PDVSA encarregada da distribuição de combustível, o presidente Nicolás Maduro afirmou que: “Há indícios muito sérios da vinculação de grupos mafiosos com algumas instâncias de empresas do Estado, vamos persegui-los e vamos castigar com o dobro da severidade com que se castiga normalmente”, “Presidente Maduro ordena intervenir dirección de Pdvsa encargada de distribución de combustible”, Aporrea, 11 de setembro de 2014. Disponível em <http://www.aporrea.org/contraloria/n257519.html>.

29 Coletivo de autoras e autores de Cecosesola, “Venezuela: La red cooperativa Cecosesola Una experiencia de transformación cultural”, ¿Cómo transformar? Instituciones y cambio social en América Latina y Europa, Grupo Permanente de Trabajo sobre Alternativas al Desarrollo, Fundación Rosa Luxemburg, Quito, 2015.

30 Ministério do Poder Popular para a Mulher e a Igualdade de Gênero, Todo o Poder para os CLAP. Edición 1, Caracas, 6 de outubro 2016. Disponível em: <http://www.minmujer.gob.ve/?q=descargas/publicaciones/todo-el-poder-para-los-clap-edici%C3%B3n-01>.

31 A corrupção em grande escala foi um dos problemas mais graves do processo bolivariano. Houve uma séria falta de transparência nos gastos do governo. Os procedimentos prévios de prestação de contas públicas foram pelo menos parcialmente desmantelados, ou foram utilizados quase exclusivamente para castigar a oposição. A principal fonte de corrupção se associou com a criação de departamentos para o controle do câmbio com o fim de limitar a fuga de capitais do país. Dado que a demanda sempre foi maior que a oferta proporcionada pelo governo, surgiram mercados de câmbio paralelos (ilegais) especulativos. Isso produziu uma extraordinária variedade de paridades do bolívar em relação ao dólar estadunidense. Em agosto de 2017, enquanto que o tipo de câmbio oficial fixo para importações de alimentos básicos e remédios era de dez bolívares por dólar estadunidense, o tipo de câmbio paralelo flutuava entre dez mil e dezoito mil bolívares por dólar. Os escritórios responsáveis de decidir quais solicitações de moeda estrangeira subsidiada seriam satisfeitas possuem um tremendo poder discricionário. Como resultado, foram criados novos milionários. Segundo o ex-presidente do Banco Central da Venezuela, Aimeé Betancourt, somente em 2013, cerca de 20 bilhões de dólares subsidiados foram fornecidos pelo governo às chamadas “empresas de valisa” para as importações que nunca ocorreram, uma demanda artificial não relacionada com atividades produtivas. [“Presidenta del BCV: Parte de los $ 59.000 millones entregados en 2012 fue una ‘empresas de maletín'”, Aporrea / AVN – www.aporrea.org, Caracas, 25 de mayo de 2013]. Isso representa enormes níveis de corrupção/público que, de acordo com algumas estimações, ascende a 300 bilhões de dólares nos últimos dez anos.

32 Controle cidadão, “Participación militar en el gabinete ministerial”. Caracas 2017, Disponível em: <http://www.controlciudadano.org/infografías>.

33 “El negocio de los militares: Se elimina el control sobre las empresas de las FuerzasArmadas”, La Izquierda Diario – Aporrea, Caracas 1 de fevereiro de 2017. Disponível em: <http://www.aporrea.org/civico-militar/n303582.html>.

34 “FANB monta emporio industrial con 17 empresas propias y mixtas”, El Nacional, Caracas, 9 de dezembro 2016. Disponível em: <http://www.el-nacional.com/noticias/politica/fanb-monta-emporio-industrial-con-empresas-propias-mixtas_24717>.

35 Nélida Archenti e María Inés Tula, “¿Las mujeres al poder? Cuotas y paridad de género en América Latina”, Universidad de Salamanca, 22 de fevereiro de 2013. Disponível em: <http://americo.usal.es/iberoame/sites/default/files/tula_PAPERseminario9_2012-2013.pdf>; e Evangelina García Prince, “La participación política de las mujeres en Venezuela: Situación actual y estrategias para su ampliación”, Instituto Latinoamericano de Investigaciones Sociales, ILDIS, Caracas, 2012.

36 Carmen Teresa García e Magdalena Valdivieso, “Las mujeres venezolanas y el proceso bolivariano. Avances y contradicciones”, Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales, vol.15 no.1, Caracas, abril 2009.

37 Idem.

38 Jhannett M. Madriz Sotillo, “Visibilización de la mujer en la República Bolivariana de Venezuela”. Revista Derecho Electoral, n°13, Tribunal Supremo de Elecciones, República de Costa Rica, janeiro-junho, 2012.

39 Instituto Nacional de Estatísticas, “Indicadores globales de la fuerza de trabajo, según sexo, 1er semestre 1999-1er semestre 2015”, Caracas 2016.

40 Anaís López, “Movimiento de Mujeres, Estado, Política y Poder: Lecturas Feministas de la Política Pública de Género en la Venezuela Bolivariana”, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), Buenos Aires, 2015. Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/becas/20150730112502/INFORMEFINAL-CORREGIDO.pdf>.

41 Carmen Teresa García e Magdalena Valdivieso, op.cit.

42 Fundo de População das Nações Unidas, documento do projeto de país para a República Bolivariana da Venezuela, Geneva, 2014.

43 Mais que alguns direitos conquistados mediante a capacidade de mobilização e luta dos povos indígenas venezuelanos no momento do debate constituinte, a ampla gama de direitos contemplados na Constituição incorpora boa parte da agenda de luta que vinham articulando as organizações indígenas em todo o continente. Isso é parte da explicação do por que foi tão limitada a capacidade do mundo indígena nestes anos para fazer realidade o cumprimento destes direitos.

44 Hugo Chávez Frías, Discursos y Alocuciones. Gimnasio Gigantinho, Porto Alegre, 30 de janeiro de 2005. Disponível em: <http://www.todochavez.gob.ve/todochavez/3661-v-foro-social-mundial-el-sur-norte-de-nuestros-pueblos>.

45 Edgardo Lander, “El proceso político en Venezuela entra en una encrucijada crítica”, Aporrea, Caracas, 22 de dezembro de 2007. Disponível em: <http://www.aporrea.org/actualidad/a47861.html>.

46 Entre as múltiplas contribuições a este debate destacam os textos de Teodoro Petkoff (Checoeslovaquia: el socialismo como problema, Monte Avila Editores, Caracas, 1990); os textos de Alfredo Maneiro (Escritos de filosofía y política, Colección Doxa y Episteme, N° 1, Los Teques 1997) e Ideas Políticas para el Debate Actual, seleção realizada por Marta Harnecker, Editorial El Perro y la Rana Caracas, 2007); e os trabalhos do Congresso Cultural de Cabimas em 1970, que reuniu políticos, ativistas, artistas, intelectuais numa reflexão crítica sobre o país.

47 Hugo Chávez Frías, “Lineamientos para la construcción del Socialismo del Siglo XXI”. Acto de reconocimiento al Comando Miranda. Teatro Teresa Carreño, Caracas, 15 de dezembro de 2006.

48] Edgardo Lander, “Creación del partido único, ¿aborto del debate sobre el Socialismo del Siglo XXI, Aporrea, Caracas 25 de dezembro de 2006. Disponível em: <http://www.aporrea.org/ideologia/a28743.html>.

49 Edgardo Lander, “El Tribunal Disciplinario del PSUV y la construcción de la democracia”, Aporrea, Caracas, 11 de novembro de 2007. Disponível em: <http://www.aporrea.org/ideologia/a41010.html>.

50 Sara Carolina Díaz e María Daniela Espinoza “Ameliach fuera de Presidencia de la Comisión de Defensa de la AN. El legislador presentó descargos ante el tribunal disciplinario del PSUV”, El Universal, Caracas, 30 de agosto, 2007.

51 “PSUV no será marxista-leninista porque ‘es una tesis dogmática no acorde con la realidad de hoy’, afirma Chávez”, Agencia Bolivariana de Noticias (ABN)-Aporrea, Caracas, 22 de julho 2007. Disponível em: <http://www.aporrea.org/ideologia/n98401.html>.

52 Estatutos del Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), Caracas, Caracas, 2009. Disponível em: <http://www.psuv.org.ve/psuv/estatutos/>.

53 Em termos rigorosos estes governos são propriamente progressistas, mas num sentido diferente ao uso que é dado usualmente a esta categoria. São progressistas no sentido de que não abandonaram uma dogmática fé cega no crescimento econômico sem limite, no desenvolvimento e no progresso.

54 Santiago Alba Rico, “Alepo, la tumba de la izquierda”, Aporrea, Caracas, 23 de dezembro 2016. Disponível em: <http://www.aporrea.org/ddhh/a238979.html>.


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Pedro Micussi